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As Almas que se Quebram no Chão
As Almas que se Quebram no Chão
As Almas que se Quebram no Chão
E-book530 páginas8 horas

As Almas que se Quebram no Chão

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Sobre este e-book

Ambientado na Alemanha Oriental de fins dos anos 1980, o romance conta a história de um estudante brasileiro perdido entre as drogas e a ambição literária, entre a euforia do novo e a nostalgia do velho regime, entre ser e não ser. É a história de projetos que não se concluem, de ambições jamais alcançadas, de pessoas que se tornam vítimas das circunstâncias e que, eternamente deslocadas, só encontram conforto em suas pequenas misérias.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de mar. de 2019
ISBN9788580333626
As Almas que se Quebram no Chão

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    As Almas que se Quebram no Chão - Karleno Bocarro

    Copyright © 2010 by Karleno Bocarro

    Copyright da edição brasileira © 2016 É Realizações

    Editor

    Edson Manoel de Oliveira Filho

    Produção editorial, capa e projeto gráfico

    É Realizações Editora

    Revisão

    William C. Cruz

    Produção de ebook

    S2 Books

    ISBN 978-85-8033-362-6

    Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.

    Os direitos desta edição pertencem a

    É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda.

    Caixa Postal: 45321 · 04010 970 · São Paulo SP

    Telefax: (5511) 5572 5363

    e@erealizacoes.com.br · www.erealizacoes.com.br

    Aos meus pais, Marcelo (i.m.) e Maria Gilda

    "Spielmann, was streichst Du so sehr, was blickst Du so wild umher? Was springt das Blut, was kreist’s in Wogen? Zerreiß’t Dir ja deinen Bogen. Was brausen Wellen? Daß donnernd sie am Fels zerschellen, daß die Seele hinab zur Hölle klingt!"

    Menestrel, por que tocas tão encolerizado, por que olhas em torno tão selvagem? O que ferve o sangue, o que circula em ondas? Por que dilaceras o teu arco? O que ruge as ondas? Que elas, com um estrépito, se quebrem no rochedo, e a alma no chão do Inferno!

    (Karl Marx)

    Sumário

    Capa

    Créditos

    Folha de Rosto

    Dedicatória

    Epígrafe

    Nota à segunda edição

    Apresentação por Jessé de Almeida Primo

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Capítulo 6

    Capítulo 7

    Capítulo 8

    Capítulo 9

    Capítulo 10

    Capítulo 11

    Capítulo 12

    Capítulo 13

    Capítulo 14

    Capítulo 15

    Capítulo 16

    Capítulo 17

    Capítulo 18

    Capítulo 19

    Capítulo 20

    Notas

    Mídias Sociais

    Nota à segunda edição

    Já decorreram quatro anos desde minha estreia como escritor com a publicação destas minhas Almas. A surpreendente recepção do livro, que levou a mais três impressões, muito me alegrou. No entanto, durante esse tempo, a par de novos desafios – escrever um segundo romance, O Advento (no prelo), traduzir a obra do romancista teuto-romeno Eginald Schlattner, Luvas Vermelhas –, eu sempre me via, talvez movido por um espírito demasiado exigente, relendo algumas de suas páginas. Entendi, um tanto insatisfeito, que devia ter ido mais longe: cuidado melhor do estilo, da composição, da gramática, da grafia de algumas palavras em alemão, de um ou dois parágrafos, que saíram truncados... Em relação à trama, a impressão inicial, modesta!, de suas virtudes permanecia, mas se eu tivesse descido com mais coragem aos diálogos, às descrições mais detalhadas do tempo e dos lugares – Berlim, Moscou, Leipzig, Praga, São Paulo –, onde ocorre o drama de Marco e Barad, os heróis da história, alcançaria um grau de excelência superior... Suas personagens, que tanto interesse despertaram nos leitores, embora já tivessem uma boa compleição, carne e ossos firmes, precisavam também, a fim de continuar a causar uma impressão duradoura, de uma injeção de sangue mais forte: nutritivo e viscoso.

    No início do ano corrente, esgotada a terceira impressão, e com mais tempo disponível, chegou-me finalmente o dia de poder sanar as falhas apontadas acima. À medida que me empenhava à tarefa, impulsionado por um senso crítico amadurecido, por conseguinte, mais difícil de agradar, percebia que o melhor a fazer era reescrevê-lo. Após nove meses de árduo e prazeroso trabalho, concluí

    a tarefa, cujo resultado, espero, esteja a contento. Meus esforços foram de tornar a trama mais complexa, as personagens principais, embora as mesmas, mais vivas e incômodas, isto é, instigantes ao leitor, e o estilo mais sóbrio e clássico.

    Espero que esta edição também tenha uma acolhida favorável do público leitor.

    Agradeço aos meus amigos fraternos Elpídio Mário Dantas Fonseca, Jessé de Almeida Primo e William Cruz a inestimável ajuda de incumbir-se da revisão do texto, de apontar sugestões e criticar minhas fraquezas literárias.

    São Paulo, outubro de 2014

    Karleno Bocarro

    Apresentação

    Eis que a queda do Muro de Berlim propiciou o advento do novo homem: as viúvas do Muro. Muitos, ao se verem diante de tal notícia, perguntaram-se o que fazer, qual o sentido da vida, se valia a pena viver neste mundo em que o mercado dita as regras e deu um golpe nas utopias.

    Muitos chegaram a culpar o conluio do saudoso papa João Paulo II com o então igualmente saudoso presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan pela queda desse sonho de concreto que protegia os alemães conscientes, válidos e inseridos no contexto, daquelas pessoas insensíveis e alienadas que comiam no McDonald’s e lotavam os cinemas para ver Sylvester Stallone e Schwarzenegger oprimindo os pobres vietnamitas.

    Poucos anos depois, um diretor canadense exprimiu suas dores contra a invasão dos bárbaros, que são umas criaturas bem-sucedidas cuja alta periculosidade reside na crença de que apenas a iniciativa individual e a inventividade podem tornar sua vida melhor e, de modo ainda mais perigoso, desmoralizam a caridade estatal. Como se não bastasse, os velhos comunistas, com o fim das utopias, mergulharam nas drogas e nos prazeres hedonistas, e se contaminaram com Aids, uma doença burguesa.

    Moral da história: enquanto acreditava nas utopias, o homem estava no bom caminho, livre de todo o mal.

    Por outro lado, se caiu o Muro ou o comunismo estatal, ficou o comunismo do coração, aquele que mundo capitalista algum, com todas as suas tentações, pode arrancar. Mesmo que as verdades a seu respeito sejam comprovadas, é tudo sempre uma conspiração dos inimigos do sonho; resta o consolo de pensar – era a única alternativa.

    Qualquer semelhança com um pacto mefistofélico não parece ser mera coincidência...

    Apesar desse preâmbulo, o romance que ora apresento, As Almas que se Quebram no Chão, de Karleno Bocarro, título este tirado de um poema de Karl Marx que lhe serve de epígrafe, não pode ser reduzido a mero panfleto de oposição contra os vermelhos. Não é um comentário ao comunismo em si mesmo ou às esquerdas: é de fato uma narrativa com todas as virtudes literárias, em que as ideias são sugeridas não por construções teóricas, mas por acontecimentos.

    A distribuição desses acontecimentos, a forma como são interrompidos para dar espaço a outros e a forma como retornam nos momentos mais improváveis sem que o leitor se perca revelam uma habilidade narrativa impressionante.

    Pela leitura deste romance, do qual boa parte da história é ambientada na Alemanha Oriental, principalmente nos meses que sucedem a queda do Muro, conhecemos uma galeria tão imprevista quanto a própria realidade. Marco é uma das personagens mais engraçadas e também mais tristes com que podemos nos deparar: um sujeito infantilizado e oportunista que, tendo ido à Alemanha Oriental para estudar graças ao apoio financeiro do Partidão, só pensa em se dar bem com as mulheres alemãs, ao mesmo tempo que não se esforça em se ambientar ao mundo europeu e aprender a língua local, além de alimentar um sonho vago de ser escritor e deixar seu nome na história.

    Compõem também essa galeria, entre outros: Barad, um brasileiro de origem nordestina que, embora empenhado em realizar seus projetos e mais integrado ao ambiente europeu, não consegue ver as pessoas senão como personagens de um possível livro; e Dias, um exilado da ditadura que exagera o poder do finado regime militar como um recurso desesperado para mostrar que tem alguma importância, autor de uma curiosa versão do Manifesto Comunista para metalúrgicos do ABC.

    E é através de Dias, numa situação tão constrangedora quanto inusitada, que a nós e a Marco é introduzida outra personagem marcante: Bocas, que foi estudar na antiga União Soviética e, com o colapso do regime comunista, se muda para Berlim, onde, sem nenhum escrúpulo, passa a explorar a curiosidade que o europeu tem com relação ao exotismo brasileiro e, de modo igualmente inescrupuloso, explora Marco, que não consegue esboçar uma reação firme e adequada. Marco, apesar de ser um oportunista, não tem fibra para tirar vantagens dignas desse nome, ou, nas palavras de Machado de Assis, é uma alma ardente e frouxa, nascida para desejar, não para vencer, uma espécie de condor, capaz de fitar o sol, mas sem asas para voar até lá.

    Podemos perceber algo curioso na natureza da relação de Marco com Bocas, a qual é semelhante à relação dos intelectuais com o comunismo e, pois, uma relação de natureza mefistofélica em que o sujeito, tendo-se comprometido demais com a causa, não consegue encontrar uma saída. E o que é pior, teme encontrá-la e, recusando-se a vê-la, sempre inventa uma justificativa para manter o pacto com o que lhe parece odioso, mas que ao mesmo tempo lhe dá um significado à vida, por mais que testemunhe coisas que contrariem tudo aquilo em que acreditavam suas boas intenções.

    Não dá para afirmar que o autor tenha pensado nisso, mas é muita coincidência que Marco tenha uma relação tão duradoura com alguém que veio da Rússia, um país que espalhou seus erros para o mundo. Mais curioso ainda, o que mostra a eficácia da narrativa, é algo dessa natureza ser percebido não na descrição de dois militantes, mas através de uma personagem alienada (diz um velho jargão) e oportunista, e através de Bocas, figura hedonista como Marco, porém com mais sucesso.

    O livro é a história de projetos que não se concluem, de ambições jamais alcançadas, de pessoas que se tornam títeres das circunstâncias, e que, eternamente deslocadas, não encontram conforto senão em suas pequenas misérias. Pessoas para as quais a solução dos seus problemas é um problema ainda maior, que as anula por completo.

    Finalmente, a relação entre o desabamento de um projeto utópico (a derrocada do comunismo estatal) e a vida pela metade das personagens, como se um revelasse a natureza do outro, é uma das grandes riquezas deste romance. E a impressionante capacidade de percepção do autor nos põe diante de personagens bastante convincentes: como nos romances de Dostoiévski, rimos com elas, rimos delas e nos sentimos constrangidos por nos vermos um pouco como parte dessa galeria.

    Jessé de Almeida Primo

    Crítico literário e colunista da

    Revista Dicta & Contradicta

    Marco interrompeu a leitura dos textos de Barad, um colega de sua época de universidade, e de maneira bastante cuidadosa, como se cumprisse um dever sagrado, ou o próprio Barad estivesse ali a observá-lo, devolveu-os à pasta encardenada em azul-marinho, na qual os guardava havia mais de três anos. Então tirou, do fundo de um baú, uma agenda igualmente velha. Abriu-a na letra A e procurou um número de telefone. Depois de alguns minutos, alcançou o telefone, que estava na cabeceira da cama, e discou os números. Enquanto escutava as chamadas soarem insistentemente, apertava com os dedos da mão esquerda os olhos e franzia a testa, como fazem os que aguardam impaciente uma notícia importante.

    Ja, bitte? – uma voz sonolenta atendeu.

    – Andrea, tenho um texto aqui sobre você – disse Marco, ignorando a hora inoportuna daquele telefonema: onze da noite em São Paulo, onde estava, três da manhã em Berlim, o destino da ligação.

    – Marco, bist du?

    – Não, vamos falar em português – respondeu ele, com rispidez. – Acabei de descobrir aqui comigo, entre outros textos, alguns poemas de amor e perdição. Na verdade, eu tinha me esquecido deles completamente.

    – Estranho teléfono. Você some, e agora anos depois... – retrucou Andrea, com dificuldades, como se procurasse as palavras certas da língua portuguesa.

    – Eu quis que você sentisse a minha falta. Não acredita nisso? Ah, por que então não vem passar uns dias no Brasil? Você pode se hospedar aqui comigo.

    – Esquece, por favor! – disse Andrea, severamente.

    – Sei, ainda estão juntos, e ele agora manda em você.

    – De quem você fala, afinal? De Barad? Você é uma pessoa ruim, Marco.

    – Ah, Andrea, eu estou brincando. É claro que ninguém manda em você – disse Marco, em tom desinteressado, quase irônico.

    – Marco, é tarde, nós estamos distantes... Aqueles dias me doeram bastante, ainda me doem.

    – Por que sermos tão sérios? De uma coisa não devemos esquecer: o nosso sangue latino é quente e apaixonado. É claro que ele corre menos nas tuas veias, mas em quantidade suficiente para ter traído a todos nós. É o que eu acho – ­insistiu Marco.

    – Tenho parentes aí no Brasil... Além do mais, não gosto desses termos – observou Andrea.

    – Ora, Andrea, você machucou meus sentimentos. E os de Barad? Ele já te perdoou? Orgulhoso como ele é... Mas eu sei o quanto você é sedutora! Deve tê-lo convencido facilmente de que é uma pessoa fiel, não é mesmo? – comentou Marco ligeiramente irritado, procurando, contudo, manter a conversa sob controle.

    – Marco, não me faça voltar a ter Gewissensbisse... Como se diz isso em português, remorsos? E espero que ele não tenha tomado conhecimento de meus erros. Como eu ia adivinhar que ele e o... como se chamava mesmo?... Mário Bocas não se toleravam.

    – Agiu precipitadamente – ele disse.

    Andrea calou-se.

    – Alô, Andrea? Eu disse que você se precipitou. Como se fala precipitação em alemão?

    – Vou desligar.

    – Mas para ele, o nosso Barad, um consolo: deve ter feito de tuas traições uma inspiração à arte. Não sugeriu isso a ele?

    Marco olhava para a pasta azul com os textos de Barad. Sentia a confiança aumentar, os sentimentos adormecerem... Uma sensação boa! Via-se livre da paixão que um dia lhe dedicara, e da relação ambígua, uma mistura de inveja e admiração, que devotara a Barad... Aqueles anos em Berlim, quando lá esteve como estudante, pareciam-lhe agora distantes, como se saíssem de sua vida para cair finalmente em esquecimento.

    – Marco, você não compreende... Barad nos deixou – murmurou Andrea, como se acabasse de fazer uma confissão amargurada.

    – Ele está morto?

    – Não ria, por favor! – ela pediu, mais irritada do que súplice. Ele não riu, mas usara, na pergunta, um tom descontraído.

    – Está bem. Mas então foi suicídio – ele disse secamente, como se constatasse um fato esperado. Na verdade, reagia com indiferença porque a notícia era conveniente às suas intenções.

    – A polícia supôs um assassinato. Mas nunca esclareceu o caso...

    – Quando foi isso?

    – No dia do nosso último encontro, lembra? Estávamos aqui no meu apartamento...

    – Ele é o autor de uns textos que estão aqui comigo – interrompeu-a com brusquidão.

    – Como assim? Então estão com você? E eu e o pai dele sem saber o paradeiro dos textos... Faz o seguinte, devolva-os para mim. Não, melhor ainda, eu tenho o endereço do pai...

    – Não foi proposital, Andrea. Os textos vieram na minha mochila por uma infeliz casualidade. Além disso, passei dois anos no interior do Brasil, e eles ficaram aqui em São Paulo, no fundo de um baú. Arrumando hoje minhas coisas, encontrei-os numa pasta azul. Mas, espera, prefiro remetê-los para Berlim. Você ainda mora naquela rua, em Pankow?

    – Mas vão fazer todo esse percurso? O pai de Barad mora aí no Brasil, Marco.

    Naquela mesma noite, Marco escreveu uma carta a Andrea, que enviaria com alguns textos de Barad, retendo consigo a maior parte:

    Querida Andrea,

    Marco deteve-se alguns segundos, depois continuou:

    Conforme combinamos, seguem os textos de Barad. Gostaria de acrescentar que, embora passados alguns anos, ainda está vivo na minha memória o teor de nossas conversas aí em Berlim, durante as quais ele demonstrava um apego exagerado à arte, àquilo que antigamente se chamava a vocação de artista, no caso, de escritor. Mas que hoje soa absurda, pois não passa de devaneios metafísicos sem pé nem cabeça. Enfim, uma tola tortura autoinfligida! Então eu o alertava: ‘Olha, Barad, eu também pretendo escrever um livro, e isso é uma possibilidade cativante. Mas primeiro vou fazer um curso de letras e um de criação literária. No entanto, se eu perceber que não tenho talento, desisto. Busco outra coisa, e sem olhar, frustrado, para trás. Há algo mais sensato?’

    ‘Oh, não! Nisso de resignação eu não entro. Eu sei escrever’, dizia ele, cobrindo os olhos com as mãos, como se buscasse proteção contra uma sugestão invejosa, ressentida. Tudo bem, as pessoas são diferentes. E o que acontecia? Ou melhor, aconteceu, não é? Às dificuldades de realizar aquilo que entendia como vocação, ele aventava, como resposta ao fracasso, a hipótese do suicídio. O suicídio como uma expressão suprema de liberdade acessível a um Freidenker, a um livre-pensador. (Ah, outra ideia sem sentido numa época rápida, artificial, de brincadeiras, como é a nossa, não é?). Coitado! Como previsto, respondeu mal... Deixou-nos para sempre, legando uns textos esparsos sem valor estético.

    Exagero em minhas conclusões, Andrea? Leia com atenção os textos que te envio! O orgulho de pensar como um gênio, o que ele não era, e a insegurança – caso o talento não se confirmasse – latejam neles como uma pulsão de nervos sob a pele de um neurótico. Péssima combinação. Não enlouqueceu, mas... Responda, Andrea, dando-me razão. Eu aguardo.

    Quanto a enviar os textos ao pai dele, melhor não. A visão de mundo refletida nos textos é impossível a um homem tão sofrido. Barad me contou a história de sua família – não é das mais fáceis. Ou você ignora isso?

    Espero que ainda consiga ler em português – escrevo da agência central dos Correios. Faz muito barulho. Falta-me concentração para escrever em alemão. Quaisquer dúvidas, o meu endereço, com telefone, é este do remetente, no envelope. Pertence ao banco onde trabalho.

    Um abraço,

    Marco Dilthey

    A história dos textos de Barad, e como Marco chegou até eles, começa num dia de agosto de 1990, em Berlim, no pátio da Universidade Humboldt. Eram poucos os brasileiros na Humboldt, e alunos de Ciências Humanas, cujos cursos aconteciam no prédio central. O refeitório também ficava aí, de modo que sempre se encontravam – e infelizmente, com o passar do tempo, a proximidade, entre eles, deu motivo para equívocos. Mas se foi aquela convivência demasiado estreita – a necessidade de falar o idioma pátrio, de trocar impressões com facilidade, e até de ajuda mútua – ou as dificuldades por que passava o lado oriental da Alemanha, as adaptações necessárias ao novo sistema político e econômico, as mudanças no seio da Universidade, disciplinas canceladas, como o marxismo-leninismo, outras recentes exigidas, as reformas e construções por todos os lados da cidade... Se foram esses eventos, ou aquele momento da história, os culpados pela morte de Barad e pelo fracasso de todos sem exceção – como alunos diplomados –, quem foi ou qual a causa... O veredicto pertence ao leitor desta triste história, entre as mais tristes de nossa literatura.

    – Você morou muito tempo na Rússia, não morou? São eles lá parecidos conosco, os latinos, não são? – perguntava Marco, o calouro, a Barad, que já estava havia um ano na Humboldt.

    Marco era um rapaz de aspecto cansado, magro, alto, com ombros largos. Tinha uns olhos castanhos claros que expressavam enfado, como se todas as suas noites de sono fossem bisonhas e cheias de tosse.

    – A alma eslava realmente se parece com a nossa – disse Barad –, e difere da germânica ou da anglo-saxônica. Mas os russos têm orgulho de sua história, o que nos falta por completo. No entanto, padecem de certo ressentimento, pois acham que a Europa Ocidental não os respeita como merecem. A revolta de Dostoiévski contra a arrogância dos alemães é um exemplo. Quase um complexo de inferioridade! Algo semelhante aos sentimentos de rancor e inveja que dedicamos aos Estados Unidos. Por outro lado, a violência do Estado contra o indivíduo é inerente à sociedade russa. Eles esperam por isso! Entre nós, este é indolente e inchado, corrupto... E nós gostamos disso!

    – E as russas? São bonitas, mas engordam facilmente, não é? – disse Marco, com um interesse inquietador.

    – Quem tem a vaidade de nossas mulheres? – respondeu Barad, com paciência.

    – E a Alemanha? Gosta daqui? – a pergunta de Marco revelava preocupação, como se viesse sofrendo dificuldades de adaptar-se à cultura alemã.

    – Não moraria a vida toda... Mas para estudar não há lugar melhor.

    – Seria esta então a nossa única obrigação aqui, estudar? Acho que a cidade pode oferecer também outros encantos, não? – murmurou Marco, não sem soltar um gemido. – Preciso me acostumar a esta ideia tão exclusivista, e exaustiva... Ah, então foi por isso você deixou Moscou?

    – Um amigo meu, russo, me dizia que é preciso muita falta de sorte para nascer na Rússia. Eu respondia: é porque você não sabe o que é o Brasil. Mas as coisas estavam e estão bem complicadas por lá. Acompanhar as mudanças políticas no Leste? Então, que seja em Berlim – disse Barad, procurando demonstrar segurança.

    – E as alemãs, também são bonitas, não acha? Mas por que você ri, Barad?

    Barad era meia cabeça mais baixo que Marco. Tinha os cabelos crespos, mas de cor alaranjada; a pele queimada, que se tornara pálida depois de vários anos de Europa. Os olhos, de um castanho escuro, pareciam sempre atentos, e às vezes exprimiam bondade. Gostava de andar vestido com calças jeans desajeitadas, uma expressão de quase desleixo, e um pesado casaco russo. Falava bem o alemão, com um pouco de sotaque da sua terra natal, Fortaleza. E acreditava que aqueles anos de mudança no leste europeu contribuíam para aumentar-lhe a confiança e a ânsia de aprender. O fato de deixar a Rússia, escapar do naufrágio de um sistema até então aparetemente sólido, e conseguir uma vaga na Universidade Humboldt, uma instituição que recebia agora apoio da rica Alemanha Ocidental, reforçava suas convicções.

    – Não sei. Achei graça da pergunta. Aqui no pátio... Olha, há muitas para avaliar – e Barad fez um círculo amplo com a mão para mostrar as alemãs: bonitas, indiferentes, enigmáticas... E achou a conversa um tanto trêmula; veio-lhe à mente a imagem de algo gelatinoso. As perguntas de Marco tinham um teor incômodo. Também suas respostas eram horríveis, ele ia achando. Talvez porque o outro alternasse o assunto, como se os temas sérios servissem de disfarce ao que realmente o atraía.

    – Eu quis dizer, não superficialmente, entende? – balbuciou Marco.

    – Olha, não há nenhum mal em revelar nossas paixões mais íntimas – disse Barad, erguendo os ombros; hesitou um pouco, depois acrescentou: – Mas tenho pouca experiência com elas.

    – Nunca ficou com nenhuma?

    – Ah, gosto de uma...

    – Alemã, claro!

    – Não vai querer saber os detalhes, vai? – disse Barad, não sem ligeira irritação.

    – Eu faço essas perguntas todas porque acho essas alemãs difíceis de conhecer.

    – Há quanto tempo está aqui?

    – Em Berlim? Alguns meses, e passei um ano em Leipzig, onde tive de aprender o idioma. Mas também, admito, não tenho tido muito tempo.

    – Fazer uma graduação na Alemanha não é fácil, eu sei. E você foi escolher logo Filosofia, não é isso?

    – É a ideia inicial, ou posso concluir o curso no Brasil. Mas não vou morrer se não conseguir.

    – Se quiser, posso te apresentar alguns amigos. No curso de Língua Portuguesa, aqui da Universidade, há muitos alemães, e alemãs, que gostariam de fazer amizade com brasileiros.

    – Ah, gostaria muito – e Marco lançou um olhar interrogativo ao amigo.

    – Mas me dá o seu número de telefone. Pode acontecer alguma coisa neste final de semana... Um encontro de amigos...

    – Vou ficar esperando.

    Era a resposta, ainda que empolgada, de uma pessoa solitária, achou Barad.

    – Farei isso.

    Barad não ligou. Reencontraram-se na semana seguinte.

    – Ah, eu e a minha namorada terminamos não saindo. Fez muito frio – justificou-se Barad.

    – Ah, tranquilo, não precisa ser logo – e a queixa de Marco estampava no rosto a decepção.

    – Tem uma apresentação hoje do Tio Vânia, de Tchekhov, no Deutsches Theater. Não quer vir com a gente?

    – Não há problema?

    Eles foram. Duas horas mais tarde, após o término da peça, Marco pôde ver melhor a namorada de Barad, Andrea; ela era magra, um pouco mais alta que Barad. Tinha os cabelos castanhos, e olhos, sob um friso de alongados cílios, eram cinzas, de um brilho vivo, mas arredios. O nariz afilado... As feições são suaves, com lábios finos que parecem pronunciar só segredos... Sorridente! Tudo nela é sensualidade, e bonita a mais não poder, achou.

    – Um vasto território, a Rússia – disse ele; tinha de fazer algum comentário.

    – Mas você gostou? – perguntou Andrea em português, num tom simpático. Ela estudava língua e literatura francesa e portuguesa na Humboldt.

    – Me incomodou o conformismo final, chega a ser aborrecido – respondeu Marco, satisfeito com a conclusão.

    – Adoro o ator que fez o tio Vânia, Christian Grashof. Tenho uma amiga que conhece ele. É um sujeito exzentrisch com cara de poucos amigos. Diz o que pensa pelos personagens que interpreta. Hoje, por exemplo, ele concluiu o dia lutando pra vencer o acabrunhamento da decepção amorosa e da impossibilidade, em nossas vidas, de alterar o destino depois de certa idade.

    Ela se expressa muito bem em português. Salvo alguns deslizes, avaliou Marco. Depois seguiram para um café na Oranienburger Straße.

    – Não tenho paciência para aquelas peças encenadas na Volksbühne – dizia Barad, com voz expressiva, suas impressões dos teatros de Berlim. – A última a que assisti ali, Ernst Jünger, tinha um paredão com besouros imensos formando o cenário. Então, um sujeito, pequeno e efeminado, vestido de recruta, sob efeito de uma fúria injustificável, vem e arranca, com uma lança curvada na ponta, os besouros do paredão e rodopia com eles... Uma referência, é claro, à paixão de Jünger pela entomologia. Depois aparece um ator enorme, louro... Ator? Sei que ele usava uma farda da SS. E suspende o recruta bem alto e, enquanto bailam juntos por entre os besouros espalhados pelo palco, tenta fazer sexo oral nele. Mas o pênis do recruta pouco reage, e o general, com uns lábios inchados, como se tivesse feito aquilo várias vezes na vida, pintados de vermelho, se esforça com avidez em ativar a carne impotente... Ele já começa a cansar... Bailar, girar e, ao mesmo tempo, chupar aquele incompetente não é fácil... Ufa, alívio para o autor da peça, para o diretor, finalmente a ereção acontece, a ejaculação acontece... Uma peça genial! Aplausos entusiasmados.

    – Uma crítica ao militarismo de Jünger – disse Andrea, sorrindo.

    – É uma criatividade rasa, incapaz de instigar, ou deixar, uma simples sombra para a inteligência dar conta de entender. Prefiro peças com conteúdo e discussões sobre a alma humana... Como Tio Vânia. Isso serve aos meus textos. As vanguardas buscam a transgressão pela transgressão! Tornou-se a tradição de mediocridade. O resultado é torpe, provoca apenas fadiga. Enfim, fico com Tchekhov, Strindberg, Hofmannsthal...

    – Você escreve? – perguntou Marco.

    – Ah, colho impressões da vida berlinense, esperando um dia emendá-las numa trama. Mas antes preciso concluir os meus estudos, obter o meu Magister artium.

    – O que você achou dele? – Barad perguntou a Andrea após se despedirem de Marco.

    – Parece desconfiado! Mas talvez normal isso, não? Recém-chegado, inseguro com o idioma, querendo encontrar-se, conhecer pessoas...

    – Ele quer desesperadamente uma namorada alemã!

    – Ele é bonito. Não terá dificuldades!

    – Mal se dirigiu a você.

    – Você não o deixou à vontade com seus conhecimentos de teatro. Mas tem a festa da Karin amanhã. Ele pode vir com a gente.

    Nesta foto, Ísis, a mãe divina, amamenta Hórus, o filho concebido por um deus. A antecipação do modelo da Madona com o menino Jesus. Nesta outra, o trono de Amon-Rá, o faraó, esculpido em madeira... Vejam o detalhe. Uma mãe com uma criança no colo. É Ísis novamente.

    Assim, após uma hora, com muitas fotos e explicações, Karin deu a palestra sobre a cultura egípcia por acabada. Os convidados estavam todos sentados em círculo no chão; Marco percebeu que ele, afora Barad, era o único estrangeiro. Barad e Andrea conversavam com uma garota ruiva, cujo rosto parecia representar, com sua pele levemente enrugada e marcada de espinhas, o mapa de um solo vulcânico, avermelhado e seco. Marco não sabia para onde olhar. As pessoas ao seu lado, viradas para seus vizinhos, davam-lhe as costas. Mas se podia fumar... A luz volta a apagar-se, incenso e velas são acesos, a garota ruiva se levanta e bate num copo com um garfo, pedindo a atenção de todos:

    – Meu nome é Manuela, prazer, sejam bem-vindos! Neste momento, eu sou Adilah, aquela que apresenta a verdade e reparte as coisas com justiça. Mas como é que faço isso? Apresentando-vos a vossa princesa, da poderosa dinastia saíta, Aasiyah! Palmas para ela! E, desta vez, para um número de dança do ventre.

    Fez-se silêncio; uma melodia marcada com som dos snujs, címbalos de metal, subia lentamente de um CD player. Mas quem aparece? A mesma Karin da palestra. Que mulher! Uma Cleópatra de mil facetas... No entanto, completamente louca! Marco descobria que ela, vestida de odalisca, era bem gordinha, e inadequada para uma dança tão sensual. Escutou um alemão comentar, com voz expressiva de especialista, que, apesar dos avanços científicos, o gênero masculino não pode ainda parir nem amamentar. Por isso, é vedada aos homens a dança do ventre. Quiçá um dia a ciência resolva este imbróglio. Então, como dizia ­Nietzsche, seremos todos estrelas bailarinas.

    Aasiyah meneava-se de um lado para outro alucinadamente. As banhas contorciam-se ao redor do quadril, enquanto ela rodopiava no círculo central, roçando, com lenços coloridos, o rosto dos espectadores numa atitude supostamente sedutora. Marco sentiu-se incomodado... Os outros aplaudiram entusiasmados a longa dança de passos e inclinações... Ah, Aasiyan! Ela se esforçava para manejar os snujs e trazer vibrações positivas ao ambiente. O véu de seu rosto desprendeu-se. Marco escutou mais explicações: a queda do véu significa abrir os olhos; despertar a consciência velada da mulher... E ele pensou: sim, a mulher, este ser louco! Mas o mundo, privado dela, não passaria de uma simples cocheira. Ele também achou Aasiyah sem expressividade: era um rosto impassível no cumprimento de uma obrigação, embora houvesse naquele envolvimento com a cultura egípcia uma busca emotiva.

    Finalmente o jantar foi servido. Adilah e Aasiyah estenderam uma esteira diante de todos; o pão serviria de garfo e faca, como se faz no Cairo, em Bagdá, Damasco e Ryad, elas explicavam. Mas... E precisariam de talheres para comer tâmaras, romãs, damascos, sementes extraídas do cedro do Líbano e azeitonas? Carneiros e cabras... Não, não! A sabedoria agora é ser vegetariano!, alguém comentou. A miserabilidade das porções minúsculas, como amostras gratuitas de algum mercado oriental, irritava Marco. Ele sentia o estômago doer de fome e constrangia-se vendo todos satisfeitos com aqueles bocadinhos. Podia fumar, e havia cerveja, embora à temperatura ambiente. Aasiyah, a anfitriã, bateu palmas e esclareceu: na próxima vez beberiam uma exclusiva cerveja artesanal, cuja receita milenar, que ela guardava a sete chaves, provinha dos tempos de Ramsés II. Marco prometia a si mesmo jamais voltar ali, nem à recompensa de tal raridade. E se foi sem conhecer uma garota... Ninguém ali se interessava pela grande nação do sul da América. Chegou em casa levemente embriagado, vomitou e acordou de ressaca no dia seguinte... Parecia que gatos brigavam dentro de sua cabeça. Passou o dia de cama, faltou à Universidade.

    – Posso ser sincero, não vai se chatear? Achei a festa muito chata – disse ele.

    – Vou te levar a uma festa angolana – prometeu Barad. – E as alemãs que vão estar lá gostam da África, a nossa África. Há danças e comidas de verdade.

    – Como é no Brasil. Mas percebo que não há muitos brasileiros estudando aqui na Humboldt... Não dá para fazer uma festa só nossa. – disse Marco com um riso descontraído.

    – Se você for à Berlim Ocidental vai encontrar muitos...

    – Mas não quero conhecer aventureiros, putas, capoeiristas e tocadores de pandeiro... São só problemas!, foi o que me disseram. Estou prevenido. Mas veja só, a Andrea não tem nenhuma amiga que a gente possa conhecer?

    – Não gostou da Karin?

    – Ah, naquele tipo de festa é difícil fazer amizade, cada um na sua, não é mesmo?

    – Puxa conversa – disse Barad.

    – Falar sobre o quê?

    – Do que você faz, de Filosofia, Marx, do que gosta de ler..., isso sempre funciona. As mulheres aqui dão importância à cultura. A beleza para elas é um aspecto secundário. Mas realmente, confesso, o mundo da Karin é de orientalistas, o assunto ali era aquele: islamismo, dança do ventre...

    – E numa festa angolana?

    – Nessa pouco se conversa – respondeu Barad sorrindo.

    Angola situa-se na costa ocidental da África austral – Marco foi à ­Staatsbibliothek, que ficava ao lado da Universidade, ler um pouco sobre Angola. Confiava-se de conhecer na festa a primeira paixão; precisava preparar-se bem para encantar as alemãs, e continuou a leitura: A leste, em direção a Hasar-Enon, a fronteira se traça com o ex-Zaire; abaixo leste, ao oriente de Cades-Barne, a Zâmbia; depois, ao sul, em direção à subida dos Escorpiões, passando por Sin, se chega à Namíbia, e ao norte, às suas fronteiras terrestres, localiza-se a província de Cabinda – incrustada no velho Brazzaville, ou Congo Sedada. De Cabinda a fronteira se volta em direção à Torrente Salgada do Grande Mar; este limite serve de fronteira ao Ocidente.

    – Perfeito. Meus cumprimentos e boa sorte! – desejou a si mesmo.

    A festa realizar-se-ia no apartamento de um cabindês, Dembi Roberto. Mas a costa é banhada pelo Atlântico, o Grande Mar. O ponto mais alto do país é o Monte Moco, na província de Huambo, Marco ainda declamava o texto sobre Angola horas antes da festa. E lá chegando logo observou que havia comida à vontade: feijão de óleo de palma, calulu de peixe, funje de milho, muamba de galinha, mufete de cacusso, um peixe da família dos pércidas, consumido seco. A língua oficial da festa era o português, mas Marco escutava também alguns dialetos. Com os convidados, os simpáticos anfitriões falavam a língua de Fernando Pessoa. Então é verdade... Barad está certo. Tudo muito bom e farto!, pensou ele. Estes sim sabem viver, nada de mixurucagem, de embrião de trigo e cascas de cedro. Se Aasiyan estivesse aqui certamente a fariam livrar-se daquele rosto inerte, insosso, com o qual ela remexia os quadris, como se estivesse apresentado um seminário sobre o córtex órbito-frontal medial e o córtex motor... Todos dançavam. E as mulheres? Especialmente as alemãs... Danças alegres, sensuais... Marco aproveitou para ensaiar alguns passos de lambada, que estava no auge da moda. Embora fosse um péssimo bailarino, sentiu-se muitíssimo bem e integrado. Adaptou-a ao funana, ao kuduro e à coladeira – danças angolanas. Não parou um minuto. Se não estava dançando, ria dos sotaques. E as diferenças culturais? Mas tão próximos... Brasil e Angola! Chamaram-lhe a atenção as inúmeras belas europeias namorando africanos. Estes usavam ternos, calças curtas de algodão, sapatos escuros e meias brancas, lenços enfiados no bolso do paletó, cordões de prata no peito, ouro nos dentes... Por que ninguém se interessava por ele? E às duas da manhã Marco sentia a cabeça leve de embriaguez. Também cigarros de haxixe foram acesos e passaram de mão em mão; ele começou a imiscuir-se nas conversas alheias, apresentando-se como brasileiro e estudante universitário. E insistia em explicar às alemãs que ele e os angolanos falavam a mesma língua. Ich weiß, ich weiß! – elas respondiam que sabiam, e uma e outra começavam a irritar-se com ele. Algumas estudavam o kikongo... O que é isso? Um dialeto. Ah, desculpe! Para não ficar atrás, discorreu sobre Nietzsche e a morte de Deus... Conversou com Andrea, sentia-se garboso, e fê-la rir com seus passos de lambada destrambelhados. Estava tão obstinado em seu propósito de conquistar uma alemã, que não lhe ocorreu que houvesse algo imoral em galantear a esposa do irmão de Dembi, o anfitrião da festa. Falava com ela sem cessar, e sobre tudo o que lhe vinha à cabeça. Ela parecia corresponder... Talvez ele houvesse confundido atenção simpática com interesse pessoal. Forçou-a a beijá-lo. Bem, foi daquele jeito... Sentiu a pressão de uma mão pesada na nuca, que o empurrava da porta para fora, e o esposo da bela loura agora gritava para seus amigos:

    – E não é que este pula brasileiro anda aqui a bumbar feio pra minha gaja, querendo dar uma queca? Ainda que ache que acompanha o ritmo e a nossa mainada.

    Foi jogado aos degraus da escada por uma trupe de africanos indignados. Por sorte, Andrea e Barad já haviam partido; teria morrido de vergonha... Como não conhecia os outros, lamentou-se apenas de que as costelas doíam.

    Marco confessou a Barad parte da história. Ou melhor, o que lhe aconteceu dias depois. A impressão de Barad, após escutá-lo, era que o amigo não esperava risadas de suas confusões nem aceitação de uma fraqueza. Ele buscava conselhos, mas indiretos. Era como se a reação de Barad, quer dizer, os comentários decorrentes de sua surpresa, fossem suficientes para ele orientar-se em Berlim, evitando futuros desastres. Simples assim! Eis a história de Marco:

    Perto da Karl-Marx-Allee, um cinema de arte trazia um documentário sobre a tomada de Berlim pelos soldados soviéticos e os estupros por eles perpetrados. Um tema tabu entre os comunistas do Leste e ignorado pelo Ocidente. Mulheres entrevistadas falavam da dor que permanece para não mais sair; algumas diziam que os mais terríveis eram os asiáticos do Exército Vermelho: uzbeques, chechenos, tártaros, mongóis... Havia fotografias chocantes – as mulheres como vítimas da política estúpida dos homens. Nos anos seguintes, a triste consequência: suicídios, filhos indesejados, abortos. Marco encontrou o documentário numa revista de cultura, a zitty. Achou bom ir, teria assunto para conversar com Barad e Andrea, e tudo de Berlim deveria atraí-lo.

    Em meio à projeção, o cinema lotado, sentou-se entre duas mulheres. Uma delas encarou-o interrogativamente, retribuiu com um sorriso. Isso era de péssimo gosto, um mau sinal. O que ele queria? Seria algum sádico que procurava excitação e masturbava-se vendo a violência da soldadesca? Reagiram: O que você quer aqui, afinal?. Ao redor, aumentava a tensão: todos esperavam sua resposta... E isso parecia bem feito para ele... Ele era uma espécie de homem doente no lugar errado... Ninguém prestava mais cuidados ao drama da guerra... Marco pouco podia fazer, salvo balbuciar: Estou sendo vítima de racismo. Racismo? Só uma idiotice dessas mesmo, responderam. Na saída, investiram contra ele, como se o ódio e a frustração, retratados no documentário, saíssem da tela e descessem sobre todos ali. Voltou para casa... ainda duvidando de que tinha conseguido escapar.

    – Havia lá sim uns caras vestidos com casacos longos, que usavam cabelos compridos, amarrados em rabo de cavalo, e óculos. Com um livro e uma caderneta de anotação enfiados na bolsa a tiracolo... Sabe, sujeitos que saem de casa para diagnosticar as doenças da cultura, participam de algum evento cultural e logo depois procuram um café onde possam beber uma taça de vinho... Mas pra eles o remédio que eu merecia era uma pisa bem dada, aplicada por aquelas feroces. Você ri, Barad?

    Enquanto ele falava, um homem pequeno veio e recostou-se no imenso banco do pátio da universidade, bem ao lado de Barad. Tinha o rosto pálido e os olhos vermelhos, lacrimejantes, ligeiramente puxados. Sentou-se resfolegando, cruzou as pernas, acendeu um cigarro e lá ficou. Marco julgou-o estrangeiro. De repente começou a falar em português (a voz era pausada, esforçada):

    – Já ouviu falar da cidade destruída pela ira de Deus, onde morava Lot e sua mulher, aquela figura curiosa transformada em estátua de sal? Lá todos eram depravados, dos velhos aos jovens, dos jovens aos velhos. Meninos de 13 anos, homens de 31 anos, velhos de 62 anos, todos possuíam um só interesse: conduzir anjos para fora de suas moradas a fim de conhecê-los na intimidade.

    – Quem é ele? – perguntou Marco baixinho a Barad.

    – Ah, este é o Dias. O Dias é o autor de uma versão do Manifesto Comunista, didático e em linguagem simples, para metalúrgicos do ABC paulista. Ganhou prêmios e reconhecimento da esquerda internacional.

    Dias beirava a meia-idade e, se lhe perguntavam o que pretendia com aquela vida de eterno estudante – mesmo aos cinquenta anos de idade –, respondia num sussurro: Oh, vocês vão ver, meus jovens, o tempo não é pra brincadeiras. Hoje se tem vinte anos, num piscar de olhos, nos transformamos numa carcaça de sessenta. E com vinte e poucos anos viera à Alemanha, fugindo da Ditadura Militar. Barad gostava muito dele... Mas ele não ia com frequência à Humboldt. Frequentava a Universidade Livre, localizada no outro lado da cidade, a parte ocidental, onde residia.

    – Ninguém se lembra mais daquilo. Tudo esquecido! – disse ele, referindo-se à sua versão do Manifesto.

    – Você mora há muito tempo aqui?

    – De exilado da Ditadura, fui ficando, ficando... Faço Lateinamerikanistik, estudos da cultura e da literatura da América Latina. É o que você quer saber e ele aqui ia dizer – Dias pousou a mão calejada no braço de Barad. Em seguida, acendeu, alheio, um novo cigarro. Era moreno, magro, de feições tristes e cansadas, calvo; usava barba malfeita, com fiapos brancos e manchas cinzentas. Tragou o cigarro e disse:

    – Demoníaca paisagem de onde brota tal erva – e ficou a mirá-lo entre os dedos.

    Barad zombou furtivamente de Marco, que parecia impressionado.

    – Marlboro polonês! – acrescentou Dias.

    – É mais barato que o alemão, não é?

    – Ah, você o encontra facilmente nas estações afastadas do metrô, vendido pelos polacos. E estes se vestem de roupas desbotadas, têm um aspecto sofrido, amargurado, castigados que foram, durante décadas, pelos opressores nazistas e stalinistas. Os pacotes de cigarro ficam expostos sobre caixas de papelão. Com isso, fica melhor para escapar da polícia.

    – Contrabando?

    – Tem gente que acha o gosto ruim, Dias... – murmurou Barad.

    – Gosto ruim, não. Menos industrializado, o que o faz mais saudável a nós, os

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