A Casa De 99 Cômodos
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A Casa De 99 Cômodos - Murillo Spimpolo
A viagem anual
Estamos fazendo a nossa viagem anual.
Minha mão está do lado de fora do carro, com a palma aberta contra o vento. Posso sentí-lo se deslocar e passar por entre meus dedos.
Sempre faço isso.
Sinto como se conseguisse voar por alguns instantes. Livre. Às vezes, fecho os olhos e me imagino lá no céu, olhando o carro de cima.
Obedeço e volto minha mão para dentro do carro. Ela me olha novamente pelo retrovisor e percebe minha cara fechada.
Mamãe e papai sempre nos falam que se o carro estiver muito rápido e estivermos com a mão para fora, uma placa ou um ônibus pode arrancá-la ao se chocar.
Ela sorri e vejo isso pelo retrovisor.
Estamos dentro deste carro a quase três horas.
Papai está dirigindo enquanto mamãe mexe no seu celular.
Davi, meu irmão mais velho, está do outro lado. Também está mexendo em seu celular. São inseparáveis. Ouço risinhos e vejo seus sorrisos enquanto seus dedos digitam freneticamente.
No meio, dormindo, está Sofia. Minha irmã mais nova.
Somos em três. Davi com seus quatorze anos, quase quinze. Eu com onze. E Sofia com sete.
Esse ano, nossa viagem é para um lugar com cachoeiras. Paraíso Perdido. E esse nome não me agrada nem um pouco.
A palavra Paraíso sempre me remete a algo bonito ou sagrado, quase impecável. Mas isso seguido de Perdido
me assusta. Nada que seja tão bom seria perdido.
Os jogos de viagem do papai são extremamente chatos e sem graça. Coisas como adivinhar o que ele está vendo ou contar carros da mesma cor. Sofia adora, mas eu não gosto e Davi odeia.
Ele tem uma namoradinha na escola e ficam se falando o dia inteiro. Mamãe não sabe, mas eu já os vi dando beijinhos. Nojento.
Davi fica vermelho e me dá um soco leve no braço. Tem mania de deixar o dedo do meio mais levantado, para doer mais enquanto parece inofensivo.
Sofia continua dormindo, mesmo com o barulho do meu grito. Mamãe está brava.
Ela só dá seus tapinhas quando está brava.
Olho para Davi e ele olha para mim. Levantamos nossas sobrancelhas juntos e ficamos quietos.
Por mais que eu pegue no pé dele e ele fique me batendo, somos irmãos. Acho que nos amamos, como a mamãe costuma dizer. Por isso sempre fica tudo bem entre a gente, mesmo após brigas feias.
Mas quando a mamãe está brava, nós sempre optamos por ficar quietos. Uma trégua.
Papai também está quieto e é justamente pelo fato de mamãe estar daquele jeito. Na verdade ele estar quieto deixa-a nervosa e, então, ele fica ainda mais quieto.
Papai costuma ser bem falante nas viagens. Às vezes fica cantando aquelas músicas de rock antigas que só os dois conhecem. Mas ele sempre fica quieto quando faz algo errado e mamãe fica nervosa.
Hoje foi o atalho.
Paraíso Perdido foi ideia do papai. Nunca fomos lá antes. Pelo menos, nós não.
Ele disse que já tinha ido três vezes quando era mais novo, na sua juventude. Que o caminho era fácil e podia chegar lá de olhos fechados. É um velho teimoso. Mamãe falou para colocar no GPS do celular, mas ele se recusou e disse que jamais erraria o caminho. Ela, então, não colocaria para não deixá-lo nervoso ou chateado, mas aposto que torcia com todo o coração para ele errar o caminho.
Todos temos medo da mamãe.
Sua língua solta começou a ficar quieta quando a estrada passou de dupla para simples. E se calou quando a estrada simples ficou ruim e esburacada, com certos trechos de terra ou com péssima pavimentação.
Mas nós conhecíamos seu jeito.
Quando suas palavras se aquietavam, algo estava errado. Era ai que mamãe assumia seu lugar e começava a ficar falante.
Agora. Depois de uma hora. Ainda estamos no atalho enquanto a noite escura, sem estrelas e luar, faz nossa velocidade diminuir em meio a dificuldade da viagem.
Eu via Davi mexendo com seu celular para o alto e para os lados, para ver se conseguia um sinal para levar suas mensagens para sua namoradinha. Mas nada. Os dois estavam sem sinal e consequentemente sem internet.
Papai não respondeu.
Na verdade Sofia ainda dormia e ficou assim por quase todo o tempo desde que entrou no carro. Davi só agora se dava conta da viagem, após seu celular ficar sem rede. Eu estava entediado desde o começo. Não tenho celular pois mamãe acha que sou muito novo para isso. Então quase sempre estou lendo, jogando ou brincando. Adoro ler e isso faria com que a viagem durasse um piscar de olhos, pois quando começo, devoro as páginas e me afundo na história até acabar ela toda. Mas, infelizmente, não consigo ler no carro, me dá vertigens.
Meu videogame está no bolso do banco. Mas sua bateria está baixa e estou tentando economizar.
Um fim de semana no mato pode ser problemático e talvez não tenha nem lugar para carregá-lo. Mamãe diz que é impossível uma casa sem tomadas hoje em dia. Mas eu tenho lá meus receios.
Papai suspira fundo.
Paraíso Perdido
. Digo para mim mesmo em um sussurro inaudível.
Davi me olha e se aproxima do meu ouvido por cima da cabeça de minha irmã.
Eu dou um risinho e seguro para nossos pais não perceberem.
Enfio a mão dentro do bolso do banco e tiro meu vídeo game portátil. Ligo e percebo a luz que ele faz em meio ao escuro. Sofia dá uma resmungada e vira para o outro lado, dependurada pelo cinto.
Vou até as configurações e diminuo o brilho. Começo a jogar.
Nesse jogo, tenho que passar de fases e fortalecer meu personagem. Para isso, preciso matar vários monstros e criaturas odiosas que aparecem durante o percurso.
Me viro para ele e digo expressivamente – Não.
Ele não insiste. Sabe que foi mal comigo antes quando não emprestou o celular para eu me distrair. Sabe também que se reclamasse para mamãe, ela ficaria do meu lado. Ela sempre fica.
Mas nós dois perdemos para a Sofia. Ela tem a mamãe na palma da mão. É a única que