Racismo Hoje: Portugal em Contexto Europeu
De Jorge Vala
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Jorge Vala
Jorge Vala é doutorado em Psicologia Social pela Universidade de Louvain. Foi Professor Catedrático do ISCTE‐IUL e é Investigador Emérito do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa. A sua pesquisa focou inicialmente a aprendizagem da violência, depois, os conflitos entre grupos organizacionais e, posteriormente, centrou‐se no estudo da identidade e dos sentimentos de justiça e legitimidade associados aos conflitos decorrentes do racismo, do preconceito e das migrações. Foi Professor Convidado em várias Universidades estrangeiras e recebeu o Prémio J.P. Codol da European Association of Social Psychology e o Prémio Carreira da Associação Portuguesa de Psicologia . Os seus trabalhos estão publicados em livros e em revistas, nacionais e internacionais.
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Racismo Hoje - Jorge Vala
Introdução
Como compreender a presença do racismo e da discriminação racial nas sociedades democráticas contemporâneas?
O título deste ensaio anuncia o tempo e o lugar em que procuro contribuir para responder a esta pergunta. Uma reflexão a partir dos tempos de hoje, em Portugal, um país europeu. É este o contexto para o conhecimento sobre o racismo e a discriminação racial e para a reflexão sobre os fatores que podem levar à sua compreensão, num clima político europeu onde alguns dos valores fundamentais da democracia se encontram sob ameaça.
A atualidade da pergunta que proponho está bem patente nas palavras da presidente da Comissão Europeia no seu discurso de 17 de junho de 2020: «Como sociedade, precisamos de enfrentar a realidade. Precisamos de lutar incansavelmente contra o racismo e a discriminação, a discriminação visível, mas também o racismo e a discriminação mais subtis — os nossos preconceitos inconscientes. Todos os tipos de racismo e discriminação! No sistema de justiça e aplicação da lei, nos mercados de trabalho e habitação, na educação e saúde, na política e na migração.»
Este imperativo pressupõe uma reflexão coletiva, investigação científica e decisões políticas corajosas.
Os resultados de investigação em ciências sociais, nomeadamente em psicologia social, aqui reunidos visam responder à pergunta que abre esta introdução, focando a ideia de raça e a construção do racismo, a criação das identidades, dos estereótipos e do preconceito racial, os processos de manutenção das desigualdades raciais e das assimetrias de poder. Usarei uma lógica de análise que cruza o funcionamento das instituições e as normas e ideologias que regem a vida quotidiana com os processos através dos quais se constroem motivações, emoções e crenças coletivas sobre a diversidade dos humanos.
Qual a extensão do racismo e da discriminação racial? Que fatores estão hoje subjacentes à ideia de raça e ao racismo? Porque se tolera o racismo, a discriminação e o sofrimento que provocam nas suas vítimas? Tendo presentes estas perguntas, o ensaio começa por situar o racismo e o antirracismo no contexto europeu pós-Segunda Guerra Mundial e mostra como é possível abordar cientificamente o racismo e as suas consequências. Apresenta-se depois uma proposta de compreensão da ideia de raça no quadro dos processos através dos quais se constrói um mundo com significado e focam-se as potenciais disfunções que daí resultam. O passo seguinte consiste em interrogar os fatores que levam da ideia de raça ao racismo, ao preconceito e à discriminação. Para entender as formas como o racismo consegue viver lado a lado com a democracia, recorro em seguida a uma metáfora usada em trabalhos precedentes: o racismo esconde-se, transforma-se e adapta-se como um vírus em evolução. São depois propostos vários tipos de dados que levantam interrogações sobre as desigualdades raciais em importantes contextos institucionais e reflete-se sobre o impacto dessas desigualdades nas suas vítimas. Em democracia, a legitimidade dos comportamentos individuais, das autoridades institucionais e dos seus agentes é uma questão crucial. Como se legitima o racismo e a discriminação racial? É esta a pergunta com que termino o presente ensaio.
Baseadas em investigação, as páginas que se seguem visam oferecer um contributo para a reflexão urgente sobre racismo e discriminação racial em Portugal, hoje.
Jorge Vala
Azureique, 16/11/2020
Capítulo 1
Contextos de um problema e de um debate
Em fevereiro de 2020, num jogo de futebol entre o Vitória de Guimarães e o Futebol Clube do Porto, Moussa Marega, um jogador negro do FCP, foi ruidosamente insultado por adeptos do Vitória. O insulto mais ouvido consistiu numa simulação de sons de macaco. Ao fim de algum tempo, Marega reagiu abandonando o campo e, posteriormente, manifestou-se profundamente ofendido pela agressão de que foi alvo. Esta associação a animais de pessoas percebidas como pertencendo a «raças»¹ diferentes é comum naqueles que partilham crenças racistas ou um forte preconceito racial e o expressam de forma aberta. Os nazis associavam os judeus a ratos e baratas. No passado recente, também os tabloides ingleses retomaram estas expressões a propósito dos imigrantes subsarianos que tentam alcançar a Europa cruzando o Mediterrâneo. Retomando o incidente com Moussa Marega, o que importa sublinhar não é apenas a desumanização de que foi alvo, mas a sua reação e a forma como soube confrontar a violência racista.
O racismo de que vamos falar e que nos questiona hoje está sem dúvida ligado a processos históricos, remotos ou mais recentes, e a fatores neles inscritos como os que se prendem com interesses económicos e geopolíticos. Mas o racismo continua hoje vivo independentemente desses processos. Importa, por isso, compreender os mecanismos que mantêm o racismo, seja de forma mais escondida ou mais manifesta, no quotidiano e no funcionamento das instituições. Esse objetivo implica analisar crenças, atitudes, sentimentos, normas sociais² e funcionamentos institucionais que alimentam e legitimam o racismo, apesar da sua condenação pela democracia, pelos valores igualitários e pela liberdade, e apesar dos custos das desigualdades sociais que produz. É com esse objetivo que no primeiro capítulo deste ensaio procuramos abrir caminho à abordagem que vamos seguir³.
De forma contrastante, começamos este capítulo, não por uma definição do racismo contemporâneo, mas pelas condições de emergência da norma antirracista, um fenómeno social relativamente recente. De seguida, salientamos alguns fatores fundamentais na aprendizagem do racismo e do antirracismo e propomos que essa aprendizagem se encontra associada ao próprio processo de socialização informal e institucional. A nossa reflexão dirige-se depois para estudos que nos indicam como é possível ir além de uma mera condenação moral do racismo, vendo-o como um fenómeno que pode ser analisado e cujos fatores determinantes podem ser conhecidos. Por último, discutimos a necessidade de um entendimento do racismo não só nas relações quotidianas, mas também no funcionamento das instituições e na sua inscrição estrutural.
A norma antirracista: um fenómeno social recente
A consciência alargada do racismo como incompatível com a democracia e com os direitos humanos é recente. De facto, a emergência da norma social e legal antirracista só teve lugar na Europa a partir dos terríveis acontecimentos da II Guerra Mundial, e da constatação dos horrores a que conduziu a ideia de raça como classificador de grupos humanos. A consciência igualitária dos Europeus só foi despertada após o genocídio de judeus, ciganos, negros e outras minorias consideradas desviantes, em nome da crença nazi na supremacia ariana e na necessidade de a preservar. Esta crença é o protótipo do racismo na história contemporânea. Consideramos racista, a ideologia de acordo com a qual a diversidade humana pode ser agrupada em raças inerentemente desiguais, em que umas têm superioridade e poder sobre outras. Consideramos antirracistas todas as ideias, comportamentos ou políticas que visam demolir essa ideologia e as suas consequências sociais.
Racismo, democracia e Estado de direito no pós-II Guerra Mundial
Para além dos impactos da II Guerra Mundial na emergência da norma do antirracismo, pesaram muito na sua difusão a luta dos movimentos de libertação e as guerras pela independência das antigas colónias. Estes movimentos obrigaram os Europeus — que justificavam a colonização com base no efeito benéfico da expansão da civilização europeia e, em muitos casos até, no proselitismo cristão — a reconfigurar as relações e as representações sobre os africanos e sobre outros povos objeto de colonização. Ora, os movimentos independentistas levaram à criação de novos países e, onde antes habitavam «selvagens à espera de redenção», passaram a habitar povos de Estados parceiros, com reconhecimento pelas Nações