Praxe e tradições académicas
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Sobre este e-book
Elísio Estanque
É natural do Alentejo (Rio de Moinhos – Aljustrel), tendo residido e estudado em Lisboa desde a sua adolescência. Participou ativamente nos diversos movimentos sociais no período revolucionário do pós-25 de Abril de 1974. Como trabalhador-estudante, licenciou-se em sociologia pelo ISCTEIUL em 1985, ano em que se fixou na cidade de Coimbra e ingressou como docente na Faculdade de Economia e investigador no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, onde se mantém. Desde então tem lecionado, investigado e publicado sobre temas como classes e desigualdades sociais, sociologia da empresa e das relações laborais, sindicalismo, juventude e movimentos sociais. Doutorou-se na Universidade de Coimbra, em 1999, com uma tese sobre a indústria do calçado, baseada na observação participante numa fábrica do setor (publicada sob o título Entre a Fábrica e a Comunidade, editora Afrontamento, 2000). Em 2013 foi professor visitante da UNICAMP, Universidade Estadual de Campinas, Brasil. Entre largas de dezenas de trabalhos académicos publicados, contamse ainda os seguintes livros: «A Classe Média. Ascensão e Declínio», da coleção de ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos (2012); «Discurso, Trabalho e Movimentos Sociais» (2015); «Classe Média e Lutas Sociais» (2015); e como coautor: «O Sindicalismo Português e a Nova Questão Social» (2011); «Trabalho, Juventude e Precariedade» (2012); «Trabalho sem Direitos? Pulsões rebeldes e desafios do sindicalismo no Brasil e em Portugal» (2016).
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Praxe e tradições académicas - Elísio Estanque
Praxe e Tradições Académicas
Trata-se de um estudo baseado na observação do fenómeno na Universidade de Coimbra, tendo em vista compreender as atitudes e formas de sociabilidade da juventude universitária portuguesa. Em nome da tradição, as atuais gerações de estudantes promovem dinâmicas de grupo e formas de poder simbólico dotadas de grande significado sociopolítico. Entre a função integradora
e os contornos violentos
da praxe, a controvérsia instalou-se na sociedade portuguesa, na sequência de casos como a tragédia da praia do Meco, associada a um ritual praxista. É esta a temática abordada no presente livro.
Elísio Estanque
É natural do Alentejo (Rio de Moinhos – Aljustrel), tendo residido e estudado em Lisboa desde a sua adolescência. Participou ativamente nos diversos movimentos sociais no período revolucionário do pós-25 de Abril de 1974. Como trabalhador-estudante, licenciou-se em sociologia pelo ISCTE-IUL em 1985, ano em que se fixou na cidade de Coimbra e ingressou como docente na Faculdade de Economia e investigador no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, onde se mantém. Desde então tem lecionado, investigado e publicado sobre temas como classes e desigualdades sociais, sociologia da empresa e das relações laborais, sindicalismo, juventude e movimentos sociais. Doutorou-se na Universidade de Coimbra, em 1999, com uma tese sobre a indústria do calçado, baseada na observação participante numa fábrica do setor (publicada sob o título Entre a Fábrica e a Comunidade, editora Afrontamento, 2000). Em 2013 foi professor visitante da UNICAMP, Universidade Estadual de Campinas, Brasil. Entre largas de dezenas de trabalhos académicos publicados, contam-se ainda os seguintes livros: «A Classe Média. Ascensão e Declínio», da coleção de ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos (2012); «Discurso, Trabalho e Movimentos Sociais» (2015); «Classe Média e Lutas Sociais» (2015); e como coautor: «O Sindicalismo Português e a Nova Questão Social» (2011); «Trabalho, Juventude e Precariedade» (2012); «Trabalho sem Direitos? Pulsões rebeldes e desafios do sindicalismo no Brasil e em Portugal» (2016).
logo.jpgLargo Monterroio Mascarenhas, n.º 1, 7.º piso
1099-081 Lisboa
Portugal
Correio electrónico: ffms@ffms.pt
Telefone: 210 015 800
Título: Praxe e tradições académicas
Autor: Elísio Estanque
Director de publicações: António Araújo
Design e paginação: Guidesign
© Fundação Francisco Manuel dos Santos e Elísio Estanque, Setembro de 2016
O autor desta publicação escreveu ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990.
As opiniões expressas nesta edição são da exclusiva responsabilidade do autor e não vinculam a Fundação Francisco Manuel dos Santos.
A autorização para reprodução total ou parcial dos conteúdos desta obra deve ser solicitada ao autor e ao editor.
Edição eBook: Guidesign
ISBN 978-989-8838-45-2
Conheça todos os projectos da Fundação em www.ffms.pt
Elísio Estanque
Praxe e tradições académicas
logo.jpgÍndice
Introdução
1. A praxe e a cultura estudantil de Coimbra
Origens históricas
O Código e a hierarquia da praxe
O ‘espírito’ e a prática da praxe
2. A formação da juventude
A juventude estudantil e o Estado providência
Culturas e movimentos estudantis: passado e presente
Uma certa geração à rasca
Individualismo e indiferença
3. Boémia e tradições ritualistas
Os rituais do passado e a ‘velha praxe’
Boémios e figuras da Coimbra antiga
Os espaços da nostalgia
4. Da tradição à consciencialização
A liturgia e o sexismo profano
Politização da tradição
5. A normalização democrática e o regresso da praxe
A restauração das tradições em Coimbra e no Porto
Coimbra
O caso do Porto
6. Sociabilidades, vivências e clivagens
O meu primeiro contacto
Controvérsias contemporâneas
A questão do sexismo
O espírito das ‘Repúblicas’
Dados de um inquérito
7. Normalidade e violência na praxe
Para além dos regulamentos: denúncias e abusos
Estudos de opinião
8. Praxe, integração e humilhação
O potencial integrador e o seu custo
Uma submissão voluntária?
Violência simbólica e perversidade do poder
9. Vivências e experiências da praxe
Um jantar de excursionistas
O percurso de um veterano
Um caloiro pacífico
Do ‘bullying’ ao associativismo, passando pela praxe
Pelas ruas da praxe: os espaços, a praxe e a noite
10. Observando os rituais de hoje (2011-2015)
A receção ao caloiro
O cortejo da Latada
A Queima das Fitas
Síntese conclusiva
Bibliografia
Anexo 1
Glossário da praxe
Anexo 2
Acrónimos/ Siglas
Introdução
O SIGNIFICADO DAS PRAXES ESTUDANTIS NÃO É UMA MATÉRIA DE INTERESSE EXCLUSIVO do mundo universitário. Antes, diz respeito a toda a sociedade, desde logo porque aí se espelha muito do que são os valores e comportamentos da nossa juventude. O fenómeno da praxe já por diversas vezes ocupou as atenções da opinião pública em Portugal, suscitando acesas controvérsias sempre que ocorreram situações extremas ou tragédias humanas com ele relacionadas¹. O fundo de realidade que me serviu de base para este estudo reside no quotidiano estudantil de Coimbra, cidade onde, ao longo dos últimos trinta anos, venho acompanhando, com base numa observação inspirada na sociologia, o ambiente universitário no seu sentido mais lato. Não se trata de um estudo sistemático mas sim de uma reflexão, sustentada sobretudo na observação direta, onde se procura dar visibilidade a um percurso, ou melhor, revelar alguns percursos à descoberta de aspetos menos conhecidos do grande público, mas que fazem parte da vivência quotidiana de milhares de jovens, ciclicamente entregues a esse ritualismo a que chamamos praxe académica. O exercício invoca uma metodologia arqueológica
, isto é, tenta reconstituir o passado para, ao projetar nele o olhar do presente, retirar daí uma nova luz sobre alguns dos contornos que o fenómeno tem vindo a evidenciar nos últimos tempos. O objetivo não é o de reescrever a história da Universidade. Apenas me limito a incorporar algum do imenso conhecimento histórico acumulado² para questionar o fenómeno e, se possível, compreender melhor as suas atuais configurações.
Coimbra foi, como se sabe, alimentada ao longo dos séculos pela presença permanente dessa pequena elite estudantil em formação, cujas marcas são bem visíveis na iconografia da urbe do Mondego. Daí deriva a aura de cidade universitária
, a chamada Lusa Atenas, lugar de sonho, onde muitos viveram os melhores tempos da sua juventude. Por isso, a cidade é tão inspiradora de múltiplas aventuras, palco de paixões avassaladoras e trágicas como a de Pedro e Inês, das baladas românticas e símbolo recorrente de nostalgia e saudade. Como atestam as inúmeras lápides e poemas erguidos no mítico Penedo da Saudade, celebrando em datas redondas os aniversários de cursos concluídos há décadas, em que grupos de ex-colegas peregrinam a Coimbra para o saudoso reencontro. Enfim, a história da cidade anuncia-nos a cada passo, em cada esquina, em cada pedra da calçada, a presença perene do romantismo e da boémia enquanto ingredientes indissociáveis da comunidade académica local e das suas tradições.
Sobretudo nos meses de setembro/outubro, ainda antes do início das aulas (ou no mês de maio), quem percorra as ruas, praças e vielas de Coimbra, irá inevitavelmente cruzar-se com grupos de estudantes ocupados em jogos, de contornos por vezes bizarros, onde os recém-chegados (os caloiros
) ocupam o papel central. Mal sabem das colocações, eles surgem ainda meio receosos, olhando discretamente as fachadas da faculdade onde acabaram de ingressar, depois, nas noites dos horários, são, pela primeira vez, abordados pelos doutores
, e é esse o momento em que, efetivamente, se dá início à sua inserção no espírito académico
³. Antes ainda da Festa das Latas já se familiarizaram com o processo de aculturação com a cidade e o mundo da praxe. Após o primeiro embate, a maioria começa a sentir-se acolhida pelo grupo; mas é importante saber reagir à altura
das circunstâncias. Nesse período, os lugares mais emblemáticos da cidade começam a povoar-se de pequenas assembleias
, aparentemente espontâneas, de jovens vestidos de negro, rodeando outros grupos de jovens (ainda com as suas roupas informais), em geral com os primeiros a envolver os segundos dentro de um círculo, alinhados em pé ou sentados no chão.
É esse, aliás, o olhar com que os órgãos oficiais da praxe, como o próprio Dux Veteranorum (autoridade máxima na matéria), exaltam os caloiros a descobrir a cidade: descubram nestes novos tempos o significado da palavra ‘Saudade’, tão característica de Coimbra e tão querida pelos colegas do passado
⁴. É claro que o deslumbramento perante tão esmagadora riqueza patrimonial não deixa de acentuar a condição vulnerável do recém-chegado quando vislumbra, nos sinais do passado, o espectro da tradição: do Choupal até à Lapa, do Penedo da Saudade à Baixa e à Baixinha, na ponte pedonal Pedro e Inês⁵, nos monumentos, nos vestígios de algumas antigas tabernas (as poucas que sobraram na zona da Alta e na Baixinha), nas Repúblicas estudantis ou nas lápides do Penedo da Saudade, enfim, por todos esses lugares perpassa esse lado poético e nostálgico da juventude estudantil de outras épocas. Mesmo que tudo isso esteja, à partida, fora dos horizontes de um neófito, aos poucos, a familiarização progressiva com a cidade deverá restituir às novas gerações de estudantes o sentido patrimonial de toda essa iconografia. Suspeita-se, porém, que na voracidade vertiginosa de um tempo tão fugaz como o atual, a maioria passe ao lado sem se aperceber do seu real significado.
Os objetivos deste ensaio já seriam plenamente cumpridos se fosse possível recuperar alguns dos fios dessas memórias esbatidas – e talvez adulteradas – de várias gerações de estudantes, desde que as vivências recordadas não nos afastem do balanço crítico e retrospetivo desse passado. Mais do que uma monografia exaustiva pretende-se interpretar uma grande variedade de dimensões. O principal foco são as tradições estudantis de múltiplas gerações, entre as quais se cruzaram conceções e trajetórias muito diversificadas e contrastantes. O estudo da tradição (ou, no plural, das tradições
), independentemente da força simbólica que se lhes reconheça, não significa descurar o papel da mudança, já que esta é uma constante, embora os ritmos que adquire oscilem em função das circunstâncias. As quatro décadas de democracia na sociedade portuguesa, desde 1974, trouxeram transformações que alteraram substancialmente o ambiente académico, quer nas universidades mais antigas, como Coimbra, quer nas que já nasceram no contexto democrático.
Como adiante pretendo mostrar, essas mudanças – em especial a abertura democrática do acesso ao ensino superior – não se projetam de igual modo em todas as dimensões da vida, pelo que somos frequentemente confrontados com paradoxos de difícil interpretação. Por exemplo, a rápida feminização da Universidade portuguesa é um dos aspetos que contrastam com um tipo de ritualismo ainda extremamente marcado por símbolos e práticas imbuídos de masculinidade. A regulamentação dos rituais, nomeadamente o Código da Praxe, não presta qualquer atenção a essa matéria, mas o certo é que as regras atuais têm por detrás de si uma longa herança, de que não podem desfazer-se. É a herança de um mundo ancestral, onde o elitismo e o romantismo se conjugam com um universo no qual a mulher sempre foi relegada para um lugar subalterno. No fundo, todas as transformações em curso obrigam a colocar a interrogação sobre qual será a relação entre: as tradições, o associativismo e as culturas estudantis/juvenis. Em suma, a pergunta é: o que é que nos diz o fenómeno da praxe
sobre as múltiplas dimensões socioculturais que marcam a atual juventude?
1. A praxe e a cultura estudantil de Coimbra
OS RESULTADOS DE UM ESTUDO SOBRE A PRAXE NAS UNIVERSIDADES de 23 países ibero-americanos da rede Universia (numa amostra de 2.453 jovens desse universo)⁶, recentemente divulgados, são bem ilustrativos da abrangência do fenómeno e confirmam o seu impacto em Portugal. No nosso país, cerca de 73% dos jovens universitários afirmaram que sofreram alguma praxe mais pesada quando entraram na Universidade, contra a média dos alunos do conjunto desses países, onde apenas 25% das respostas foram no mesmo sentido. 59% dos estudantes portugueses afirmaram que tais atos tiveram consequências psicológicas
na sua vida, e 20% revelaram que eles determinaram o abandono dos estudos. Porém, apenas uma minoria admitiu que se sentiu alguma vez intimidado por algum colega mais velho no âmbito da praxe, ou seja, 60% dos inquiridos portugueses e 52% dos restantes países responderam negativamente a essa pergunta. Quanto à perceção de como as respetivas universidades lidam com a questão da praxe, 31% dos portugueses responderam que as instituições não lhe atribuem a importância devida, valor que sobe para 41% na média dos países estudados. Aquilo que no questionário foi considerado de brincadeiras pesadas
foi indicado pela população estudantil como sendo a prática mais comum, apontada por 45% dos inquiridos, seguida de perseguição verbal
, com 23%, violação da intimidade
, com 12%, discriminação racial/ religiosa
, 6%, discriminação de género
, 5% e lesões físicas
, 4%.
Ora, se este quadro já nos revela o quanto este tipo de rituais está presente em regiões com tradições culturais tão distintas (desde a América Latina aos EUA, passando pelos dois países ibéricos), também deixa perceber, desde logo, o seu maior enraizamento no caso português. Ao mesmo tempo, essa evidência não deixa de suscitar a pergunta quanto à relação entre a abrangência do fenómeno e a história das universidades onde ele nasceu.
Origens históricas
A origem histórica mais remota da praxe parece estar associada ao Foro Académico e à Polícia Académica. Pouco depois da fundação da Universidade de Coimbra (UC), em 1308, o rei D. Dinis mandou publicar um decreto instituindo horas de estudo e de recolher obrigatório para os estudantes, estabelecendo que os infratores fossem vigiados e sancionados pelos estudantes mais velhos (de acordo com a sua própria hierarquia, baseada exclusivamente na antiguidade de cada membro). A intensa atividade legislativa, envolvendo a Universidade por via de diversas promulgações e derrogações, cartas Régias, apelando por vezes à influência direta do Papa, permite que se compare esta poderosa instituição com a posição granjeada pela própria Igreja Católica, ou seja, uma espécie de Estado dentro do Estado. O Foro Académico (também designado Juízo da Conservatória da Universidade de Coimbra), criado por D. João I em 1408, garantia aos membros do corpo universitário um estatuto de exceção, permanecendo resguardados das exigências da justiça civil. A ele se liga a generalização do uso do traje académico – que se tornaria obrigatório durante longos períodos – destinado a distinguir o corpo universitário da restante sociedade civil. As prerrogativas derivadas do vínculo à Universidade atingiram tal importância que alguns tentaram tirar proveito disso. Ao longo dos séculos XVII e XVIII foi possível a certas categorias e funcionários inscreverem-se como estudantes, ainda que por vezes só o fossem de nome. Daí derivaram muitos abusos num período em que grupos de estudantes (verdadeiros ou falsos) se dedicavam a atividades ilícitas e violentas, incluindo agressões, assaltos e crimes diversos, à sombra da proteção especial associada ao seu estatuto. Com a extinção do dito Foro Académico, abolido em 1832, foi criada em 1836 a Polícia Académica, mais uma vez por exigências de preservação da autonomia universitária, a que D. Maria II acedeu. A prática de policiamento seria depois extinta, mas os estudantes incorporaram-na, criando grupos próprios de patrulhamento
para vigiar e punir os incautos.
A chamada praxe estudantil é, sem dúvida, um produto de Coimbra. Importa, todavia, ter presente o contexto paroquial da generalidade dos núcleos urbanos do nosso país até ao início do século XX. Como recordou o professor António Manuel Nunes, um dos principais estudiosos das tradições académicas de Coimbra, até à Revolução Republicana de 1910, a UC, pelo número diminuto de alunos e pela rarefação de alunas, foi uma escola de elite, mais próxima dos extintos liceus, colégios particulares, e seminários diocesanos, cujos estatutos propunham normas de conduta similares às vigentes na caserna militar, nos seminários católicos, nas constituições sinodais dos bispos diocesanos, orfanatos, mosteiros e casas de correção; recordemos o toque do sino para a recolha vespertina e levantar, as regras atinentes ao uniforme de porte diário, o respeito ao reitor e aos lentes, a expulsão temporária ou definitiva
(Nunes, 2005). Em meados do século XIX as praxes eram designadas de Investidas, Troças/Assoadas e Caçoadas.
De resto, como sabemos, até então as referências escritas aos rituais estudantis para trás de 1850 são rarefeitas, tendo em conta os processos dominantes de transmissão oral, passados aos mais novos através dos veteranos, de antigos estudantes para filhos e de futricas para caloiros, num processo onde intervinham barbeiros, alfaiates, taberneiros, engomadeiras, criadas domésticas, funcionários da UC e proprietárias de bordéis. Aliás, até à emergência da primeira grande codificação de 1957, as praxes e os costumes estudantis transmitiam-se oralmente, radicando a sua coerência no mito e na antiguidade
⁷ (Cruzeiro, 1979; Nunes, 1989 e 2004).
O termo Praxe começa a ser usado apenas na segunda metade do século XIX, concretamente, algumas fontes citam o ano de 1863 como a data da primeira referência conhecida ao termo praxe
, e que era na época identificado com o adjetivo selvagem
, ou seja, um termo que invoca a natureza cruel e violenta já então atribuída a esses atos (Nunes, 1989). A taxonomia da época pode ser confirmada na sentença de condenação a um estudante, relatada por Teófilo Braga: "Mostra-se outrossim que, entrando em casa de uns novatos, cinco homens, quatro mascarados, era o quinto réu sem máscara, e buscando positivamente a um novato […] o mandaram despir nu, e lhe deram muitos açoites com umas disciplinas, de que correra sangue, e muita palmatoada, e lhe cortaram o cabelo rente pelo casco […]" (Braga, 1892-1902). Também o clássico Palito Métrico⁸ nos dá uma ideia do que eram as investidas:
Tal sucede ao Novato, que indeciso
Deixando-se ficar no chão prostrado
Observa a seu pesar de grande riso,
Com que o seu toureador é festejado:
Assim que se levanta, de improviso
De um rústico Beirão se vê montado,
Que a repetidos golpes de um chicote,
Por toda a sala o faz correr de trote. (Ferrão, 1912)
Ainda no século XVIII, as Investidas geraram controvérsia e chegaram a ser proibidas por D. João V em 1727, devido à morte de um novato, e infligidas fortes sanções aos infratores (Lamy, 1990; Marta, 2011). O fenómeno da violência e do abuso
é, pois, um problema antigo⁹. Porém, interessa, para já, situar a própria noção de Praxe. Para captar os atuais contornos da praxe académica importa começar por situá-la no seu devido contexto sociológico. Afinal, o que nos interessa verdadeiramente é conhecer melhor o mundo em que vivem hoje os jovens universitários, as suas representações, comportamentos e formas de sociabilidade no espaço de uma cidade universitária.
De acordo com o historiador Paulo Archer de Carvalho, as praxes ainda hoje são a sobrevivência simbólica de rituais de passagem, de presentificação e de hetero-reconhecimento, balizadas por gestos que tentam assinalar a des-bestialização do aprendiz e a sacralização do ofício intelectual, partindo do princípio – consagrado na própria nomenclatura (o burro, a cabra, o chocalho, a
magna besta, etc.) – de que o ser humano é à nascença uma besta e que só pela formação intelectual ou espiritual se liberta dessa primitiva condição
(Assembleia da República, 2008, p. 3)¹⁰. Como é evidente, o fenómeno pode adquirir contornos particulares se o situarmos no campo universitário e, além disso, ele evoluiu consideravelmente ao longo dos tempos. No caso de uma cidade com uma longa tradição estudantil, como Coimbra, a visibilidade que lhe advinha de ser até ao início do século XX a única universidade portuguesa, não podia deixar de suscitar repetidas controvérsias, como foi o caso. A cultura burguesa masculina do século XIX, marcada pelos valores do Iluminismo e do liberalismo, era visceralmente inimiga dos excessos, desregramentos e troças comunitárias. Com as revoluções liberais, os reformadores fizeram publicar interdições oficiais que foram policiadas