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Mulheres nos espaços de decisão: mecanismos afirmativos e paridade de gênero na política institucional do Brasil contemporâneo
Mulheres nos espaços de decisão: mecanismos afirmativos e paridade de gênero na política institucional do Brasil contemporâneo
Mulheres nos espaços de decisão: mecanismos afirmativos e paridade de gênero na política institucional do Brasil contemporâneo
E-book571 páginas7 horas

Mulheres nos espaços de decisão: mecanismos afirmativos e paridade de gênero na política institucional do Brasil contemporâneo

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Sobre este e-book

A tradicional estrutura dicotômica da sociedade e a consequente divisão das atividades refletem-se na esfera da política institucional, majoritariamente masculina. Diante disso, considerando a sub-representatividade de gênero uma questão a ser superada por vários países, em especial o Brasil, onde as mulheres ainda não foram além de 16% da composição do Poder Legislativo, e com o propósito de se responder à seguinte pergunta: "de que modo o Estado brasileiro pode lançar mão de ações afirmativas, as quais pretendem estabelecer uma igualdade material, a fim de que seja alcançada a paridade de gênero na política institucional?", a presente pesquisa se desenvolve a partir da metodologia analítica e das técnicas de pesquisa de revisão de literatura e pesquisa documental. Efetivamente, defende-se que a arena institucional da política brasileira seja mais diversificada assim como o tecido social se apresenta, de modo que, com mais diversidade, as características peculiares da sociedade sejam refletidas nos debates públicos promovidos pela politização de novos temas. Nesse sentido, o trabalho considera a baixa efetividade das cotas de candidaturas de gênero adotadas pelo Brasil há mais de 25 anos e argumenta em prol de uma maior inserção feminina na esfera político-deliberativa por meio da combinação de mecanismos afirmativos, apresentando-se como caminhos potencialmente capazes de alterar tal quadro, com as devidas ressalvas, a adoção da lista fechada e a reserva de assentos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de nov. de 2022
ISBN9786525254340
Mulheres nos espaços de decisão: mecanismos afirmativos e paridade de gênero na política institucional do Brasil contemporâneo

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    Mulheres nos espaços de decisão - Letícia Maria de Maia Resende

    1. O MOVIMENTO FEMINISTA E A CONQUISTA DOS DIREITOS DAS MULHERES NO BRASIL

    O patriarcado

    ¹ como sistema histórico manifestou-se e se estabeleceu em diversas sociedades e em ritmo e momentos distintos. Condicionou de maneira muito intensa, como pano de fundo, o desenvolvimento da mulher determinando a sua situação num plano subalterno em relação ao homem.² Considerando que tal sistema se exterioriza a partir de instituições constituídas no meio social, como a religião, a legislação e a escola, atribui-se importante papel às organizações familiares, unidades basilares na formação do Estado arcaico que fortaleceram a predominância masculina em espaços de poder e decisão.³

    Dessa maneira, vislumbra-se no interior da família o advento do paternalismo ou dominância paternalista, compreendida como a relação de um grupo dominante, considerado superior, com um grupo subordinado, considerado inferior, na qual a dominância é mitigada por obrigações mútuas e direitos recíprocos.⁴ Isto é, em todas as formas de família patriarcal existentes em diferentes contextos, dentro das quais homens e mulheres se enraízam em sua classe social,⁵ um grupo dominado se subordinou - e ainda se subordina - em troca de sustento e proteção por parte do grupo dominante, fazendo com que seja peça do sistema um duplo padrão sexual que coloca em desvantagem as mulheres.⁶

    Antes de avançar, se faz necessário abrir um grande parêntese a fim de que sejam conceituadas as noções de machismo e patriarcado, uma vez que o trabalho menciona por várias vezes expressões como costumes patriarcais e machistas ou mesmo patriarcado. Desse modo, respalda-se nas ideias de Gerda Lerner, historiadora considerada uma das fundadoras do currículo acadêmico da disciplina História da Mulher.

    Segundo Lerner, patriarcado significa a manifestação e institucionalização da dominância masculina sobre as mulheres e crianças na família e a extensão da dominância masculina sobre as mulheres na sociedade em geral.⁷ Isso não significa dizer que as mulheres sejam privadas de direitos ou impotentes totalmente, mas sim que o poder das instituições sociais, através de um processo histórico, se concentrou e ainda se concentra nas mãos dos homens, de modo que estes mantêm a dominação masculina,⁸ a qual é sustentada pela família, pela escola e, ainda, pelas legislações e religiões.

    Também segundo Lerner, machismo define a ideologia de supremacia masculina, de superioridade masculina e de crenças que a apoiem e sustentem.⁹ As ideias de machismo e patriarcado se reforçam, mas uma pode existir sem a outra. Isto é, o machismo pode se apresentar em sociedades onde não esteja institucionalizado o patriarcado, ressaltando-se, todavia, que relações patriarcais têm mais facilidade de se (r)estabelecerem onde predominar a ideologia machista. Agora, a partir da compreensão de tais conceitos, é possível fechar o parêntese, recuperar o trabalho interrompido e dar-lhe continuidade.

    A regulação e controle da sexualidade feminina foi demandada como um dos pilares do ente estatal primário a fim de manter-se o poder patriarcal nas instituições de dominância masculina. Com base nisso, e levando-se em conta o poder inquestionável das figuras masculinas autoritárias sobre a esposa e os filhos, a virgindade das filhas e a fidelidade monogâmica das esposas se tornaram características importantes da ordem social.¹⁰

    O Código de Hamurábi marca o início da institucionalização da família patriarcal como um aspecto do poder do Estado. Reflete uma sociedade de classes na qual o status da mulher dependia do status e da propriedade do chefe de família homem. [...] O status da mulher é sempre definido de modo diferente do status do homem da mesma classe.¹¹

    Ao passo que a família é compreendida como a unidade básica do Estado, ela pode ser considerada como espaço de reprodução, senão berço, do sistema sexo-gênero,¹² sistema institucionalizado que distribui recursos, propriedade e privilégios a pessoas de acordo com papéis de gênero definidos culturalmente.¹³ A família, portanto, dividiu as tarefas entre seus membros de modo não igualitário: enquanto aos homens coube a manutenção material da família através de recursos econômicos, às mulheres destinaram-se as atividades reprodutivas e de cuidado, posto que eram valorizadas sobretudo como procriadoras.¹⁴

    Essa primeira divisão sexual do trabalho atribuiu atividades, direitos e deveres diferentes a homens e mulheres e determinou ser possível fazer distinções entre as pessoas com base em características visíveis, como a força física dos corpos.¹⁵ Nesse sentido, em razão da constituição biológica e da peculiaridade do corpo feminino, que tem a capacidade de gestar vidas, as mulheres foram consideradas inadequadas para a educação superior e muitas atividades vocacionais. Menstruação, menopausa e até gravidez¹⁶ eram compreendidas como fenômenos incapacitantes das mulheres, os quais evidentemente tornavam-nas inferiores.¹⁷ Também, a valorização da maternidade, nesse contexto, colaborou para, historicamente, limitar a autonomia das mulheres.¹⁸

    Assim, à questão biológica atribuiu-se um dos principais argumentos utilizados para relegar a mulher aos papéis de esposa, mãe e dona de casa.¹⁹ Logo, mulheres foram destinadas ao trabalho reprodutivo, de zelo e cuidado da família, e homens, ao produtivo, fonte de lucro e riqueza material. Então, a partir da ideia tradicionalista de serem as mulheres mais vulneráveis à marginalidade que os homens, tornou-se institucionalizada a dependência vitalícia delas perante os homens, como pais, irmãos ou cônjuges. E não somente no meio familiar, mas sim em todo o tecido social.

    Os papéis sociais atribuídos a homens e mulheres foram naturalizados, uma vez que a divisão das tarefas se fundamentou fortemente no discurso biologizante e nas teorias deterministas²⁰ que associavam a feminilidade e o feminino à fraqueza e à incapacidade, enquanto o masculino relacionava-se ao resistente e poderoso. Essas concepções científicas demonstravam tais ideias a partir da constituição biológica da mulher e do crânio feminino.²¹ Também os preceitos disseminados pela Igreja Católica reafirmavam que o sexo oposto era mais frágil em face das tentações por estar repleto de paixões vorazes e veementes.²²

    Nesse contexto de associação do estatuto biológico feminino ao metafísico e moral,²³ de forma a justificar a maior vulnerabilidade das mulheres, as ideias estereotipadas de mulheres cuidadoras, sendo a família sua responsabilidade primária, e homens provedores²⁴ consolidaram-se segundo uma visão essencialista e naturalista,²⁵ de modo a fortalecer a nítida divisão²⁶ entre os domínios público e privado e seus respectivos integrantes.

    É de acordo com as ideias advindas do sistema sexo-gênero que a sociedade dividiu seus espaços em ambientes públicos e privados²⁷ e conferiu tarefas determinadas conforme o fato biológico, sexo, e o fato cultural, gênero. Dessarte, com a maior complexidade do aparato estatal ao passar do tempo, os papéis e comportamentos apropriados aos gêneros reproduziram-se, pois que expressos em valores, costumes, leis e papéis sociais,²⁸ de forma a delimitarem o lugar e a atuação adequada de homens e mulheres no corpo social. Diante desse processo interativo, homens são vistos como o grupo dominante e as mulheres, como o grupo dominado.

    A subordinação feminina já presente no cotidiano da família patriarcal fortaleceu a dominância masculina na vida pública e nas relações exteriores de modo que, a partir do robustecimento através da legislação, mulheres foram excluídas de determinadas profissões e espaços, os quais foram reservados aos homens, como economia, educação e política. Tanto na cultura oriental quanto na ocidental os papéis sociais acabaram sendo delineados. Assim, foram determinados os campos de operação das mulheres e dos homens, sendo a vida feminina associada ao espaço doméstico e a masculina ao espaço público, diretamente relacionado à ordem econômica e ao controle político da sociedade.²⁹

    Com base nessas noções, ainda na Antiguidade, mulheres atenienses foram afastadas da participação na vida política³⁰ da cidade-Estado, conhecida como pólis, a fim de concentrarem-se na função mais importante: a de esposas. Desse modo, excluídas da cidadania grega, as mulheres deveriam produzir herdeiros homens e supervisionar a casa do esposo, a quem deviam obediência.

    [Nesse contexto], mulheres respeitáveis³¹ passavam a maior parte da vida dentro de casa, enquanto os homens da mesma classe passavam a maior parte do tempo em espaços públicos. A principal exceção ao confinamento doméstico de mulheres de classe média era a participação delas em festivais religiosos e cultos, e a presença em casamentos e enterros.³²

    Esse modelo de organização social foi mantido pela civilização ocidental com poucas alterações e tornou-se muito perceptível com as revoluções liberais, como a Revolução Industrial que tomou lugar na Inglaterra a partir da segunda metade do século XVIII, a qual foi responsável por dividir as esferas de produção e reprodução, trabalho remunerado e não remunerado, respectivamente.³³ Nesse sentido, pode-se afirmar que, em regra, o meio social do Ocidente desenvolveu-se em bases de racionalidade patriarcalista e patrimonialista, sendo a posição de classe das mulheres definida diferentemente no tocante à posição dos homens.

    Em decorrência das transformações paradigmáticas do modo de produção da sociedade burguesa, surgiu uma crescente diferenciação entre o trabalho feminino e o masculino, à medida que as tarefas realizadas por mulheres e homens se tornavam mais diversificadas e, sobretudo, passavam a sustentar relações sociais diferentes.³⁴ Atividades ligadas ao cuidado e à vida doméstica passaram a ser responsabilidade quase que exclusiva das mulheres, enquanto os homens encarregaram-se da provisão financeira da família.

    A família patriarcal ocidental, posicionada no centro da concepção mais ampla da sociedade pela relação estabelecida entre o neoconservadorismo e o neoliberalismo,³⁵ aliás, sancionou costumes a fim de manter a ordem social aparentemente natural, fundada no sistema sexo-gênero. Pelo fato de o homem ter costumeiramente se incumbido de prover materialmente a esfera doméstica, o ambiente público se desenvolveu como uma atmosfera ideal às suas atividades. De modo consequente, esse espaço acabou sendo afastado das mulheres, de forma que as decisões de grande repercussão, as quais implicavam em toda a sociedade, ficaram a cabo dos homens.

    Diante dessa divisão de tarefas e esferas de atuação, as mulheres que ocupavam territórios masculinos como a cultura e a política eram repudiadas em favor da mulher doméstica, que tem como centro de interesse a família.³⁶ Limitadas ao trabalho doméstico e à atividade reprodutiva, as tarefas das mulheres sofreram um processo de ocultamento, cuja consequência foi a desvalorização de seus esforços. Resquícios desse processo se mostram ainda hoje, posto que é muito frequente a invisibilidade dos trabalhos de cuidado para com a família desempenhados majoritariamente pelas mulheres,³⁷ as quais padecem de uma sobrecarga quase infinita de serviços, sendo a jornada, no mínimo, dupla.³⁸

    A noção historicamente construída de homens e mulheres como seres socialmente assimétricos³⁹ fez com que as mulheres perdessem terreno em praticamente todos os espaços de decisão da vida social ao longo do tempo.⁴⁰ No século XIX, quando da construção das democracias ocidentais, a conceituação dicotômica de ambientes públicos e privados apresentou-se com robustez, juntamente com os papéis sociais definidos pelas condições de sexo e gênero. A visão tradicional dos papéis femininos e a oposição entre masculino e feminino fortaleceram-se nos novos códigos de lei e governos, no pensamento médico, na produção filosófica, literária, artística, nos discursos educacionais, nos meios de comunicação.⁴¹

    Por sua vez, marcou-se a divisão entre Estado e indivíduo privado, constituindo um espaço político inseparável do público, do qual, porém, foram excluídos as mulheres e os proletários.⁴² Entretanto, essa estrutura social até então rígida começou a sofrer questionamentos. Cita-se, inclusive, que ao final do século XIX algumas mulheres conquistaram um poder de influência significativo no interior de sindicatos, na imprensa operária e nos partidos políticos de esquerda,⁴³ apesar de ainda consideradas cidadãs passivas.

    Vários movimentos sociais reivindicatórios⁴⁴ surgiram em busca de uma transformação do modo de organização da sociedade. Nesse sentido, pode-se citar o socialismo, que nesse contexto identificava o capitalismo como o principal fator da opressão feminina,⁴⁵ e o feminismo, baseado inicialmente numa certa consciência de gênero,⁴⁶ e que, com sua pauta inicial em prol da educação e do sufrágio feminino, foi essencial para a conquista de direitos pelas mulheres e a consequente - e inevitável - modificação de sua identidade, ainda em construção.

    1.1. AS RAÍZES DO MOVIMENTO FEMINISTA

    As origens do movimento feminista,⁴⁷ compreendido como uma política ideológica que tem como propósito a superação de desigualdades sociais resultantes de relações de poder,⁴⁸ sobretudo as diferenças entre os gêneros masculino e feminino, remontam à Europa de fins do século XVIII. Entende-se, inclusive, que o feminismo e o liberalismo têm origens comuns relacionadas à manifestação do individualismo como teoria social geral.⁴⁹ Suas primeiras marcas ligam-se mais especificamente ao contexto da Revolução Francesa, ocorrida entre 1789 e 1799, período de intensa agitação política que resultou no fim do absolutismo e na criação de uma nova Constituição Francesa, além da promulgação da célebre Declaração dos direitos do homem e do cidadão.

    Concebido como um filho indesejado desse momento de efervescência, o feminismo, antes de ser uma doutrina, se configura como uma verdadeira tomada de consciência das/pelas mulheres,⁵⁰ sendo possível, aliás, aproximar tal tomada de consciência das mulheres, entendida como um empoderamento, à tomada de consciência do proletariado, segundo a teoria desenvolvida por Karl Marx.⁵¹

    O feminismo pode ser compreendido como um movimento intelectual, político e social das mulheres que emergiu com os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade,⁵² e teve como fundamentos iniciais as ideias emancipacionistas da francesa Olympe de Gouges,⁵³ pseudônimo adotado por Marie Gouze. Também, as ideias de sua contemporânea inglesa Mary Wollstonecraft, as quais se alimentaram do legado iluminista e, ao mesmo tempo, contribuíram para o seu enriquecimento na tentativa de melhorar a sociedade a partir de novas relações entre as pessoas com base no princípio da igualdade.⁵⁴

    As primeiras feministas basearam-se nos ideais de melhoria individual e educação do Humanismo Renascentista para reclamar sua aplicação para as mulheres. A partir do final do século XVIII, passaram a lutar pela cidadania e a demandar direitos políticos e sociais como educação e controle de propriedades, apostando também [...] no poder do Estado democrático como agente da melhoria da vida das mulheres, capaz de, com leis, reformar as relações familiares e ampliar a participação das mulheres na sociedade.⁵⁵

    Gouges era uma intelectual, ativista política e dramaturga, enquanto Wollstonecraft dedicava-se à escrita de livros infantis e romances, e ambas eram militantes do movimento abolicionista,⁵⁶ logo, contrárias à escravidão. Além disso, as duas, tomadas por diversos questionamentos e encorajadas pelos constantes episódios injustos que presenciavam e vivenciavam, pois que naturalmente aceitos pela sociedade que comungava de costumes conservadores, principiaram a luta pela igualdade de gêneros, atuando intensamente, de início, em prol da educação feminina.

    O fato de a Declaração dos direitos do homem e do cidadão ter usado o termo homem em vez de ser humano foi interpretado por Olympe de Gouges como uma negligência⁵⁷ para com as mulheres, as quais compunham metade da população francesa à época. Relegadas e detentoras de méritos negados, as mulheres eram condenadas desde o berço a uma ignorância insípida, e a ideia de não terem benefícios contemplados pelo documento fruto da Revolução não agradou Gouges, de modo que no ano de 1791 a escritora e revolucionária publicou a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã como uma contraproposta à primeira declaração de caráter supostamente sexista.

    A atitude da francesa foi compreendida como um questionamento da universalidade dos sujeitos de direitos⁵⁸ que emergiram das revoluções setecentistas, além de evidenciar que nem sempre os direitos humanos representaram e incluíram os direitos das mulheres. A declaração elaborada por Gouges era formada por dezessete artigos, além de um preâmbulo e um postâmbulo e foi enviada à rainha Maria Antonieta juntamente a uma carta, em que Gouges pedia pela atenção da rainha, a fim de que ela se sensibilizasse com a causa e alavancasse o estabelecimento dos direitos femininos, além de acelerá-los ao sucesso.

    Assim, as demandas apresentadas empenhavam-se em incluir as mulheres nos ganhos da Revolução e diziam respeito a direitos como tratamento igualitário entre homens e mulheres, liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, união da nação, legitimidade em relação a filhos nascidos fora do casamento e distribuição igualitária na fortuna e nos cargos da administração pública.

    Gouges aproveitou a oportunidade e escreveu a favor da cooperação das mulheres no processo redacional da Constituição para que esta tivesse validade,⁵⁹ pois que a população feminina também era afetada por tais normas. Acima de tudo, a escritora argumentou em defesa de uma postura ativa da Assembleia Francesa em prol da harmonia constante e da conservação e conquista de direitos, além de uma atuação conjunta dos homens e das mulheres, compreendidos iguais em força e virtude.⁶⁰

    No mesmo caminho foram dados os passos de Wollstonecraft, que publicou em Londres no ano seguinte, 1792, a Reivindicação dos direitos da mulher, obra menos radical que a declaração de Gouges, mas de caráter emancipador idêntico. Isso porque o livro também foi resultado da militância de Wollstonecraft a favor da igualdade dos gêneros, além de influências contrárias à moral sexista e conservadora da época. Considerado um trabalho de intensa atuação pela educação racional das meninas e mulheres, a reivindicação era composta por treze capítulos e foi admitida como uma resposta à Constituição Francesa de 1791, que não incluía as mulheres na categoria de cidadãos.

    Naquele momento, a vida pública era circunscrita somente aos homens, cabendo às mulheres, excluídas da Assembleia Constituinte e privadas de cidadania, o ambiente doméstico. A elas também era destinada uma educação que as mantinha na ignorância e na dependência servil por muitos anos,⁶¹ dada a inacessibilidade da razão iluminista e emancipadora da humanidade, sendo ao gênero feminino reservadas atividades pouco ou nada significantes desde a infância.

    Wollstonecraft, defensora da difusão da liberdade como acesso a uma humanidade mais sábia e virtuosa, com uma política sã a partir da inclusão das mulheres, dedicou o capítulo cinco de sua obra à crítica de alguns autores famosos que trataram dos modos femininos. Vale destacar que até então os trabalhos tinham sido elaborados tendo como panorama a superioridade masculina perante a dependência material e imaterial das mulheres, e nesse sentido a inglesa citou Jean Jacques Rousseau, para quem a educação deveria ser diversa, dada a diferença entre os sexos,⁶² cabendo às mulheres a criação com foco na subjugação e submissão com fins de agradar;⁶³ James Fordyce, que estendeu a eloquência de Rousseau e revelou a fragilidade das mulheres; John Gregory, para quem o destino normal de vida das mulheres era a docilidade e a única coisa necessária, o decoro;⁶⁴ e lorde Chesterfield, que tratou do conhecimento do mundo como as fraquezas humanas.

    Do mesmo modo, escritos de mulheres como Hester Lynch Piozzi; Anne-Louise Germaine Necker, a baronesa de Staël; Stéphanie Félicité du Crest de Saint-Aubin, a condessa de Genlis; e Hester Chapone,⁶⁵ os quais apresentavam forte teor preconceituoso e de submissão cega à opinião do mundo e à religião, foram criticados pelo trabalho de Wollstonecraft. A escritora acreditava que o projeto de emancipação das mulheres deveria começar pelo acesso à educação para alcance do discernimento através do uso adequado da razão esclarecedora e pela inclusão na vida pública, tanto que argumentou que as mulheres deveriam ter representantes engajadas, em vez de serem governadas arbitrariamente, sem qualquer participação direta nas deliberações do governo.⁶⁶

    Se os homens generosamente rompessem nossos grilhões e se contentassem com a camaradagem racional, não com a obediência servil, eles encontrariam em nós filhas mais obsequiosas, irmãs mais afetuosas, esposas mais fiéis e mães mais razoáveis - em uma palavra, cidadãs melhores.⁶⁷

    Apesar das diferentes abordagens e formatos de trabalho, é evidente que o feminismo iluminista de Mary Wollstonecraft e Olympe de Gouges compartilha da crença na importância da educação e na universalidade de direitos.⁶⁸ Assim, ambas podem ser consideradas as grandes referenciais teóricas e precursoras do movimento feminista contemporâneo, uma vez que já durante o nascimento do Estado de Direito e da modernidade sistematizaram reflexões acerca da necessidade de emancipação das mulheres.

    A consciência e circulação de ideias feministas aumentou no final do século XIX e início do XX, atravessando mais facilmente as fronteiras locais e nacionais, intensificando as trocas e as redes feministas por meio da imprensa feminista, da tradução de livros e documentos feministas, da criação de associações e encontros nacionais e internacionais, mas também da circulação de mulheres viajantes, imigrantes ou militantes exiladas.⁶⁹

    Desse modo, também na América a comunidade deparou-se com episódios a favor da emancipação feminina e igualdade social, entretanto, a história do movimento feminista em solo norte-americano desenvolveu-se de modo diferente. Isso porque na sociedade já havia uma hierarquia racial e sexista estabelecida, decorrente do período escravocrata, muito estável, de modo que os homens brancos ocupavam o topo da pirâmide, seguidos pelas mulheres brancas, os homens negros e, por fim, as mulheres negras, que compunham a base mais inferior do país.⁷⁰

    Dessa forma, resta evidenciado que as mulheres negras estavam expostas a uma combinação de fatores que as tornavam particularmente mais vulneráveis, como marcas interseccionais⁷¹ de gênero e raça, além de classe, e por isso nunca compartilharam do estatuto social peculiar das mulheres brancas.

    Enquanto a escravidão ainda vigorava, as mulheres negras já não eram valiosas como os homens negros,⁷² apesar de desenvolverem atividades domésticas para além do árduo trabalho no campo, que no início era encarado como de responsabilidade masculina. Nessa época as negras estavam condenadas aos serviços e castigos mais duros, enquanto as mulheres brancas, idealizadas pela sociedade, tinham privilégios por serem mulheres frágeis e eram recolhidas ao ambiente doméstico.

    Já no século XIX, com a abolição da escravatura e a recente liberdade concedida às pessoas negras, as mulheres negras continuaram vistas como inferiores no meio social e o fato de não serem protegidas nem pela lei nem pela opinião pública⁷³ fez delas um alvo fácil para a sociedade racista e sexista⁷⁴ que se institucionalizava cada vez mais. Inclusive, tais mulheres não foram percebidas como parte do grupo de mulheres norte-americanas⁷⁵ que se organizava em busca de prerrogativas.

    Quando o movimento feminista eclodiu nos Estados Unidos da América reivindicando por educação e sufrágio feminino, o grupo porta-voz das exigências era formado por mulheres licenciadas brancas de classe média e alta que pretendiam, basicamente, dispor dos mesmos direitos titulados pelos homens brancos. Tais mulheres, que se diziam a favor da igualdade social, comportavam-se da forma racista como foi estruturada a sociedade e foram incapazes de reconhecer as mulheres negras como companheiras de batalha pelos direitos femininos, mesmo que ambas sofressem com os efeitos da opressão sexista instalada no meio social.

    Isso ocasionou uma atuação do movimento feminista tendente a privilegiar umas em detrimento de melhorias a todas as mulheres do Estado. As mulheres brancas lançaram mão do feminismo como uma organização simultaneamente classista e racista conduzida para fins oportunistas de apoio e manutenção do status quo,⁷⁶ sendo o movimento senão um veículo utilizado para melhoria das próprias vidas.

    Desse modo, as mulheres negras encontraram-se num duplo dilema:⁷⁷ ao apoiarem o sufrágio feminino, aliavam-se às mulheres brancas ativistas que eram publicamente conhecidas como racistas; mas, ao apoiarem apenas o sufrágio do homem negro, acabavam por apoiar também a ordem patriarcal dominante na sociedade, ordem esta profundamente enraizada nas instituições e em cujo contexto as identidades se apresentam como parâmetros heteroconstruídos, ou seja, fundamentados em definições sexuais e de gênero.⁷⁸

    Apesar de a organização do movimento feminista norte-americano ter se dado de forma separada, ao lado de nomes como Susan B. Anthony, Carrie C. Catt, Anna Howard Shaw, Kate N. Gordon, Alice Stone Blackwell, Harriet Taylor Upton, Laura Clay e Mary Coggeshall,⁷⁹ sufragistas brancas, algumas líderes negras tornaram-se importantes para a causa feminista, como Frances Ellen Watkins Harper e Anna Julia Cooper, além de Mary Church Terrel e Sojourner Truth, a qual se destacou por meio de discursos que questionavam o fato de as mulheres negras não serem compreendidas como mulheres, pois que não tratadas como as mulheres brancas.

    A fala mais eloquente de Truth, batizada como Isabella Baumfree, foi proferida como uma intervenção na Women’s Rights Convention, em Akron, Ohio, no ano de 1851. Em tal ocasião, Truth indagou várias vezes E eu não sou uma mulher?,⁸⁰ posto que o tratamento dirigido às mulheres negras e às mulheres brancas era evidentemente diferenciado. As mulheres brancas, segundo as crenças e os costumes da sociedade, deveriam ser ajudadas ao subir em carruagens e suspensas em valas, além de terem o melhor lugar reservado em qualquer espaço. Isso não acontecia com as negras, que, assim como Sojourner Truth, além de trabalharem intensamente, eram castigadas de maneira brutal.

    As mulheres líderes negras corajosas como Sojourner Truth e Harriet Tubman não representam a norma; elas foram indivíduos excepcionais que se atreveram desafiar a vanguarda masculina em lutar pela liberdade. Nas aparições públicas, reuniões, almoços e jantares os líderes negros masculinos falavam apoiando o governo patriarcal. Eles não falavam diretamente sobre a discriminação contra as mulheres.⁸¹

    Desse modo, compreende-se que a igualdade social entre os gêneros foi defendida de modo efetivo e com mais vigor pelas feministas norte-americanas negras, que compunham a classe mais inferior da hierarquia racial e sexista instituída na sociedade dos Estados Unidos. Assim, elas podem ser consideradas as pioneiras⁸² da ideologia do feminismo como um movimento de apoio a todas as mulheres contra a opressão de gênero, raça e classe, por exemplo, haja vista que agiram em benefício da real transformação da sociedade estadunidense.⁸³

    Essas feministas defenderam um movimento inclusivo, com olhos voltados às interseccionalidades que acometiam e ainda acometem várias mulheres. De fato, as feministas negras não direcionaram o movimento feminista aos objetivos individualistas de manutenção da estrutura social, como fizeram as mulheres brancas em seus primeiros anos, mas buscaram a verdadeira igualdade social entre todas as mulheres do país.

    De maneira perceptível, o feminismo se desenvolveu diferentemente em todas as partes do globo. No Brasil, onde durante os séculos XVIII e XIX o Iluminismo foi tido como uma ideia incompatível, dada a dominância do sistema colonial e escravagista,⁸⁴ mulheres passavam também a ser conhecidas por infringirem normas e convenções a favor dos direitos femininos. O movimento se estabeleceu no país a partir da agitação sufragista dos Estados Unidos, que serviu de modelo às mulheres brasileiras, e teve como pioneira Dionísia Gonçalves Pinto, cujo pseudônimo era Nísia Floresta Brasileira Augusta.

    Por ter sido parte da elite brasileira, filha de classes dominantes nordestinas, Nísia Floresta teve a possibilidade de viajar constantemente à França, de onde tirou inspiração para incorporar o feminismo no debate nacional, e participar de círculos positivistas ao lado de Auguste Comte,⁸⁵ por exemplo. Ela foi a responsável pela tradução livre das ideias emancipatórias de Wollstonecraft acerca da educação como meio para a independência feminina em Direitos das mulheres e injustiças dos homens, obra publicada em Recife no ano de 1832 que marcou historicamente a inserção da corrente política e intelectual feminista na terrae brasilis.

    Ao introduzir no Brasil noções vindas da Europa, Nísia Floresta colocou em língua portuguesa o clamor europeu e juntou ideias novas para o contexto nacional, pensando na mulher e na história brasileiras. Com isso, empreendendo uma espécie de antropofagia libertária,⁸⁶ o texto fundante do feminismo brasileiro foi inspirado em escritos de Mary Wollstonecraft, Poulain de la Barre e Olympe de Gouges, de maneira que foram inseridas no país as concepções de inferioridade e a noção de gênero como uma construção sociocultural.

    As primeiras demandas no Brasil coincidiram com as reivindicações europeias e norte-americanas. Argumentava-se em busca de direitos à educação das mulheres e à igualdade no casamento, em especial ao direito de as mulheres casadas disporem de suas propriedades, além dos direitos políticos de votar e de serem votadas, já que eram considerados cidadãos⁸⁷ apenas os homens.

    Considerando o atraso da educação das meninas, que basicamente se concentrava em aulas de costura e bordado, preparo de alimentos e leitura de orações, enquanto aos meninos era direcionado um ensino científico e técnico,⁸⁸ Nísia Floresta defendeu, em vários trechos de sua obra, a igualdade de talento e capacidade de homens e mulheres para o desempenho de atividades nos mais variados campos de conhecimentos úteis da sociedade.

    Assim, repelindo a ideia de que o casamento seria o grande propósito de vida das meninas e mulheres, a autora argumentou por uma educação vigorosa em prol da emancipação racional e pela inserção feminina na vida social ao escrever que não havia ciência nem cargos públicos do Estado que não pudessem ser preenchidos, da mesma forma, tanto por homens quanto por mulheres.⁸⁹

    Além de Nísia Floresta, outro importante nome que exerceu muita influência no início do movimento feminista brasileiro foi o da bióloga Bertha Lutz. Estudante da principal universidade francesa, a Sorbonne, em Paris, Bertha voltou ao Brasil, no ano de 1918, profundamente influenciada pela efervescência política e pelas ideias feministas do hemisfério norte, haja vista que acompanhou de perto o desenvolvimento das atividades das suffragettes⁹⁰ inglesas.

    Ao denunciar a opressão da classe feminina e defender incansavelmente a igualdade de direitos entre homens e mulheres no país, Bertha fundou a Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher, conhecida mais tarde como Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF). Essa, sem dúvidas, foi a organização de maior relevância na luta pelo sufrágio feminino brasileiro,⁹¹ cuja campanha teve Bertha Lutz como uma de suas mais expressivas lideranças.

    1.2. A CONQUISTA DOS DIREITOS POLÍTICOS PELAS MULHERES BRASILEIRAS

    Antes de a presente pesquisa se debruçar no longo processo de ampliação e então universalização⁹² da cidadania política pelas mulheres brasileiras, que se deu no começo do século XX, é oportuno destacar que a prática política do Brasil se marca historicamente pela perpetuação de interesses particulares. Essa cultura da personalidade⁹³ faz com que tais interesses particulares constantemente se confundam com os interesses da própria sociedade, de modo que há influência na busca pelo poder e no constrangimento da cidadania, sendo as fidelidades políticas garantidas por meio de obrigações clientelistas que conjugam o domínio da cultura familiar ao domínio da cultura política.⁹⁴

    É dessa maneira, com os interesses pessoais invadindo a esfera pública num círculo vicioso,⁹⁵ que o público e o privado se misturam no país: o Estado apropriado privadamente por determinados interesses de elites dirigentes que asseguram seu poder político com o mote da consistente motivação para se modernizar o Brasil através do apoio a corporativismos trabalhistas específicos,⁹⁶ ao passo que as massas populares restam praticamente abandonadas. Nesse sentido, pode-se dizer que a luta pelo sufrágio feminino também se marcou pela imposição de interesses majoritários perante grande parte da população, que por muito tempo foi considerada uma segunda classe.

    Com tais noções em mente, é possível agora se dedicar ao longo processo de conquista dos direitos políticos femininos, essenciais para o exercício de prerrogativas hoje em dia. No entanto, vale frisar que, nos países onde as mulheres têm reconhecido o direito ao sufrágio, as instituições políticas, as formas de ascensão aos quadros diretivos e os preconceitos arraigados⁹⁷ têm obstaculizado que mulheres ocupem postos de direção governamental e cargos eletivos na mesma proporção com que compõem a sociedade e o eleitorado. É justamente esse descompasso o tema central da presente pesquisa.

    À medida que Nísia Floresta, que pertencia a uma tradicional família do Rio Grande do Norte, empenhava-se na busca de acesso à educação emancipatória para as mulheres, uma vez que o ensino então proposto só admitia para as meninas a escola de 1º grau, sendo impossível, portanto, atingir níveis mais altos, abertos aos meninos,⁹⁸ inaugurando, inclusive, estabelecimentos de ensino para colocar em prática suas ideias pouco ortodoxas em matéria de educação feminina,⁹⁹ os homens públicos do Brasil preocupavam-se quanto à construção de instituições para tornarem o Estado brasileiro independente do governo português.

    Embora parcela do país defendesse a adoção de um modelo republicano, a maior parte dos brasileiros apoiava a manutenção da monarquia, mesmo que insatisfeitos com o modo com que Dom Pedro I vinha governando,¹⁰⁰ imperador que outorgou, no ano de 1824, a Constituição Política do Império do Brasil, conhecida também como Carta de Lei de 25 de Março de 1824.

    O documento reconhecia a existência de quatro poderes políticos, quais sejam, o Legislativo, o Executivo, o Judiciário e o Moderador, sendo este último considerado a chave de toda a organização política do Império, e de exercício exclusivo da figura do Imperador, conforme artigos 98 e 101¹⁰¹ da Constituição.

    Ademais, a Constituição de 1824, que, por ter se mantido vigente durante sessenta e cinco anos, é historicamente a Constituição brasileira mais duradoura, previa o caráter econômico como condição do exercício ativo da cidadania, sendo cidadãos ativos as pessoas capazes de eleger os integrantes do governo. Desse modo, nas eleições locais, também conhecidas como paroquiais, eram admitidos e reconhecidos os votos das pessoas livres, maiores de 25 anos e com renda anual mínima de 100 mil réis,¹⁰² ou o equivalente em bens, ao passo que para as eleições do parlamento, em que se escolhiam senadores, deputados e membros das assembleias provinciais, era acatada a participação de cidadãos ativos com renda anual mínima de 200 mil réis, ou bens de mesmo valor.¹⁰³

    Além de estabelecer o sufrágio censitário, em que a renda é adotada como critério para definir quem pode ou não exercer a cidadania, a redação da Constituição de 1824 tornou-se alvo de questionamentos pelo fato de ter se referido aos cidadãos com o substantivo masculino no plural, de maneira que não restou elucidada a inclusão das mulheres como cidadãs. Caso o Estado compreendesse que as mulheres também estavam aptas a exercer os direitos políticos, elas poderiam procurar Juntas Eleitorais para votar e expressar sua própria opinião política,¹⁰⁴ o que seria uma questão decisiva para a época.

    A despeito de tal possibilidade, a interpretação dominante considerava como cidadãos apenas os homens, vistos como cidadãos ativos, enquanto mulheres, doentes mentais e crianças, apesar de deterem direitos civis, por serem capazes de receber herança, eram entendidos como cidadãos passivos, dada a grande influência do modelo francês que, aliás, serviu de inspiração à Constituição brasileira. Dessa forma, apesar da inexistência de menção explícita sobre a incapacidade de as mulheres exercerem os direitos políticos, acreditava-se que a concessão de voto à classe feminina nunca tinha sido intenção dos legisladores brasileiros.

    Embora o sufrágio feminino não estivesse estatuído, ainda antes da institucionalização da República brasileira, que se deu com a Constituição de 1891, apareceram mulheres lutando pelo direito ao voto, mas de forma individual. Isso significa que eram feitas solicitações de alistamento como eleitoras e/ou candidatas e tais solicitações podiam ter resultado procedente ou não, dependendo do entendimento das comissões eleitorais.

    Alguns homens também se sensibilizaram à causa dessas mulheres, como José Bonifácio de Andrada e Silva e Manuel Alves Branco, ambos homens públicos que juntos foram os autores responsáveis pelo primeiro projeto de lei na tentativa de reforma eleitoral, em 1831.¹⁰⁵ Para tal projeto, os dois deputados¹⁰⁶ buscaram inspiração em proposta semelhante discutida na Assembleia Francesa no mesmo ano, além de consultarem escritos de John Stuart Mill,¹⁰⁷ escritor e filósofo inglês simpatizante à concessão de direitos à classe feminina,¹⁰⁸ e se empenharam em mudar a forma de se fazer eleições no país.

    Sugeriram, no artigo 3º,¹⁰⁹ que as mulheres na situação de chefes de família, como viúvas ou separadas,¹¹⁰ poderiam votar nas eleições primárias, momento em que se escolhiam os membros das assembleias locais, compreendidas como um conselho de governo local. A proposta também previa a possibilidade de tais mulheres, caso não quisessem participar pessoalmente das votações, darem seu voto por intermédio de um homem próximo, como filho, neto ou genro. O projeto, apesar de vanguardista por considerar os chefes das famílias como responsáveis pela escolha dos governantes em substituição aos chamados cidadãos ativos, não chegou a ser votado nem discutido, em função da crise política que se instalou no país naquele ano, 1831.¹¹¹

    O primeiro alistamento feminino foi requerido em 1885 pela gaúcha Isabel de Sousa Matos, cirurgiã-dentista. Apoiando-se na Lei Saraiva, Lei nº 3.029 de 9 de janeiro de 1881,¹¹² que garantia o direito de voto aos portadores de títulos científicos, Isabel conseguiu o exercício do voto após ganhar a demanda judicial em segunda instância em sua cidade natal, São José do Norte.¹¹³

    Na capital federal, no entanto, Isabel não teve o mesmo sucesso. Ao se transferir para o Rio de Janeiro em 1889, a dentista requereu o direito de votar à comissão de alistamento eleitoral durante a convocação de eleições para a Assembleia Constituinte republicana e seu pedido foi rejeitado. Na ocasião, a comissão avaliadora achou por bem consultar José Cesário de Faria Alvim, ministro do Interior à época, cuja categórica decisão, publicada em 9 de abril de 1890, julgava improcedente a reivindicação de Isabel de Matos, baseando-se na interpretação de que a Lei Saraiva não havia conferido o direito de voto às mulheres, fossem elas educadas ou não, como a maior parte da população.¹¹⁴

    Também na conjuntura da vindoura Constituinte, Isabel Dillon requereu o alistamento como candidata a deputada em defesa do civismo ao povo baiano, argumentando que a lei eleitoral de fevereiro de 1890 não restringia explicitamente a participação das mulheres do processo eleitoral, uma vez que estabelecia ser o voto direito dos alfabetizados maiores de 21 anos.¹¹⁵

    A solicitação de Isabel Dillon foi publicada em 28 de agosto de 1890 no jornal A Família,¹¹⁶ fundado na cidade de São Paulo por Josefina Álvares de Azevedo com fins de defender a educação feminina como condição de construção da emancipação da mulher,¹¹⁷ mas, apesar da publicidade do alistamento, o pedido não foi exitoso. Assim, a baiana não só não conseguiu ser candidata, como também sequer se alistou como eleitora.¹¹⁸

    Nesse contexto, o Brasil já achava promulgada a República pelo Marechal Manoel Deodoro da Fonseca e instaurava-se no país um novo regime de governo. Com o propósito de se preparar a primeira Constituição republicana, eleições para o

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