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Bicho Solto
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E-book346 páginas5 horas

Bicho Solto

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Sobre este e-book

Hosmany Ramos, É um desses autores cujo prestígio e fama ultrapassam as fronteiras do Brasil. Dono de um estilo inconfundível, que joga com situações que viu, viveu e conviveu, consegue resultados estupendos na estória curta, que exige ação concentrada. Suas histórias repletas de tensão e criatividade fazem uma severa crítica à sociedade de desigualdades, abordando temas polêmicos como a violência urbana, a corrupção política e policial, as drogas, a problemática carcerária.
A alta qualidade do seu texto e a originalidade da sua obra, provocou tanto interesse que acabou descoberta pela prestigiada editora Gallimard de Paris, que publicou dois dos seus livros. Neste “Bicho Solto”, o autor com linguagem lúcida e estilo econômico, faz uma crítica social sutil, com um tipo de piedade que pode parecer cruel. Destacam-se seus diálogos e monólogos, quase sempre impregnados de ironia e sátira; numa prosa cheia de graça e espírito, rica de imaginação e de olhos de artista que sabe ver e avaliar a crueldade do mundo em que vivemos.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento23 de nov. de 2011
ISBN9781466008373
Bicho Solto
Autor

Hosmany Ramos

Hosmany Ramos um dos mais polêmicos personagens da vida social e literária Brasileira, não se sabe onde começa a ficção e termina a realidade. Hosmany, que publicou vários livros por pequenas editoras brasileiras, está sendo relançado internacionalmente com todas suas obras classicas mais varios titulos inéditos nunca publicados e sò disponeiveis em versão digital.

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    Bicho Solto - Hosmany Ramos

    Published by Hosmany Ramos at Smashwords

    Todos os direitos reservados.

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    Outros livros de Hosmany Ramos

    Gravata, Plomo & Plata

    O Goleador

    Sequestro sangrento

    Sindrome da violencia

    O Dossiê Colombiano

    Contos do xadrez

    Pavilhão 9

    Delitos obsessivos

    Olho mágico

    Queima de arquivo

    Ladrões de banco

    Marginalia

    Agradecimentos

    Agradeço ao meu primeiro editor Itagyba de Oliveira, que publicou meus dois primeiros livros: Síndrome da Violência e Queima de Arquivo. Agradeço também ao pessoal da extinta editora Clube do livro, que premiou e editou Marginália - que acabou encantando aos franceses.

    Muito obrigado a Luiz Fernando Emediato, meu editor, que é também um amigo e revisor, e a Rose Diniz, Ana Paula Anselmo e o resto da família na Geração; e ao Patrick Raynal, meu editor na Gallimard.

    Um agradecimento especial ao meu tradutor Michel Goldman, e ao Maurice Dantec que prefaciou meu livro na França; e, é claro, ao Milton Severiano, Paulo Condini e Marçal Aquino, pelo preparo do texto de Pavilhão 9, Seqüestro Sangrento e Mulheres Perigosas.

    Pela colaboração, merecem todos, meus sinceros agradecimentos.

    Hosmany Ramos

    "Não se aprende, Senhor, na fantasia, sonhando,

    imaginando ou estudando, senão vendo, tratando e lutando."

    Camões, Luiz. Os Lusíadas.

    "Quem tem a chama de um ideal poderoso tem o dever absoluto

    de levantá-lo acima das cabeças de seus companheiros."

    Romain Rolland

    As pessoas e instituições mencionadas neste livro são imaginárias e nada têm a ver com verdadeiras pessoas ou instituições.

    O Autor

    Apresentação

    Aí está Bicho Solto. Não sei se ele é uma forma significativa de arte. Não sei o que seja arte significativa. Imagino que haja arte apenas, e pouca e sem preço. Um bom livro, é raro... Por isso, para escrevê-lo, desenvolvi a obsessão e o hábito de acumular anotações pormenorizadas; pesquisar temas à exaustão e investigar os impulsos inconscientes do comportamento delituoso, sendo meticuloso e observador; usando o sexo e a violência com sérios propósitos artísticos e não apenas para causar impacto.

    Retratei aqui, a aventura dessa gente antisocial, marginalizada; utilizando o linguajar deles: jeitos, gírias e sintaxe malandra, mostrando a vida desconhecida das favelas e prisões - locais onde mais se canta e onde mais existe espírito comunitário. Abordei fundo a complexidade dos problemas das drogas e do tráfico, a violência urbana e a corrupção; aspectos da vida brasileira eternamente deixados de lado, adiados no aguardo do escritor-marginal, que mergulhasse fundo e enfrentasse a temática com coragem, descarnando-se num conflito mortal, até ver quem sobra e o que sobra de cada lado. Enfim, uma literatura de soco e porrada, digna dos escritores que tiveram compromisso com a coisa genuinamente brasileira. Homens que brigaram e se consumiram por um ideal; e que não usaram a arte literária, como uma máscara de vaidade ou mecanismo esperto para ganhar prêmios, engordar currículos e conquistar cadeiras na academia.

    Tudo que tenho feito na minha vida, tem sido precário. Mesmo quando termino um texto elogiável, não fico satisfeito; fica sempre um gosto de frustração. Detesto correr atrás do sucesso, e não sou competitivo. E, na esfera emocional, fui e sou um frustrado: amorosa e familiarmente, tudo foi um nada. A verdade é que não dei muita sorte na vida... E é este sentimento de culpa, que transparece nas entrelinhas - ótimo para espíritos intensos de vulcânica agitação e sublime vibração. Nesses quase 20 anos de prática literária diária, houve longos espaços de paixão maluca e também períodos de esmorecimentos inexplicáveis. Alternâncias de períodos de máxima produtividade, com fases onde a produção beirava a zero. Mas fui aprimorando. Reescrevendo e escovando cada frase, buscando o máximo de perfeição e levando tudo numa boa; pois afinal, este fascinante ofício possibilitou que eu construísse minhas pirâmides literárias, chegando mesmo a ser traduzido.

    Há quem sustente ser a crônica moderna um produto tipicamente brasileiro, cabendo ao mestre Machado de Assis a definição dos seus princípios, hoje consagrados. Na estória curta, o autor pode levar a termo seu propósito, plenamente e sem interrupção. Durante o período da leitura, a alma do leitor está sob o seu controle. Hoje, temos necessidade de literatura curta, impactante e concisa; ao invés da extensa, prolixa, detalhada, inacessível... É um sinal dos tempos da era da informática, quando o homem é forçado a escolher o curto, o condensado, o resumido, em lugar do volumoso - objetividade em substituição aos devaneios, como queria. Puchkin, para quem a tensão e a concisão, eram as principais qualidades da prosa.

    Vivemos num mundo fora dos eixos, onde muitas vezes, a lei é manipulada tendo em vista o lucro e o poder. Um mundo repleto de injustiças e guerras onde a civilização inventou uma variedade de armas letais, servindo-se delas, com o mesmo prazer imbecil de um gangster que experimenta sua primeira metralhadora. Um mundo, onde o assassínio, que apesar de ser uma frustração do indivíduo e um ato de crueldade infinita com sérias implicações sociológicas, é uma coisa tão banal hoje em dia, que deixou de ser notícia de primeira página dos jornais. Daí, o autor encontrar enormes dificuldades para abordar os assuntos de crimes, amarrar o enredo, conseguir boas cenas e responder suas próprias perguntas; já que toda forma de arte, exige um pouco de redenção de forma a transformar o mundo, tornando-o um lugar mais seguro para se viver, sem todavia ser sufocante demais para não valer a pena nele estar.

    Confesso que sofri influências de bons escritores que me marcaram: Graciliano, Euclydes, Jorge Amado e outros... Com Dalton Trevisan, absorvi a dicção proletária, o cenário da ‘boca-do-lixo’ e um certo gosto pelos anti-sociais. Do Celine, aprendi a linguagem enervada que postula ser emoção, quando é puro trabalho de estilo. Com Flaubert, aprendi abandonar todo clichê e todas as ‘idéias-feitas’, antes de contar a minha estória. Com Dostoievsky, aprendi a não levar as coisas muito a sério, desenvolvendo um faro apurado para as pequenas taras e a consciência da falta de sentido da vida. Entretanto, sei que jamais serei capaz de conceber um romance social tão acerado quanto Madame Bovary ou uma tela tão variada quanto crime e castigo; mas convenhamos que Raskolmikov seria aprendiz, comparado com os criminosos dos nossos dias.

    Não tenho nenhum desejo de atingir com minha escrita o nível mais alto de realização literária. Francamente, não sei o que seja isso. Sei entretanto, que o que é escrito com talento, exprime esse talento; e que um escritor que tenha demonstrado anteriormente, ser capaz de conceber autêntica ficção, não produz ficção inautêntica. Por isso, procuro sempre que posso, fazer uma desconstrução revolucionária, não só da linguagem, quanto do material de ficção, buscando eliminar a crosta de maneirismos característicos dos textos importados, mostrando o nosso quintal, baseando-me em fatos e inventando a partir de acontecimentos vividos. É óbvio, que algum crítico possa considerar que meu texto não passe de uma crônica exagerada das mazelas prisionais e da violência das ruas. Mas, para mim isso não tem a mínima importância, já que, o que importa, é que esteja bem escrito e seja capaz de satisfazer ao leitor.

    Meu sonho de consumo, hoje, é a literatura. No princípio era literatura, e a literatura já era deus... O ser humano, caracteriza-se, na verdade por uma grande estupidez. Ele só descobre que algo é fundamental, após um grande sofrimento. Lidar com a palavras, foi para mim uma maneira eficaz de preencher o tédio e escapar da loucura, da melancolia e do temor-pânico inerente à condição prisional. A prisão é o mundo da cultura do terror... onde os personagens vivem um clima intenso e asfixiante de uma atmosfera depressiva, reveladora dos impulsos secretos da natureza humana. Contudo, através da escrita foi possível redescobrir a sensibilidade e solidariedade humanas, contrapontos indispensáveis à vida solitária e angustiante privada da liberdade.

    Acredito, que hoje, mais que nunca, precisamos de uma literatura que exponha e evicere as nossas áreas de vida; sobretudo, mostrando que temos necessidade de escrever sem nos distanciarmos do povo. Temos necessidade de uma literatura que reflita a vida operária, o futebol, as prisões, a violência urbana e tudo que possamos chamar de radiografia brasileira. Por isso, em linguagem pessoalíssima, abordei os dramas das mil vidas do submundo da marginália, que afinal, é a identidade brasileira autêntica. Com minha característica própria de estilo, reagi contra a divagação, a filosofia, o comentário e a descrição supérflua, para conseguir um resultado impactante e objetivamente cru, despojado de retórica, e de efeito surpreendente.

    Acredito que este, será meu livro de saideira. Por isso, procurei fazer com que ele fosse prazeiroso de ler, deixando de ser uma concatenação fatigante de idéias - já que é fácil abusar do estilo realista. Pode ser, que ele nem seja uma obra genial, já que ninguém sabe o que é bom e literatura; mas procurei levar o drama existencial ás últimas conseqüências, e compus com temperatura emocional elevadíssima, o material psicológica dos meus temas. Às vezes, excedendo os limites sem destruir o lado bom, recapturando o espírito, a inocência e a arte da escrita, sem usar maquilagem e jogando limpo, sem qualquer medo de me exceder.

    Aqui, optei pela abolição total e extrema da estrutura formal, levando em conta a precisão e a brevidade como as principais metas. Também, adotei uma linguagem coloquial, suportada por uma completa ausência de forma literária no sentido em que ela é entendida. Se as coisas da vida não tem estrutura de composição, por que minha escrita haveria de ter? por que a literatura deveria ignorar o lado marginal da vida, suas desordens e suas maluquices? Escrevo aquilo que vi, vivi, convivi e aprendi da vida, de mim mesmo, deste mundo que sofri e me arranhei; mundo cão e sublime, coerente e contraditório. No texto, falo de minha experiência com os marginalizados, buscando transmitir suas emoções e o que aprendi com eles; minha experiência do outro lado do muro e forma de ver as diferentes justiças. Pincelo com tons fortes, o amor e a morte, o ódio e a alegria, o sexo e as anomalias psicológicas, buscando sempre um tipo de piedade que mesmo parecendo cruel, está quase sempre impregnada de graça e espírito, que proporcionam cenas emocionantes.

    Meu convívio com a alta sociedade carioca, possibilitou que eu captasse a vazia atmosfera sophisticated das socialites, e descrevesse com um tom irônico, esse mundo de belas toaletes e falsos sentimentos, onde os protagonistas e os incidentes não representam senão um elemento de impressão e emoção, da experiência vivida.

    Nós, prisioneiros do texto, somos como Sherazade: vivemos graças ao sortilégio das palavras. Por isso, incluí aqui algumas crônicas - publicadas no Hoje em dia, de Belo Horizonte - , que espero toquem o leitor, plenamente e sem interrupção. Pois foi graças ao garimpo dos temas, nos atalhos esquisitos e complexos da luta contra as palavras, que minha inspiração encontrou a intuição natural que possibilitou a concepção deste livro, sem um pingo de revolta ou ódio contra a sociedade e contra o mundo.

    O Autor

    Indice

    Copyright

    Agradecimentos

    Apresentação

    Contos

    1. Bicho Solto

    2. O médico e o monstro da mídia

    3. O cleptomaníaco

    4. Pacto com o diabo

    5. Odisséia do sem-teto

    Crônicas

    1. O lado negro do escritor

    2. Cenas de um casamento

    3. Quando o bicho pega

    4. Encontro casual

    5. Oisive jeunesse

    6. Tatuagens

    7. Até que a morte nos separe

    8. Política dos cadeados

    9. Caolho, o matador

    10. O cadilac do bicheiro

    11. Dinheiro, o ‘deus’ do mundo

    12. O assassino canhoto

    13. A dor da facada

    14. A vaidade dos ricos

    15. Loura gelada

    16. Domingo na prisão

    17. Sem intenção de matar

    18. Máscara da insanidade

    19. Jogo de xadrez

    20. Metamorfose prisional

    21. Procurado por latrocínio

    22. Sementes da violência

    23. Suicídio: modo de usar

    24. Hospital de Pronto-Socorro

    25. Liberdade perigosa

    26. Ao vivo e em cores

    27. Ciranda da morte

    28. Amor bandido

    29. Álbum de família I

    30. Álbum de família II

    Conto Novela

    1. Um corpo no Tietê

    2. Justiça das selvas

    3. Sangue na Eutanásia

    4. Obsexsão prisional

    5. O maníaco do parque

    6. O Autor e sua Obra

    1. Bicho Solto

    "Esta história não foi escrita para ser um libelo ou mesmo uma confissão, e menos ainda uma experiência - pois a droga não é uma aventura para aqueles que se viciam.

    Procurei aqui relatar o destino de uma parcela da juventude, que como eu, mesmo tendo escapado das balas da polícia e das algemas da justiça, acabaram destruídos pelo vício."

    Capitulo 1

    Quando nasci, acho que Deus esticou o dedo, olhou para mim e disse: - Esse é o cara que eu vou sacanear... Por isso, nasci sujo de arara, com anu preto pousado no mapa do destino. Nunca cheguei a saber quem foi meu pai e, da mamãe nem cheguei a conhecer. Me contaram que a mulher que me pariu, logo depois do parto sofreu complicações de hemorragia e não agüentou. Pouco antes de esticar, convocou a freira do hospital e autorizou que eu fosse doado a uma família. Acabei indo para um casal de alcoólatras que cuidaram de mim aos trancos e barrancos, desforrando os revertérios das ressacas. E, de tanto apanhar, me tornei um verdadeiro revoltado. Fui alimentando calado o meu ódio, até não agüentar mais e fugir de casa. Fui viver na rua por conta própria, misturado com a molecada da praça, levando a vida como podia. Logo aprendi afanar carteira, chavecar bebum, levar recado de traficante, bancar farol em ponto de venda de droga... Qualquer coisa que desse pró gasto e pra me defender. De vez em quando, dava uma escorregada e os homens me ganhavam e me metiam numa FEBEM. Mas a fuga dali, era moleza. Não ficava recolhido por muito tempo. E foi assim, que fui crescendo e me viciando nas drogas. Passava grande parte do meu tempo, montado numa arma esperando um loque recheado para assaltar. E ali, na tocaia, revia o passado e concluía que o homem lá de cima, havia pegado pesado comigo. A minha caminhada não havia sido mole. Tinha que ganhar respeito e fazer nome na malandragem sem vacilar. Já que escolhera o caminho do crime, o negócio era partir pras cabeças. O sofrimento, não foi meu único traço de caráter para me diferenciar dos meus comparsas. Estranhamente, eu recusava desde cedo a apoiar qualquer forma de violência gratuita, considerando-a desnecessária uma vez que a vítima estivesse dominada. Além disso, eu detestava o álcool; pois havia aprendido que os criminosos que bebiam, cometiam erros primários. Eu era do tipo perfeccionista e não me contentava simplesmente em participar de lanças. Queria me destacar escalando os degraus do submundo pelo escopo de minhas aspirações, alimentando sempre minha ambição irrequieta. Entretanto, por mais que me esforçasse não conseguia tirar o pé do lodo. Eu parecia atolar cada dia mais. Só tinha eu por mim, e isso era muito pouco. Quase nada. E foi assim que acabei com meus costados no morro da Lacraia; nas bocas escamosas onde a barra é pesada e a ordem é a do salve-se quem puder. Porém, fui levando como podia, encarando as sobras e enfrentando a fome e o frio. Claro que me machuquei muitas vezes, e fiquei no prejuízo. Mas, por não ter colo para chorar, segurei as pontas e me tornei bicho. O que conta, é que acabei escolado. Abri os olhos, aprendi os macetes e escolhi meu rumo. Agora, eu posso refletir sobre a diferença entre a vida nos bairros e a vida nos morros. La em baixo, é tudo organizado e sinalizado. Aqui em cima, em cada quebrada tem uma arma prestes a explodir. É cada um na sua. A vida dos outros, não interessa. Tem que ter humildade e tratar a todos, com respeito; sobretudo, agradas às crianças e pagar simpatias para as ‘minas’ popozudas.

    O morro sempre foi discriminado. Dizem que é o reduto da moçada da pesada que não gosta de encarar um batente. Quando a polícia chega é um deus-nos-acuda. Quem deve, sai no pinote. Aqui é a morada da morte. Um lugar de muitos crimes, traições, cagüetagens e adultérios. Nos finais de tarde, a pelada corre solta no campinho do escondido. É a maior zorra. A catimba comanda o espetáculo, acompanhado pelas ‘minas’ do pedaço. Boleiro bom, ganha sempre a melhor ‘mina’, falando pra ela um montão de coisinhas bonitinhas. As apostas são na base da maconha. Os ganhadores, curtem adoidado...

    Fico ali admirando aquele cenário de miséria. É um amontoado de casas improvisadas, cortadas por vielas estreitas e que aparentam uma fileira desordenada de cabinas de banhistas, salpicadas por casas de tijolos coroadas por antenas de tevê, contrastando com rústicos estuques zincados. A paisagem é complementada por igrejas, escolas, armazéns, barbearias; onde o formigueiro humano de todas as raças e idades tranqüilamente exercem o direito de ir e vir. Observo uma mulata vistosa com traseiros grandes e pernas grossas que desfila à vontade. Ela passa por mim, joga um olhar e exibe uma dentadura perfeita, num largo sorriso. Os seios fartos, começam saltar fora do decote apertado e balançam acompanhando o ritmo ofegante da respiração. Então eu falo:

    - Onde vai com todo esse charme?

    - Vou trampar. Beleza não põe mesa...

    Já passava das nove da manhã e a moçada do batente se agitava para o trabalho. Ando até o barraco do Tota onde os demais já se encontram. Estão todos sentados na sala: o lépido Negritinho, o mais atlético de nós, que, foi bronze numa olimpíada até ser flagrado no dopping. Babalu, o músico, que carrega seu violão e sonha aparecer um dia na televisão. Lico, que prática surf nas horas vagas, e fala de mulheres o tempo todo; ele jura que já comeu mais de uma centena delas. Além de mim, que sou conhecido como Bicho Solto. Quase todos temos dezessete anos. Está ali também: Foguinho, um moto-boy boa-pinta que adora roupa de griffe e óculos escuros. Mané gordo, também da nossa idade, motorista de mão cheia e especialista em fazer ligação direta em carros, que mostra uma penca de chaves-michas, e ainda leva uma: - Tá pra existir um carro que não consigo puxar... Zé Flautinha, um criolo olhudo que não pensa em outra coisa senão num baseado e um gole de pinga; e finalmente, o Tota, o líder da bocada: musculoso, tatuado, ex-presidiário, com um bronzeado bem cuidado, cabelos na moda, e uma inteligência visionária para descolar altas lanças, boas drogas e pinotes sensacionais.

    Estávamos ali no aguardo do crack. Ficamos impacientes, porque o cozinheiro adicionava muita pinga na mistura. Finalmente Tota grita:

    - Manera aí, ô Galo Cego! Se manca que o bagulho vai ficar fraco demais.

    Irritado, o Galo cospe no chão e rosna:

    - Você tá ligado que eu manjo da mistura! Portanto, fica na tua e não amola...

    Foguinho sorri:

    - Esse crack ou invés de ligar, vai dar porre.

    Galo Cego não diz nada. Continua mexendo a grossa mistura, tirando a espuma pelas beiradas, acrescentando bicarbonato de sódio e pasta de cocaína. Diz:

    - E o Baianinho com seu irmão? Não apareceram?

    - Você não tá ligado? Rodaram ontem à noite, nas mãos dos tiras da DRF.

    - Não diga! Esses tiras são mesmo uns escrotos. Levam a grana da gente, e ainda recolhem os parceiros.

    - É isso aí! Marcou bobeira, dançou. Não tem boi. Os home não dão colher de chá e tem gente que nasce sujo de arara e não consegue tirar o pé do lodo.

    Escutei aquilo e imaginei a situação do Baianinho. Veio na piorada da Bahia e conseguiu se atolar mais, no Rio de Janeiro. Chegou sozinho e teve que se valer por si mesmo. E era pouco, na selva de pedra, onde o jogo é bruto e a ordem é a do salve-se quem puder.

    - O Baianinho era ponta-firme. Encarava a sorte como dava. Claro que se estrepou e saiu no prejuízo. Mas agora, vai ter que segurar as pontas e puxar uma cadeia, de olhos abertos. Aprender os trampos e os macetes e acabar se entortando ainda mais.

    - Tem razão! A cadeia é uma maneira muito cara de piorar uma pessoa. Cara demais!

    Tota olhou para todos, quando o crack foi resfriado. Sabia o que tínhamos em mente. Aproximou-se do tacho da pedra, e começou a cortar e pesar, dizendo:

    - Cuidem bem dessa mercadoria. É coisa de primeira, que não se encontra em qualquer lugar.

    Negritinho carregou o cachimbo, ateou fogo e passou de mão em mão. Tota ficou com cara de bobo, enquanto todos gargalhavam à sua volta.

    - Isso vai ligar no barato, e logo estaremos prontos para umas e outras - disse Babalu.

    - Vai devagar! - recomendou Tota, como se preocupasse com o bem-estar dos demais. Parecia o paizão de todos. E, como se quisesse demonstrar que não era controlador, distribuiu o restante da droga, em porções equivalentes para cada um, em separado.

    Sentamos no Bar da esquina e pedimos uma cerveja bem gelada. O vento do mar, uiva sobre os telhados de zinco suavizando o calor do verão. Jogamos dominó e discutimos futebol, fumando cigarros e trocando idéias. Poderíamos ficar ali, uma eternidade se não fosse pela passagem da viatura policial; quando nos entreolhamos. Alguém então diz: - Esses tiras são uns canalhas - e mergulhamos num silêncio contido.

    Negritinho pergunta:

    - Vocês viram o que aconteceu com o Zóio?

    Todos conhecíamos as façanhas do Zóio. Era um sujeito parrudo que manejava uma arma com incrível perícia. Foi às custas da sua arma que havia feito nome no crime. Transformou-se num bandidão respeitado e temido. Nele, não existia uma mínima gota de perdão. Tudo que conseguira fora na base da violência. E sua maior neurose, era quando alguém duvidava da sua coragem. Teve uma mão, que ele se meteu numa briga de Bar, e acabou matando dois sujeitos na bala. Os sujeitos duvidaram da sua coragem e ele não regateou: sacou da pistola e mandou azeitonas quentes nos dois. Por essa e outras, o Zóio virou o terror do pedaço. Até que se apaixonou pela mulata Florzinha, uma protegida do mestre da escola de Samba. Esperta, ela tirou ele numa boa. Foi levando tudo na inteligência e ele acabou gamado na embaixada da mulata. Ela quis sair fora, mas levou uma prensa e acabou cedendo por força da congesta. Com o tempo, acabou arrastando ele para uma podre. Ela trabalhava na casa de um bacana e deu o serviço: - Tem jóias e dólares de montão!

    Na verdade aquela lança não podia ser feita com um único homem. Então, ele escolheu o Paraná, um sujeito magro e calmo, que facilmente se deixou convencer que a lança era uma boa. Quando saíram para a colheita, ele notou que o Paraná estava montado:

    - Pra quê essa arma?

    O Paraná sacou e mostrou a pistola, dizendo:

    - Só vou na lança, armado. Vai que acontece um desacerto e os home pintam na parada?

    Zóio anuiu pois não tinha a mínima idéia do que estava por vir. Ele sabia que um roubo, às vezes, representava uma desgraça, mas naquele caso especial, a lança estava dada. A mulata havia passado que a família viajava todo fim de semana para o litoral, deixando na guarda um vigia armado.

    Partiram para o assalto, que incluía a rendição do vigia e a entrada na mansão. Foi uma moleza, render o vigia e tomar sua arma. Depois, trabalharam apressados no interior da casa, ensacando tudo que consideravam de valor. Na saída, a polícia acionada pela vizinhança, deu voz de comando. Assustados eles se entrincheiraram na residência, e o Paraná revidou com tiros, a investida dos policiais. Quando o Zóio ia pular a janela, foi atingido por um balaço nas costas e acabou sendo levado para o hospital.

    Antes de irmos visitar Zóio no hospital, fiquei horas refletindo sobre os perigos de um assalto. Os ladrões conceituados eram para nós, uma espécie de guias e mesmo, uma espécie de bússola para o futuro. Às vezes, zombávamos deles, lhes criticávamos, mas, no fundo, admirávamos eles. A idéia que roubar era uma arte, juntou-se aos nossos pensamentos como uma espécie de sabedoria. Mas o primeiro morto que vimos tombar num assalto, abalou nossa convicção. Tivemos que reconhecer que traficar era menos perigoso que assaltar. Entretanto, as alterações da lei com a criação dos crimes hediondos e aumento das penas, ruiu toda nossa concepção de dinheiro fácil, que o mundo do crime nos havia ensinado.

    Enquanto o perigo aumentava, sentíamos que a miséria era a grande ameaça. O pavor da pobreza era mais forte e por isso, saíamos à luta, ignorando os perigos, nos encontrando, sobretudo terrivelmente sós - e, sós, nos tornávamos presas fáceis nas mãos dos chefões do tráfico.

    Chegamos ao hospital e constatamos que o movimento era enorme. Os corredores estavam repletos de feridos sobre macas. Perguntamos em vários setores, por Zóio, até localizá-lo na enfermaria de recém-operados. Ele nos recebe, agitando discretamente as mãos e recomenda ao Tota, que apanhe os seus pertences. Explica que além do relógio e carteira com dinheiro, existe também sua arma. Tota concorda com ele, e promete providências. Todos nós observamos que ele parece em péssimo estado de saúde e possivelmente não escapará das complicações pós-operatórias.

    - Está sentindo muita dor? - Tota pergunta.

    - Não muita. Tiro não dói. O

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