Discurso Sobre A Dignidade Do Homem
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Discurso Sobre A Dignidade Do Homem - Pico Della Mirandola
Pre textos 12
Pico della Mirandola
Discurso sobre a dignidade do homem
Oratio de hominis dignitate
© Editora Âyiné, 2021
Tradução
Elaine Cristine Sartorelli
Preparação
Leandro Dorval Cardoso
Revisão
Valentina Cantori, Andrea Stahel
Projeto gráfico
Luísa Rabello
Conversão para ebook
Cumbuca Studio
Capa
Diambra Mariani
Kirkenes, Noruega, 2019
ISBN 978-85-92649-79-1
Editora Âyiné
Belo Horizonte, Veneza
Direção editorial
Pedro Fonseca
Assistência editorial
Luísa Rabello
Produção editorial
Ana Carolina Romero, Rita Davis
Conselho editorial
Simone Cristoforetti, Zuane Fabbris, Lucas Mendes
Praça Carlos Chagas, 49 – 2º andar
30170-140 Belo Horizonte – MG
+55 31 3291-4164
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Discurso sobre a dignidade do homemEsta tradução foi realizada a partir do texto em latim, estabelecido criticamente e traduzido por Eugenio Garin. Cf. Giovanni Pico della Mirandola, Opera. De hominis dignitate. Heptaplus. De ente et uno. Introdução de Eugenio Garin, Florença: Vallecchi ed., Edizione Nazionale dei Classici del Pensiero Italiano, 1942, pp. 102-165.
INTRODUÇÃO
Raphael Ebgi
Pico della Mirandola tinha apenas vinte e três anos quando, no final de 1486, escreveu um elogio breve e «elegantíssimo» ao homem e à filosofia.i A intenção era ser o discurso de abertura de um encontro muito particular, durante o qual o jovem gênio, soberbamente ambicioso, iria apresentar e discutir, diante de um grupo de eruditos, os fundamentos de uma nova filosofia universal.ii O encontro não aconteceu e o discurso nunca foi proferido. No entanto, singular foi o destino que teve a redação escrita deste discurso de abertura – ao qual Pico não parece ter dado qualquer título específico –,iii mas que, a partir da edição de Estrasburgo de 1504, terá o nome (fatal) de Oratio de hominis dignitate.iv Na verdade, após ter conhecido uma fortuna escassa por um longo período, tornou-se, entre os séculos XIX e XX, um dos documentos mais representativos da cultura humanística italiana; um texto em que numerosos intérpretes encontraram refletida uma imagem de seu próprio pensamento, um ícone das batalhas travadas por eles, um manifesto de seu próprio Renascimento.v Sinal de sua natureza elusiva. Apesar disso, ou talvez precisamente por causa disso, a Oratio não deixa de falar ao nosso tempo.
Quem é o homem? O texto nasce a partir desse questionamento. A resposta é famosa e muito antiga: o homem é o ser mais maravilhoso do mundo, um «grande milagre». Isso haviam dito Hermes e outros sábios enigmáticos do Oriente, e os gregos haviam repetido em seus mistérios,vi e muitos outros ainda. Houve amplo acordo sobre esse ponto. Mais difícil, porém, estabelecer por que essa criação tivesse se tornado uma fonte de tanto espanto. Para Pico trata-se de uma questão crucial, e nunca resolvida, pois as razões apresentadas ao longo da história – que fizeram a dignitas do homem depender de sua soberania sobre as criaturas inferiores, ou de ser o intérprete da natureza, ou da agudeza dos sentidos, da capacidade da razão, do esplendor angelical de seu intelecto – embora todas importantes, pareciam aos seus olhos insatisfatórias. Para conhecer a verdadeira face do homem foi necessário retomar a busca, aventurar-se em territórios que ninguém ainda havia explorado. O espírito da novitas, ou, caso prefiramos, da descoberta, uma marca da época, anima este texto, desde os primeiros compassos.
Como muitas vezes acontece, para entrar no desconhecido, Pico também se apoia em uma narrativa. No centro desse ‘mito’ está um Deus-arquiteto e sua obra maravilhosa e imensa: o mundo. A aparência desse artifício divino é a de um templo que se desenvolve em três pavimentos. A abóbada superior é decorada com perfis angelicais; a seção central, a das esferas celestes, é a morada dos espíritos beatos; a inferior, por outro lado, abriga uma «turba multiforme» de animais.vii O edifício está assim composto, todos os seus assentos ocupados, todas as suas partes entrelaçadas de acordo com as leis «de uma sabedoria arcana». No entanto, a obra ainda não estava perfeita. Faltava um elemento, um detalhe aparentemente marginal, mas que aos olhos do artesão revestia-se de enorme importância. O universo parecia sem vida, pois nenhum de seus habitantes era capaz de admirar sua beleza. Como se o próprio mundo precisasse (ou talvez pressupusesse), para completar sua forma, de um olhar livre para contemplá-lo e amá-lo; um olhar capaz de levá-lo à perfeição e que, portanto, coincidisse com essa perfeição. Uma «nova» estirpe era, portanto, necessária, uma linhagem de «contemplativos» e «amantes». Mas onde colocá-la? E com base em qual modelo forjá-la?
«O supremo artífice estabeleceu que seria comum, àquele a quem não pudera dar nada (nihil) de próprio, tudo aquilo que era particular a cada um dos outros seres». Assim começa o mito de Pico da criação do homem. Em torno de um nihil, um vazio, que é amplificado, nos compassos seguintes, por uma cadeia de negações: «não (nec) te demos um lugar determinado, nem (nec) um aspecto que te seja próprio, nem (nec) dom algum peculiar». Nada disso é dado ao homem, que se apresenta como uma verdadeira criatura do negativo. Todos os outros entes são definidos por seus próprios ofícios, que desempenham com sagrada obediência. Todos os outros entes têm um lugar, que habitam sem ‘imaginação’. Ao contrário, o homem é nullis angustiis coercitus («não constrangido por limites de nenhum tipo»). Não tem um destino que seja chamado a seguir. Ele não tem um lugar ao qual sabe que pertence. O homem é o único ser que se define não pelo que possui, mas pelo que não possui. Quando questionado sobre a essência do homem, a resposta deve, portanto, ser que o homem é uma natureza sem nome. E sem mundo.viii
Toda possibilidade permanece aberta no ‘vazio’ que o homem habita. Acima dele dançam destinos infinitos, desfilam infinitas máscaras. Algumas têm rosto de feras, outras de anjos, outras ainda se assemelham a formações vegetais. Todas as identidades que o homem pode assumir e abandonar. Nenhuma, entretanto, é capaz de compreendê-lo totalmente. Sua existência, para usar um termo próprio do «anti-humanista» Heidegger em Brief über den «Humanismus», é realmente extática,ix e isso é porque seu nulla não pode deixar de ultrapassar todas as faces que ele mesmo irá gradualmente decidir assumir. Em virtude dessa natureza excepcional, o homem escapa de todas as leis mundanas, ele é um estranho ao universo. Mas em seu abismo sempre se agita o desejo e como que uma nostalgia do mundo – não vimos que o homem nasceu justamente para contemplar e amar a beleza do universo? –, portanto, participar desse espetáculo, para tornar possível aí, onde a essência é a noite/nihil, a luz e a perfeição do mundo? Como poderia a criatura que foi criada de fato para desejar não aspirar a realizar aquela beleza que ele reconhece como alheia a si mesmo, e torná-la sua? Alguns anos antes, em um curioso jogo de espelhos, Marsilio Ficino, o outro grande filósofo da Florença Laurentina, havia escrito, parafraseando os oráculos da sabedoria antiga, que eros, ou seja, o anseio criativo à luz e à beleza, é um deus que se imiscui, em sua origem, com a «escuridão do caos».x Além disso, outras teogonias antigas lembravam que o amor era o filho da noite.
Sem fronteiras é o desejo do homem. O que ele quer, ele pode se tornar. Seu nada é um material neutro, que ele mesmo pode esculpir à vontade, dando-lhe a forma que preferir. É assim dado a ele formar-se e reformar-se. Como Massimo Cacciari escreve comentando a Oratio, «o homem, único ser criado com o propósito de recriar-se».xi Claro, nenhuma