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A Trindade E A Ordem Dos Anjos Da Guarda
A Trindade E A Ordem Dos Anjos Da Guarda
A Trindade E A Ordem Dos Anjos Da Guarda
E-book444 páginas6 horas

A Trindade E A Ordem Dos Anjos Da Guarda

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Sobre este e-book

Aaron se tornou um garoto desanimado, triste e solitário desde que seu pai faleceu. Seus dias agora são monótonos e previsíveis. Recusa amigos e se afasta de qualquer tipo de aproximação social. Tudo que lhe restou foi um tio que mora em outro continente. Mas sua vida irá virar de cabeça para baixo após um acidente. Sua vida inteira terá outro rumo quando uma figura superior aos homens atravessar seu caminho. Seu mundo se tornará muito maior do que é e Aaron começará a descobrir que os humanos não são os únicos no universo. Existem muitas outras coisas... Aaron terá uma segunda chance em meio a um mundo habitado por homens e anjos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento30 de set. de 2019
A Trindade E A Ordem Dos Anjos Da Guarda

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    A Trindade E A Ordem Dos Anjos Da Guarda - Murillo Spimpolo

    O VIGIA

    Era uma bela manhã de outono em Vancouver; o sol brilhava forte entre as poucas nuvens e o vento carregava as folhas de bordo por toda a cidade.

    Na calçada, as pessoas seguiam seus destinos. Alguns iam trabalhar, outros iam em direção a universidade e algumas crianças iam para a escola. A rua, por sua vez, estava ocupada por poucos carros; era uma avenida comercial, mas nenhuma via principal para manter um tráfego alto a esse horário.

    Aos lados dessa avenida havia algumas residências e algumas outras ocupações, e naquele exato segmento de quarteirão tinha um restaurante chinês, um irlandês, outros com culinária local, um Subway, três lojas de eletrônicos, duas pequenas lojas de conveniência e uma padaria.

    Aos olhos normais, não havia nada de incomum em toda aquela paisagem.

    Aos olhos mais atentos, também passava despercebido. Até mesmo para aqueles olhos especiais.

    Mas havia uma figura, um homem.

    Estava sentado ao lado da chaminé de um exaustor na cobertura de um dos restaurantes de comida propriamente canadense.

    Era realmente um homem; pelo menos parecia um.

    Pelo menos em partes.

    Estava pousado ali havia algumas horas, observando de longe uma janela. Uma janela que estava separada dele por aquela pacata e ao mesmo tempo movimentada avenida. Tudo dependia do horário.

    Uma janela fechada.

    A janela era de um edifício misto a quase uma quadra de distância. Havia uma pequena galeria no térreo e cinco andares de apartamentos acima. A janela continuava fechada, uma das únicas assim, pois nesse horário quase todas já se encontravam abertas para a luz limpar o ambiente. Na verdade, somente estavam fechadas aquelas em que os apartamentos não tinham sido alugados. Ou seja, somente duas delas a mais que aquela.

    Mas nada se via além das cortinas que tampavam toda a esquadria por dentro daquele específica janela.

    Mas aquele também não era um homem qualquer. Só se parecia em partes com um.

    Estava estático, com os olhos diretamente direcionados para aquela janela. Quinto andar, apartamento 53. Mas não se engane, até mesmo ele era incapaz de ver através da cortina.

    Mesmo com aqueles olhos especiais, ele não poderia ver.

    Mas podia sentir.

    O homem não prestava atenção no que estava abaixo dele. Não olhava os carros, não pensava nas pessoas andando apressadas. Não ligava para o cheiro da fumaça que saía pouco acima dele.

    O vento forte agitava seus cabelos loiros bem claros. Claros como o Sol, quase platinados e uniformes até as raízes.

    E ele olhava para a janela coberta pelas cortinas. Onde nada podia ser visto.

    Mas podia sentir.

    Se alguém prestasse atenção nele ou até conseguisse vê-lo, talvez pensasse que não era nada mais que um trabalhador daquele restaurante, matando tempo, limpando ou se escondendo para fumar.

    Mas estava bem camuflado as sombras daquela chaminé. Estático.

    Estava tão quieto que as pombas ao lado dele não se incomodavam com sua presença.

    Era real, ao mesmo tempo que parecia surreal.

    E o vento forte continuava a agitar seus cabelos.

    Isso não o incomodava, pois seus olhos verdes continuavam fixos naquela janela.

    Fechada.

    Mas não importava, pois ele podia sentir.

    O MORADOR DO APARTAMENTO 53

    O despertador do celular que estava sobre a cômoda, tentava pela terceira vez ser notado para realizar sua função de acordar um garoto jogado na cama, que até então não tinha dado nenhum sinal de resposta. Quem visse o corpo jogado sobre o lençol que começava a se soltar das bordas do colchão, poderia afirmar que estava morto e tinha sido deixado daquela maneira. Mas poucos segundos depois seu corpo começou a mostrar sinal de vida, primeiro mexeu a cabeça e depois o corpo em movimentos leves, tentava tampar os ouvidos com o travesseiro.

    Trinta segundos depois, ignorar o som já não era suficiente, então logo se sentou na ponta da cama como um reflexo, sem mais resistência, nem parecia que estava deitado há um minuto atrás. Seus olhos por outro lado não tinham a mesma força que o resto do seu corpo, não se abriram completamente, parecia até que não estavam prontos para acordar, e a remela parecia dificultar toda essa ação.

    Estava desperto, ou parecia estar, conseguia identificar a música tocada por seu celular, e o que antes parecia somente barulho, era na verdade o solo de Eruption. Uma música da banda Van Halen.

    Mas ficou alguns segundos sentado na beirada da cama, com os braços o apoiando enquanto tomava equilíbrio e consciência para levantar de uma vez por todas.

    A porta do banheiro foi sua primeira visão após muito esforço, seu corpo levantou e foi em direção ao banheiro deixando a música terminar de tocar em seu celular e recomeçar. Usou o vaso e depois foi a pia lavar o rosto, tudo parecia automático como se fosse um robô programado para fazer essa rotina todos os dias. Se olhou por alguns minutos no espelho, não era feio, na verdade era atraente de um modo convencional, tinha cabelos castanhos puxados para um tom mais claro, como uma madeira envernizada, marrom, mas bem mais claro; não era nenhum modelo masculino de comercial de cuecas, mas era magro e alto. Seus olhos pareciam negros, mas quando se olhava mais de perto, dava para perceber que eram castanhos muito escuros.

    Voltou ao quarto e abriu as cortinas da janela. Por um segundo se deparou consigo mesmo encarando os prédios da frente, mas nada ali havia para ser visto.

    Pelo menos não via nada.

    Vestiu a mesma calça que usou no dia anterior, que ficou jogada no braço da poltrona, nem se preocupou em fazer a barba rala em seu rosto e foi logo pegando a primeira camiseta limpa que encontrou na gaveta, sem nenhuma preocupação com sua aparência. A ideia de uma chuveirada nem passava pela sua cabeça.

    Pegou o celular e tirou aquele solo de guitarra que já tinha se repetido algumas vezes mais.

    Pegou seu casaco, pois os ventos gelados já haviam começado nesse outono em Vancouver, enfiou os sapatos nos pés, pois tinha o costume canadense de não usá-los dentro de casa, e saiu do apartamento com uma mochila, que carregava os mesmos cadernos, notebook e o mesmo estojo por toda aquela semana, como se não tivesse sido aberta após as aulas. Na verdade, realmente não foi aberta. Estava atrasado e precisava chegar à Universidade da Colúmbia Britânica.

    Mas nunca se preocupou com seu atraso antes ou nos dias anteriores.

    Hoje também não se preocuparia.

    Saindo do prédio, passou ao lado de outro morador e o cumprimentou com um aceno de cabeça, nunca se lembrava do nome dele, tampouco de qualquer outro. Na verdade olhava para tudo, gostava de observar mas não prestava realmente atenção em nada por mais que alguns segundos. Morava na Décima Avenida Oeste, não havia muitas pessoas que moravam por ali. Haviam alguns prédios mistos como o dele, com comércio ou serviço embaixo e pequenos apartamentos em cima.

    Ele procurava seus fones de ouvido na mochila, queria distrair sua cabeça do barulho infernal da vida na cidade grande.

    Dava para dizer que o garoto tinha um gosto muito eclético, ouvia desde rock a country, jazz a pop, e se tinha algo que sentia orgulho, era de seu gosto musical e também cinematográfico.

    Sua lista de filmes já vistos era incalculável à essa altura. Devorava filmes como se fossem episódios curtos de séries de comédia, talvez por ver vidas diferentes, aventuras e romances, que nunca viveria em sua própria vida.

    Mas a manhã estava bonita, talvez precisasse de algo animado e alternativo. Foster The People, foi a primeira banda que lhe veio à cabeça, pois lhe dava vontade de dançar com as músicas, mas tinha que se conter na rua. Na verdade sua dança era única e exclusiva do espelho no banheiro do seu quarto, qualquer outro local desconhecia seus passos sem ritmo.

    O céu estava limpo, com apenas algumas nuvens sendo arrastadas pelo vento. O Sol batia forte sobre o rosto, mas não fornecia calor suficiente para andar sem a jaqueta.

    Era começo de mês. As folhas de bordo secas já se espalhavam por toda cidade, amontoando-se umas nas outras. E as cores vermelha, laranja e amarela pintavam a paisagem com suas árvores. O garoto morava a poucas quadras da avenida da universidade, que levava direto ao campus, e fazia questão de ir a pé, pois gostava de observar as pessoas e a rua, ainda mais com tantos estudantes no caminho.

    Mas não gostava de se socializar com eles. Isso não fazia.

    Observar. Não socializar.

    A primeira música tinha acabado, e começava a segunda, essa era uma de suas preferidas da banda. O nome da música era Houdini, e a letra começava falando sobre se preparar para uma guerra, uma analogia que não entendia completamente, nem as referências que toda a música fazia. Mas o real atrativo dessa música em específico, além da melodia, era a frase "Sometimes i want to disappear" (às vezes eu quero desaparecer). Essa era exatamente uma das coisas que mais queria em sua vida, desaparecer, não morrer, mas sumir para um outro lugar, onde ninguém mais estivesse para incomodá-lo, sem explicações, sem satisfações e sem obrigações; somente ele no mundo. Seria algo legal de acontecer.

    Sometimes i want to disappear, às vezes eu quero desaparecer.

    No caminho passava pelas calçadas olhando para os comércios, gostava de observar ao seu redor, mas evitava os rostos das pessoas quando estavam muito perto, realmente era para não cumprimentar ninguém, não a essa hora da manhã, pois não entendia como pode haver tanto bom humor matinal, quando não conseguia sentir o mesmo.

    Observar, mas sem socializar.

    Era feliz somente consigo mesmo nesse momento, não queria dividir ou esbanjar isso com os outros. Egoísta. Atravessava a rua apenas seguindo as pessoas, às vezes olhava o semáforo para se certificar de que estava realmente aberto, mas dificilmente olhava para os lados.

    Chegando no campus, rapidamente guardou seus fones.

    Não dava para negar que era um lugar lindo de se ver, parecia outra cidade, inteiramente fornecida dentro do campus, com Universidade marcado em cada edifício, como farmácias e mercados por exemplo. A movimentação de pessoas era bem maior que em seu bairro, que nem ficava tão longe. Mas tinha muitos estudantes que moravam no campus e mal saíam dele.

    Passou pelo Parque Memorial Jim Everett e seguiu até o cruzamento com a Wesbrook Malle, e então virou para a esquerda. Passava por algumas fraternidades e outros comércios. Do outro lado da avenida estava a Universidade de Odontologia. Continuou seu caminho até chegar na Agronomy Rd e desceu por ela, não estava longe agora. Passou pelo Instituto de Ciências da Vida e depois pelo complexo de prédios de engenharia. Finalmente estava chegando ao seu prédio: H. R. MacMillan Building, na UBC Faculdade do Solo e Sistemas Alimentares.

    Quando chegou em seu prédio, começou a ver vários rostos conhecidos, não eram amigos, pois não tinha isso havia algum tempo; mas certas vezes trocavam algumas palavras. Um deles fez um gesto, o chamando para a roda de pessoas. Sem o menor humor para conversa, enfiou a mão no bolso do casaco, pegou o celular, e fingindo estar atendendo a uma chamada atravessou a multidão apenas com o dedo indicador levantando, como se pedisse para que esperassem terminar aquela ligação; e rapidamente foi para a escadaria externa e subiu os degraus em um ritmo acelerado, como se estivesse com pressa para a aula, sendo que até o momento não se preocupou com seu horário.

    Não voltaria para falar com aquelas pessoas, e um dos garotos, um de boné virado para trás, ficou analisando toda aquela situação. Era o garoto que tinha chamado ele para se juntar aos amigos.

    Entrando na sala percebeu que tinha interrompido a explicação e que o professor o encarava decepcionado, novamente só fez um aceno de cabeça, dessa vez como sinal de desculpa, e subiu para o seu lugar. O homem conformado voltava a sua aula de como as plantas trocam a fotossíntese por respiração quando não há luz para o seu ciclo energético, ou pelo menos era isso que parecia. Jogou sua mochila para debaixo da mesa. Nunca sentava na frente, pois não queria a atenção dos professores e não queria ter que prestar atenção em todas as aulas, mas também não sentava no fundo, pois seria estranho ter que ficar conversando com todos aqueles desinteressados que sentam no denominado fundão; então sentava no meio, perto do corredor, para conseguir sair cinco minutos mais cedo e não passar por outra multidão.

    Tentou prestar atenção na aula. Colocou a cabeça sobre o braço apoiado verticalmente na mesa, mas aos poucos parecia que ia desabar e bater a testa contra a madeira. E como todo o cansaço que tinha ainda não tinha se esgotado, resolveu debruçar-se sobre a carteira, somente para ficar mais relaxado e descansar, mas acabou pegando no sono novamente e dormindo nos seus próprios braços cruzados como apoio.

    Sua mente criou um sonho para o garoto, algo que era bem raro, mas às vezes aparecia. No sonho, estava de pé, sobre um grande prédio, parecia ser uma cidade grande, mas não era Vancouver. Mas tudo começou a ficar enevoado antes mesmo de conseguir identificar algo e as imagens começaram a ruir, como desenhos em papel após ser molhado.

    Foi então que sentiu.

    Sentiu que tinha alguém do seu lado, alguém que estava o observando e analisando, uma sensação como se tivesse alguém tão perto que as ondas sonoras que chegam aos seus ouvidos fossem interrompidas por uma massa robusta. Algo palpável. Já tivera sensações como esta, como todas as pessoas às vezes tem, mas sempre sabem que não passa disso, uma sensação, e que ninguém está ali. Mas desta vez era diferente, era quase como se conseguisse sentir a presença de alguém, sentia que se quisesse poderia estender a mão e tocar um corpo sólido que estava ali estático ao lado dele, e foi quando sentiu uma mão sacudindo seu ombro e acordou em um solavanco.

    Era ela.

    Uma garota de sua sala, cabelos pretos como uma noite sem estrelas, olhos verdes cintilantes, como se a qualquer momento fossem mudar de cor, seus lábios eram perfeitamente desenhados, mas por alguma razão não se fechavam, não que ficasse de boca aberta como um crocodilo ao sol, mas sim que um pequeno vão fica entre seus lábios cerrados, quase como um charme, um chamativo para um beijo; e por entre eles dava para ver seu sorriso a apontar, com seus dentes brancos estupidamente perfeitos.

    E ela então interrompeu a fria e apaixonada observação do garoto.

    – Ei! Garoto. A aula já acabou e todos já saíram, acho que é melhor você terminar de dormir na sua casa, talvez seja até mais confortável. – concluiu a garota com ironia e tomou seu rumo para a porta para descer as escadas.

    Quando o garoto olhou para os lados, a maioria dos alunos já tinham ido embora, somente alguns ficaram na sala, conversando ou arrumando seus materiais, e o professor estava apagando a lousa como alguém que acabará de perceber como sua vida saiu dos planos.

    Mas por que ninguém o acordou antes? Será que era tão menosprezado assim? Talvez fosse melhor, não queria mesmo conversar com outras pessoas ou ter de dar satisfações para alguém, somente ficou pensando na garota de cabelos pretos, e como em todo esse tempo ainda não sabia sequer o nome dela.

    Ao sair da sala, só pensava em voltar para casa e deitar novamente em sua cama, estava com fome mas não tinha vontade de fazer nada para comer, talvez pedisse algo por telefone ou comprasse no caminho. Foi por isso que se mudou para aquela avenida, tinha restaurantes aos montes.

    No caminho de volta, já estava totalmente desperto, olhava para as janelas dos prédios e para todos aqueles vidros refletidos, mas não olhava nos rostos que passavam por ele. Após alguns meses na universidade, nada aprendeu, não tinha achado nenhum motivo para seguir em frente nos estudos, quase que por mágica, Under Pressure começou a tocar ao acabar a música que estava ouvindo. Uma música do Queen junto a David Bowie.

    Quando olhou para o outro lado da rua, viu novamente a garota que o acordou na sala de aula, estava na outra esquina, digitando em seu celular. O garoto estava tão distraído que nem percebeu que atravessou a rua quando ninguém mais fez o mesmo, o sinal estava aberto para os automóveis, e ele estava como um condenado em frente ao pelotão de fuzilamento.

    E a música chegava no verso "Pray tomorrow gets me higher" (rezo para que o amanhã me deixe mais animado). Ouviu alguns gritos e uma buzina, mas quando virou, só teve tempo de ver uma grande caminhonete em sua direção.

    Freando, mas incapaz de parar antes de atingi-lo.

    Tudo passava tão devagar, mas demorava somente um segundo. Um mísero segundo, em que seu corpo não conseguiria reagir rápido suficiente para salvar sua vida, e a pancada que estava vindo, com certeza tiraria sua existência do mundo, não haveria o amanhã que a música cita, e essa vida teria sido uma das mais insignificantes que pensou já ter existido.

    Observar. Não socializar.

    Não era ninguém.

    Sua morte não faria diferença na vida de ninguém.

    Seu nome talvez nem seria lembrado, talvez por uma ou outra matéria de jornal, mas com certeza esquecido após duas semanas.

    Sem reação.

    Mas de repente sentiu uma mão o empurrando.

    Um movimento talvez mais rápido que todo aquele segundo.

    Sentia apenas ela empurrando seu peito, e seu corpo saiu do chão e praticamente voou como se fosse arremessado por uma força descomunal de um super herói dos filmes que tanto gostava, com as folhas do outono saindo do chão como se o garoto fosse acompanhado por uma rajada de vento; e só foi sentir o chão novamente do outro lado da rua, na calçada, onde aterrissou com tanta força que o baque de seus ossos foi gigante dentro de seu corpo, e sem força para se equilibrar, a sua cabeça tocou o chão como uma bola de tênis toca a quadra adversária, tirando inclusive seus fones de suas orelhas.

    E quando seu corpo parou estável, tentou olhar seu salvador, mas a imagem que viu não era possível, não fora dos livros e dos filmes, não naquela faixa de pedestres. Enquanto todos olhavam para o garoto jogado no chão, salvo milagrosamente, ele encarava uma figura no meio da rua.

    Simplesmente via um homem alto, parecia chegar a quase dois metros, de cabelos cinzas e curtos, com um corte semelhante ao militar, vestindo roupas estranhas, de alguma cultura diferente, mas o que chamou sua atenção foi o que estava atrelado as suas costas.

    Um grande par de asas.

    Brancas como nuvens em um dia de sol, coberta de penas compridas, como se fosse a maior ave que já vira.

    Estendidas horizontalmente, onde de uma ponta a outra dava para perceber que era o dobro do seu tamanho, e também tinha um círculo de luz brilhando em sua cabeça, uma forte e pura luz como jamais tinha visto.

    Intensa. Talvez até mágica.

    Sentiu sua cabeça doer, a pancada foi mais forte do que tinha imaginado, e em dois segundos uma tontura forte sugou sua energia para ficar acordado, e só percebeu aquela imagem figurativa e angelical vindo em sua direção, mas sua visão ficou turva até enegrecer completamente, e tudo que escutou foi um bater de asas.

    Um bater de asas.

    Mal sabia Aaron, que esses poucos segundos mudariam toda sua vida.

    E que seu nome seria lembrado.

    VENDO ATRAVÉS DO VÉU

    Ele o observa.

    E essa não é a primeira vez.

    O observa várias vezes, mas não o tempo todo.

    Fica afastado, quase sempre o olhando de cima, mas às vezes à pequenas distâncias.

    O olha como um pai olha para o filho indo para a escola.

    Policiando.

    E por todo o caminho, percebe que o garoto não fala com ninguém, não mexe com ninguém, não socializa. Percebe que olha para as coisas, garotas bonitas, anúncios, lojas, mas de nada se aproxima. Evita rostos próximos.

    O garoto é desatento, estranho e diferente dos outros. E isso o irrita.

    Isso dificulta e o entristece.

    Se fosse normal, talvez tudo seria mais fácil. Mas não é, e não é nada fácil.

    Ele age como se fosse mais uma daquelas folhas de bordo arrastadas pelo vento, sem vida própria. Não faz o mesmo som que a folha faz ao arranhar o chão ao ser arrastada, mas seu silêncio parece ser ainda mais irritante.

    O garoto se atrasa para as aulas, e quando chega, dorme. É ridículo.

    Um verdadeiro desperdício de seu tempo.

    Poderia fazer outras coisas, se livrar desse fardo. Mas não pode. Existe uma ligação. Não dá para se livrar. Então continua a segui-lo.

    O homem está longe do garoto agora. Não fica ao seu encalço todo o tempo.

    Reveza seu tempo com outros.

    Mas ainda consegue sentir.

    Mesmo longe, pode sentir. Pode sentir todos eles.

    E nesse exato momento sente o perigo, como uma premonição, de morte.

    Seu instinto estala em uma fração de segundo, levando algo sobre sua cabeça a brilhar.

    E então já está novamente em Vancouver, sobre uma faixa de pedestre, dividindo o espaço da travessia apenas com o garoto.

    Ele está com o rosto virado para uma caminhonete que tenta frear em sua direção, tentando evitar uma fatalidade inevitável. Pelo menos deveria ser uma fatalidade, e com certeza deveria ser inevitável.

    Com a mão aberta, o homem empurra o garoto no sentido contrário ao seu. Sua força? Descomunal. E Aaron simplesmente voa em direção a calçada em que estava à dois segundos.

    O veículo ainda freando, passa rente ao rosto do homem, mas por poucos centímetros, não o acerta.

    O garoto olha diretamente para ele.

    Olha diretamente para ele. Seu guardião.

    O guardião se assusta, pois não deveria ser visto, não tinha como ser visto, não por ele. Não por eles. Nenhum deles.

    Se aproxima do garoto, que está perdendo a consciência, e isso está nítido em seus olhos, em suas pálpebras, em sua postura, deitado, apoiado sobre os cotovelos. Assim que está a ponto de tocá-lo, ele desmaia.

    Será que realmente o viu?

    Não poderia vê-lo. Não Aaron. Nenhum deles.

    A FIGURA E A PENA

    O som constante de um apito, um bip-bip, era ecoado por todo o quarto, o branco era predominante nos papéis de parede, na pintura, no acabamento, até em alguns móveis e utensílios. Aaron abriu os olhos e se encontrou em um quarto nitidamente de hospital, e o barulho repetitivo vinha de um monitor cardíaco que estava ao seu lado.

    Ele não estava entendendo o que aconteceu, apesar de se lembrar do acidente e da vaga figura de um homem que o salvou, tudo que veio depois estava em branco, como se sua memória tivesse sido apagada, e por mais que tentava forçar não conseguia extrair nada. Apertou o interruptor de chamada de enfermeira, pois foi a única coisa que lhe veio à cabeça naquela hora.

    Enquanto esperava, pegou seu celular que estava sobre a cômoda ao lado da cama, não tinha amigos, então ninguém se preocupava, mas queria conferir, mas a bateria tinha acabado.

    A enfermeira logo apareceu, era baixinha e com cabelos castanhos enrolados, com cara de quem acabara de fazer quarenta anos, como se estivesse sentindo o peso da vida passar, mas mesmo assim tinha um rosto confortante que fazia qualquer paciente se sentir melhor e mais tranquilo.

    – Boa tarde, se sente melhor senhor... – Ela olhava o prontuário em busca de informações. –... Cooper?

    – Sim, é. Em que hospital estou? – Disse Aaron com insatisfação da formação de suas frases.

    – O senhor está no Hospital Saint Paul’s, sofreu um acidente dois dias atrás, e teve uma pancada forte na cabeça, bem acima da nuca.

    – Eu me lembro do acidente, pelo menos em parte, mas é grave? Por que fiquei apagado por dois dias? O que exatamente aconteceu comigo?

    – O senhor sofreu uma pancada na parte posterior de sua cabeça, o que levou a um inchaço intracraniano, mas felizmente nada grave se alastrou e o Dr. Rhodes conseguiu diminuir o inchaço na cirurgia.

    Aaron passou a mão atrás da cabeça e percebeu que parte do seu cabelo havia sido raspado, e que no meio disso havia um curativo bem dolorido ao toque. A enfermeira se aproximou urgentemente e logo puxou o braço dele.

    – Senhor, por favor, evite tocar o curativo, os pontos estão embaixo dele, e qualquer movimentação mais forte pode rompê-los. Por isso o deixamos sedado por todo esse tempo, para melhor cicatrização pós-operatória.

    – Mas o que vai acontecer comigo?

    A enfermeira continuava a se movimentar pelo quarto, anotando e preenchendo algo no prontuário, e parando também para responder Aaron com um sorriso no rosto.

    – O senhor está fora de risco, e não ficará com nenhuma sequela, foi uma grande sorte não ter acontecido nada pior no acidente.

    O acidente. Aaron continuava a tentar lembrar todos os detalhes, mas somente trechos vinham-lhe à cabeça, como as buzinas, a caminhonete e o homem, tudo ao redor disso estava vago, e mesmo tentando se esforçar para lembrar, parecia que não tinha peças suficientes para montar aquele quebra-cabeça.

    – E quando posso ter alta? Já que você disse que estou fora de risco.

    – Temos que te manter aqui por mais alguns dias, apenas para observação. – Disse a enfermeira rabiscando mais alguma coisa e logo depois saiu do quarto, sumindo pelo corredor.

    Ele olhou ao redor para ver se tinha alguma pista do que aconteceu. Na poltrona estavam suas coisas, como roupas dobradas e mochila, parecia que desde que foram colocadas ali ninguém usou a poltrona. Ou seja, ninguém o tinha visitado.

    Não que esperasse alguém, pois sabia que era praticamente sozinho no mundo, seu pai faleceu quando ele era muito jovem, tinha um tipo raro de tuberculose, e nunca conheceu sua mãe, ela os abandonou quando Aaron nasceu. Ao que parece nas histórias que seu pai lhe contava, ela não suportou perder sua juventude para a vida de uma criança, o aborto só não foi uma escolha pois o seu pai impediu. Mas mesmo sozinho, herdou uma pequena fortuna de seu pai, pois era dono e criador de algumas patentes, que agora estão em seu nome, mas muitas delas foram alteradas pelo seu tutor. Seu tutor, Steve, primo de seu pai, não era má pessoa, na verdade sempre tentou se aproximar do garoto, pois nunca teve filhos, e era a única família que tinha, então assumiu ser o guardião de Aaron até sua maioridade, lógico que contou com o dinheiro que estava anexo ao garoto, por ambos, pois não tinha condições de cria-lo sozinho; mas após os anos tomou conta de algumas patentes, mesmo a maioria delas ainda ficando com Aaron. O garoto sempre o chamou de tio Steve, mesmo não sendo necessariamente isso, mas atualmente está morando no Marrocos. Está por lá há mais de um ano, desde a maioridade do garoto, ligava uma vez por semana para ver como estava e se estava bem de saúde, e às vezes deixava alguma mensagem no celular.

    Aaron nasceu em North Vancouver, que não era longe dali, mas pegar a balsa todo dia seria um esforço desnecessário, e uma grande perda de tempo, então por isso alugou o apartamento perto de sua Universidade. Mas o garoto nem sempre morou no Canadá, ele e seu pai já moraram em Boston, onde fica a sede dos negócios de seu pai. Mas depois de sua morte, retornou a Vancouver, sem amigos e sem quase nenhuma família. Somente seu tio.

    Seu tio!

    Era melhor pegar o carregador que sempre leva consigo na mochila, e recarregar o celular para se atualizar.

    Voltou a averiguar o local que estava em repouso, não tinha nada para fazer ali, somente uma televisão para se distrair, e nada no quarto lhe parecia recente, mas quando olhou por detrás do soro, viu que no criado mudo do outro lado da cama, tinha um vaso de flores com um arranjo de lírios laranjas frescos. Surpreso, ele esticou a mão procurando por um cartão, mas nada tinha sido deixado a mais além das flores. Será que tinha sido algum amigo? Ou talvez a morena de olhos cintilantes? Pois ela parecia ser a única que se importava, foi a única que percebeu que ele ficaria na sala após a aula ter terminado. Mas agora nunca saberia, não sem um cartão e sem a coragem para perguntar a ela.

    Cinco dias depois teve alta do hospital, adorava seriados, mas os seus preferidos não estavam na assinatura de televisão do hospital, tinha somente os canais mais populares, e passou praticamente todo o tempo assistindo séries de colegiais e vampiros, e na maioria ou eram estranhas ou sem sentido, estava contente de poder ir embora. O branco de todo o quarto já cansava sua vista e enjoava seu corpo. Enquanto arrumava suas coisas a enfermeira veio trazer a autorização de alta para ser assinada, e ao mesmo tempo que pegava a caneta o garoto perguntou:

    – Com licença senhora? – ela pareceu não gostar da palavra, a idade realmente alcançou seu físico a ponto de entrega-la. Não parecia ser casada, pelo menos não tinha aliança – Poderia me dizer, se viu quem deixou as flores uns dias atrás? Ou se alguém veio me visitar?

    – Desculpe – disse ela com cara de pena olhando para o prontuário – mas ninguém veio visitar o senhor, pelo menos não tem nenhum registro de visita. Quanto as flores, pode ter sido alguma outra atendente ou enfermeira do hospital.

    – Ah Ok! Obrigado – a expressão facial de Aaron era um vazio sem esperança. – Bom, já vou indo, tchau e obrigado por tudo.

    – Cuide-se Sr. Cooper – despediu-se a enfermeira do garoto.

    Saindo do hospital percebeu que mesmo que ninguém tenha vindo visita-lo, agora tinha uma nova chance de viver, de mudar sua vida medíocre para uma vida real.

    Teve uma segunda chance.

    Enquanto ia para casa, pediu para o táxi fazer uma parada, precisava de uma coisa, algo que estava consumindo seu interior, que estava criando uma abstinência em seu corpo com tantos dias sem o uso. Desceu do táxi e entrou na porta em baixo dos arcos dourados. Se dirigiu ao atendente que falou:

    – Boa tarde, posso anotar seu pedido?

    Está gostando da amostra?
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