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A Igreja em Angola: Um rio com várias correntes
A Igreja em Angola: Um rio com várias correntes
A Igreja em Angola: Um rio com várias correntes
E-book741 páginas10 horas

A Igreja em Angola: Um rio com várias correntes

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Sobre este e-book

The definitive history of all the Christian churches and denominations active in Angola from colonial times to 1989. Written in Portuguese, it is a basic text useful for scholars, seminarians, and the general public. It was written by Lawrence W. Henderson who spent 22 years as a United Church of Christ missionary in Angola from 1947 to 1969. This edition is available with authorization from the original publisher.

A Igreja em Angola, em português, é o livro básico que conta a história das todas as igrejas cristãs em Angola dos tempos coloniais até 1989. O autor é Lawrence W. Henderson, um missionário protestante em Angola de 1947 até 1969. O livro é extraordinário por o seu âmbito, incluir tanto todas as igrejas evangélicas como a igreja católica. Este edição é publicado com autorização da editora original.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento30 de ago. de 2013
ISBN9798215734681
A Igreja em Angola: Um rio com várias correntes
Autor

Lawrence W. Henderson

A Igreja em Angola, em português, é o livro básico que conta a história das todas as igrejas cristãs em Angola dos tempos coloniais até 1990. O autor é Lawrence W. Henderson, um missionário evangélico em Angola de 1947 até 1969. O livro é extraordinário por o seu âmbito. incluir tanto todas as igrejas evangélicas como a igreja católica. Lawrence W. Henderson nasceu no estado de Washington em 1921 e morreu em 2003. Frequentou a Universidade de Puget Sound, o seminario de Yale, e o seminario de Hartford. Casou com Muriel Woods en 1943 e tiveram quatro filhos, dois dos quais nasceram em Angola. Trabalharam em Angola como missionários de 1947 a 1969. Era autor de Angola: Cinco séculos de conflitos e A Igreja em Angola: Um Rio com Varias Correntes.A Igreja em Angola, written in Portuguese, is the basic text and history of the Christian churches in Angola, from early colonial times until 1990. It was written by Lawrence W. Henderson who spent 22 years as a UCC missionary in Angola from 1947 to 1969. It is remarkable for its broad inclusion of the Catholic church and the many Protestant denominations active in Angola. Lawrence W. Henderson was born in Tacoma, Washington, USA in 1921 and died in 2003. He graduated from the University of Puget Sound and Yale Divinity School. He married Muriel Woods in 1943 and they had 4 children, 2 of whom were born in Angola. They worked in Angola as missionaries for the United Church Board for World Ministries from 1947 until 1969. He was the author of Angola: Five Centuries of Conflict and A Igreja em Angola: Um Rio com Varias Correntes (also published in English as The Church in Angola: A River of Many Currents)

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    A Igreja em Angola - Lawrence W. Henderson

    APRESENTAÇÃO

    «Que as nossas ideias sejam nítidas; exponhamo-las com todo o rigor. É a condição da lealdade. Sirvamo-las com todas as nossas forças. É o emprego da nossa coragem. Mas, assim como se deixa uma margem em todo o papel que se escreve, para as chamadas, para as correcções, para tudo aquilo que não se encontrou, para a verdade que se espera ainda, deixemos à volta das nossas ideias a margem da fraternidade.»

    Conhecia a obra de Peter Falk sobre «O Crescimento da Igreja em África», de 1985.¹ Cobre todos os períodos da história, em suas principais vicissitudes, desde o Novo Testamento até à actualidade. Não é facciosa. Mas a parte protestante é muito privilegiada.

    O arcebispo resignatário de Luanda, D. Manuel Nunes Gabriel, é o «autor da primeira história sistemática da Igreja em Angola» no dizer de D. Eduardo André Muaca.² É fácil de reconhecer a importância de um trabalho tão cuidado e amplo e que, depois, já se desdobrou noutras monografias. É um livro de 639 páginas. O protestantismo ocupa, apenas, o primeiro apêndice de 12 páginas. Num segundo apêndice, de sete páginas, são apresentados os movimentos sincréticos político-religiosos. Entendamo-nos: esta diferença de tratamento não tem nada a ver com a mentalidade pré-conciliar e pró-portuguesa de Mons. Keiling em 1934: «Em Angola ou vencerá o catolicismo, que andou sempre em terras portuguesas abraçado com a bandeira das quinas, ou triunfará o protestantismo.»³ Essas palavras não são referidas em desprimor desse grande missionário. Reflectem, apenas, uma época e uma mentalidade em que a generosidade ecuménica como a do P. Joaquim Alves Correia da «Largueza do Reino de Deus» era, em Portugal, e não só, muito rara.

    Escrevia, em 1968, A. E Santos Neves: «A maioria dos leitores tem — ao menos em possibilidade de fácil actuação — um conhecimento razoável do que foram e são as missões católicas em Angola. Talvez o mesmo não se possa dizer relativamente às missões protestantes, pelo que não julguei impertinente delas oferecer alguns breves dados estatísticos e históricos. É uma primeira homenagem — embora apenas simbólica — aos trabalhos evangélicos destes nossos irmãos, que vão celebrar também, dentro de pouco, o centenário; é, sobretudo, a primeira condição para o diálogo ecuménico, indispensável, entre todos os cristãos que trabalham na Igreja e na Missão de Angola.»⁴ Em nota, acrescenta: «Servir-me-ei, mais imediatamente, de uma pequena brochura de L. W. Henderson, The Protestant Church in Angola. O autor, missionário protestante em Angola, é exemplo do cristão notavelmente culto e notavelmente ecuménico».

    É este missionário o autor de A Igreja em Angola. Segundo J.-M. R. Tillard, «a eclesiologia continua a ser, sem dúvida, a questão mais difícil do contencioso ecuménico.» Isto não impede de escrever uma eclesiologia de comunhão com o título Igreja de Igrejas.⁵ Para Christian Duquoc, as Igrejas em relação ao Reino são Igrejas provisórias e, nessa perspectiva, elabora o seu ensaio de eclesiologia ecuménica: «O ecumenismo criou uma corrente irreversível — um pensamento teológico que não se pode restringir aos limites de uma só confissão e de uma só Igreja.» Estes dois autores católicos procuram, cada um à sua maneira, pensar a unidade da Igreja na diversidade das suas manifestações cristãs. São esforços de um pensamento verdadeiramente ecuménico. Mas situa-se no campo dos conceitos.

    Qual é a originalidade e a importância de A Igreja em Angola? Não pertence a esta simples apresentação responder a esta questão a propósito de uma obra de tantas facetas. Direi apenas isto: o autor conseguiu realizar uma história verdadeiramente ecuménica da Igreja em Angola. Para a levar a cabo empreendeu uma viagem de reconhecimento com pressupostos claramente enunciados: a Igreja é apenas uma; a Igreja é humana e divina; a Igreja é o povo de Deus; a missão da Igreja é proclamar o reino de Deus. Com pressupostos tão claros corria o risco de ir encontrar apenas dados para os confirmar. Mas não. Esses pressupostos são a forma de ser honesto e permitem-lhe um olhar manso para todas as manifestações, mais ou menos organizadas, do testemunho de Jesus Cristo em Angola a favor do advento do reino de Deus.

    Na hora do balanço final, observa que muito embora todos confessem que a Igreja é uma só perante Deus, na prática, cada um pretende afirmar que «a verdadeira Igreja é a nossa Igreja, bem como todas as Igrejas que se quiserem associar a nós». A realidade profunda é outra. Aquilo que o historiador descobriu e apresenta ultrapassa as convicções dos agentes de cada Igreja e a longa lista de Igrejas reconhecidas ou não pelo Governa A imagem que melhor corresponde à Igreja em Angola é a de «um rio muito vasto atravessado por diversas correntes»: a corrente católica; as Igrejas missionárias protestantes; a corrente pentecostal; as Igrejas apostólicas; as Igrejas messiânicas.

    O autor fez a história de todas essas correntes. Cada uma terá oportunidade de reagir à proposta de leitura que lhe é feita. Desta vez, porém, vai poder estar atento ao rumor das outras correntes como fazendo parte do mesmo rio.

    Devo confessar que ao virar a última página deste livro estava profundamente emocionado: só um «cristão notavelmente culto e notavelmente ecuménico» poderia apresentar a Igreja de todas as Igrejas com tanto respeito e tanto conhecimento.

    «Enfim, meu bom amigo, fiquemos sempre unidos em Cristo e na Igreja essencial», como se exprimia em 1967 D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, exilado em França, numa carta ao angolano Dr. Joaquim Pinto de Andrade, exilado em Portugal. Que seja cada vez mais ecuménica, cada vez mais sinal e instrumento de reconciliação em Angola dilacerada.

    Fr. Bento Domingues O. P.

    NOTAS — APRESENTAÇÃO

    1. Peter Falk, La Croissance de 1’Église en Afrique (Kinshasa, 1985).

    2. Manuel Nunes Gabriel, Angola: Cinco Séculos de Cristianismo (Queluz: Literal, 1978), p. 9.

    3. Quarenta Anos de África (Braga, 1934), p. 189.

    4. «O movimento ecuménico do protestantismo e do catolicismo em Angola». Separata correspondente aos capítulos V e VI do livro Ecumenismo em Angola. Do Ecumenismo Cristão ao Ecumenismo Universal. (Nova Lisboa: Editorial Colóquios, Instituto Superior Católico, 1968).

    5. Églises d’Églises. UÉcclésiologie de Communion (Paris: Cerf, 1987), p. 10.

    6. Des Églises Provisoires. Essai d’Ecclésiologie Oecuménique (Paris: Cerf, 1985), p. 9.

    INTRODUÇÃO

    Angola era uma terra desconhecida tanto para mim como para minha mulher quando, em 1947, nos oferecemos para ir até lá como missionários da Junta Americana de Comissários para as Missões Estrangeiras.

    Durante os vinte e dois anos que passámos naquela colónia portuguesa, aprendemos a amar Angola e o seu povo. Quando em 1969 regressámos aos Estados Unidos e nos foi recusado o visto para regressarmos a Angola, não deixámos de dedicar grande parte da nossa atenção a Angola, tendo continuado a manter os laços com aquela terra e os Angolanos, através dos nossos empregos. Minha mulher orientava o programa de bolsas de estudo do African-American Institute para a África de expressão portuguesa e eu era secretário para os assuntos africanos da United Church Board for World Ministries (UCBWM).

    Em 1971 aceitei o convite que me foi dirigido pela Cornell University Press para escrever um livro intitulado Angola: Five Centuries of Conflict, incluído na série «Africa in the Modern World» e que foi publicado em 1979.

    Ao escrever a história de Angola, convenci-me de que deveria prosseguir as minhas pesquisas e escrever sobre a Igreja em Angola, o que me iria permitir expressar as minhas opiniões, as minhas impressões e convicções sobre a Igreja, colmatando, ao mesmo tempo, uma lacuna relativamente à literatura existente sobre Angola. A maioria das pessoas que se têm debruçado sobre as questões africanas e que têm escrito sobre Angola ignoram a Igreja. Os ex-missionários que publicaram livros sobre aquele país focaram apenas uma Igreja ou uma missão e ignoraram o contexto social em que a Igreja vive e se insere.

    O meu empenho pessoal em escrever sobre a Igreja em Angola foi encorajado por um comentário de W.C. Clarence-Smith, numa análise do livro acima mencionado, que terminava a sua crítica com a seguinte observação: «Há uma grande necessidade de uma boa monografia sobre as missões e as Igrejas em Angola, a partir dos anos setenta, e talvez possamos esperar que este trabalho venha a ser elaborado, muito em breve, por Lawrence Henderson.»¹

    Não vou seguir a sugestão de começar este estudo a partir dos anos setenta deste século. Nem vou principiá-lo em 1491, ano que a Conferência Episcopal de Angola marcou como chegada dos primeiros missionários. Pelo contrário, escolhi os fins do século passado, quando a Igreja Católica renovou a sua evangelização em Angola enviando novos missionários em 1866, e os protestantes chegaram pela primeira vez a Angola em 1878. Todavia, espero que esta obra contribua para as celebrações do Quinto Centenário da Evangelização de Angola em 1991 organizado pela CEAST.

    Não há ninguém que escreva numa perspectiva puramente objectiva. Cada autor defende determinados pontos de vista, quer os manifeste ou não. De seguida, irei enunciar quatro dos meus pressupostos sobre a Igreja em Angola, os quais estão subjacentes a este livro.

    1— A Igreja é só uma. O decreto sobre o ecumenismo (Unitates Reintegratio) do Concílio Vaticano II, da Igreja Católica, afirma a dado passo: «Cristo Senhor fundou uma só Igreja.»²

    O historiador tem de reconhecer que a Igreja, desde os seus primórdios, tem sido dividida em várias facções. A sua natureza ambivalente que, apesar de estar dividida é no entanto uma e apenas uma, foi descrita e condenada pelo apóstolo Paulo nas suas primeiras epístolas do Novo Testamento, em que apelava à Igreja em Corinto (ICor. 1, 10-13):

    «Que vivam sempre em harmonia. Não haja divisões entre vós, mas vivam unidos no mesmo ideal e no mesmo pensamento... Vocês andam por aí a dizer: «Eu sou de Paulo!» «Eu sou de Apolo!» «Eu sou de Pedro!» «Eu sou de Cristo!». Será que Cristo está dividido?»³

    O meu primeiro pressuposto é que Cristo, o Senhor, fundou uma só Igreja em Angola. As dissensões continuarão sempre a verificar- se enquanto houver membros de uma Igreja que persistam em afirmar: «Eu pertenço à Igreja Católica», ou «Eu pertenço à Igreja Metodista», ou «Eu pertenço à Igreja Kimbanguista».

    Para se registar com honestidade a história de Angola, estas divisões têm de ser admitidas, descritas e analisadas; no entanto, eu continuo a afirmar que a Igreja é uma só. Na realidade, e para minha grande surpresa, cheguei à conclusão de que, apesar das diferenças de âmbito organizativo e doutrinário e tendo em conta ainda o isolamento geográfico durante o período colonial, certos padrões de implantação e de expansão da Igreja eram comuns em todas as partes da Igreja. A convicção de que a Igreja é, de facto, uma e apenas uma, tornou-me mais desperto para reconhecer a evidência da sua unidade.

    Ao meditarmos sobre o futuro da Igreja em Angola, esta crença na sua unidade vem reforçar a minha visão de que a Igreja irá, cada vez mais, encontrar meios para a exprimir.

    2— A Igreja tem duas naturezas: a humana e a divina.

    Este pressuposto baseia-se na compreensão bíblica de que a Igreja é o Corpo de Cristo. A doutrina da encarnação encontra a sua melhor expressão na frase: «A Palavra fez-se homem e veio morar no meio de nós.» (João 1, 14)

    A «Palavra» ou «Verbo», que era a expressão bíblica para designar Deus, fez-se homem, em Jesus de Nazaré. A Constituição sobre a Liturgia do Vaticano II (N.0 2) fez eco das palavras de João ao afirmar: «A autêntica natureza da verdadeira Igreja é simultaneamente humana e divina.»

    Tendo a Igreja travado algumas das suas mais fervorosas batalhas pela correcta interpretação das duas naturezas de Cristo, não deve surpreender-nos o facto de os estudiosos terem dificuldade em abordar este tema. Os escritores seculares tendem a considerar apenas a dimensão humana da Igreja, chegando, inclusive, a menosprezar aquele outro aspecto. Por seu turno, os historiadores da Igreja e os teólogos enveredam frequentemente pela direcção oposta e focam, de um modo tão exclusivo, a Igreja como instituição divina, que não reconhecem a sua profunda interacção com as instituições económicas, políticas e sociais.

    Não é minha pretensão ter conseguido descrever as duas naturezas da Igreja em Angola, mas estou plenamente convicto de que a nossa compreensão, tanto da comunidade eclesiástica como da sociedade em geral, ficará sempre incompleta até ao dia em que reconhecermos que a Igreja encerra em si, de facto, estas duas dimensões.

    3— A Igreja é, essencialmente, um povo ou uma comunidade.

    O Povo de Deus requer estruturas organizativas, liderança, doutrinas e padrões de conduta para manter os indivíduos e as famílias unidas. Contudo, estes elementos — que são necessários — foram concebidos para servir o povo e não o contrário; quer dizer, não é o povo que tem de ser chamado para servir a estrutura, a hierarquia ou a doutrina.

    Grande parte deste livro descreve instituições eclesiásticas que, espero, não venham a toldar o pressuposto de que a Igreja é essencialmente uma comunidade — o Povo de Deus.

    4— A principal missão de Jesus não foi fundar a Igreja, mas sim anunciar a vinda do Reino de Deus.

    A Igreja, que constitui o Corpo de Cristo, prossegue esta missão. Este livro foca a implantação, o crescimento, a organização e a actividade social da Igreja em Angola, o que vem em segundo plano, se atentarmos no objectivo primordial que consiste em anunciar o Reino de Deus, convidando-nos a todos ao arrependimento e a crermos no Evangelho.

    Angola, tal como o resto do mundo, vive entre o anúncio da vinda do Reino de Deus e a sua realização final.

    Espero que esta descrição da Igreja em Angola, que decerto está incompleta, venha a ser julgada como uma descrição honesta. Tenho ainda fé que a Igreja em Angola, embora padecendo dos mesmos pecados que são comuns a toda a humanidade, continue, pela graça de Deus, a partir o pão e a beber do cálice, anunciando a morte do Senhor até que Ele venha. (I Coríntios 11, 26)

    Quer se concorde ou não com os meus pressupostos aqui enunciados, espero que os factos e as interpretações contidas neste estudo contribuam para uma compreensão mais correcta, mais ampla e mais humana do povo angolano.

    NOTAS — INTRODUÇÃO

    1. International Journal of African Historical Studies, Vol.15 N.° 2, 1982, p. 315.

    2. Concílio Ecuménico Vaticano II: Constituições — Decretos — Declarações e Documentos Pontifícios. 9.a edição melhorada (Braga: Secretariado Nacional do Apostolado da Oração, 1983), N.° 1 p. 131.

    3. Para as citações do Novo Testamento utilizamos O Novo Testamento: Tradução Interconfessional do Texto Grego para Português Moderno (Lisboa, Sociedade Bíblica, 1978) a não ser que citemos outras fontes.

    PRIMEIRA PARTE

    PERÍODO COLONIAL

    1866 a 1960

    CAPÍTULO I

    O SOLO EM QUE A IGREJA

    FOI IMPLANTADA

    O nome Angola teve origem na palavra jingola, em kimbundu, a qual significa uma pequena peça de metal que se tornou num símbolo de autoridade política entre as linhagens kimbundu.¹

    Ngola foi depois a palavra usada para significar um título real na região que se estendia entre Luanda e o planalto de Malanje e à qual os Portugueses chamavam Reino de Ngola. Este reino não constituía uma entidade política una e não dispunha de limites oficialmente estabelecidos.

    Os Portugueses referiam-se, vagamente, à zona costeira da África Ocidental, na qual eles tinham interesses, denominando-a reinos do Congo, de Angola e de Benguela.

    Quando os missionários católicos e protestantes chegaram à bacia do Congo, na década de 70 do século XIX, não existia qualquer fronteira oficial. O tratado que veio estabelecer os limites a norte de Angola foi assinado apenas a 25 de Maio de 1891 entre Portugal e o Estado Livre do Congo.

    O SOLO GEOGRÁFICO

    A geografia de Angola era favorável à implantação da Igreja. A topografia facilitava a penetração dos missionários no interior, uma vez que os rios Cuanza e Zaire davam acesso às zonas de Kimbundu e Congo, que eram relativamente populosas. Existiam quatro portos naturais — Luanda, Lobito, Moçâmedes/Namibe e Porto Alexandre/Tombwa —, que serviam de portos de entrada para as regiões de maior importância em Angola.

    O clima era favorável à habitação humana, apesar de se encontrar precisamente na zona dos trópicos. Tanto as elevações do planalto central como a corrente fria de Benguela serviam para moderar a temperatura, trazendo a esta última águas frias do Antárctico para arrefecer a planície costeira.

    Angola era uma terra bem irrigada, apesar de, tal como o resto dos países africanos, estar sujeita a secas periódicas. O planalto central registava um nível médio de pluviosidade entre os 100 e os 150 cm., e a planície costeira entre os 25 e os 50 cm. As chuvas no planalto alimentavam uma rede de rios que fornecia água para consumo e para a agricultura, tornando-se mais tarde numa das maiores fontes de energia.

    O clima moderado e um adequado fornecimento de água contribuíram para uma apreciável fertilidade do solo na maior parte do território angolano. Contudo, a agricultura não era fácil devido ao tipo de solo que era originado pelas formações geológicas subjacentes. As temperaturas elevadas e as chuvas abundantes favoreciam a decomposição das bactérias e, por conseguinte, nas áreas em que se fizessem sentir aquelas condições climatéricas, o solo era pobre em húmus.

    No entanto o solo de Angola podia produzir uma grande variedade de culturas, que iam desde as semitropicais como o café, o ananás e a banana, até às temperadas, como o trigo, o milho e os pêssegos.

    O solo geográfico em que a Igreja foi implantada era também rico em minerais. O ferro teve grande importância na mitologia e na economia de Angola. Os depósitos de diamantes encontram-se espalhados por toda a Angola e, hoje em dia, o petróleo constitui a sua exportação mais valiosa.

    O SOLO POLÍTICO

    A implantação da Igreja em Angola, no último quartel do século XIX, coincidiu com a «corrida à África». Depois do comércio de escravos deixar de ser rentável, as nações europeias entraram em conflito aquando da procura de matérias-primas, de mercados e de poder colonial em África. O capitalismo industrial tinha mais necessidade de mão-de-obra em África para trabalhar as matérias-primas destinadas às fábricas da Europa e da América, para construir estradas e caminhos de ferro e ainda para fornecer o mercado dos produtos europeus, do que precisava de escravos para cultivar a cana de açúcar, o algodão e o tabaco, nas Américas.

    Angola constituiu um dos vértices da «corrida à África», quando os interesses portugueses, franceses, belgas, alemães e ingleses colidiam na foz do rio Zaire. A Conferência de Berlim, convocada conjuntamente pela França e pela Alemanha, reuniu-se entre Novembro de 1884 e Fevereiro de 1885, conferindo dignidade internacional à contenda. Os objectivos da Conferência então divulgados consistiam cm primeiro lugar em clarificar o estatuto de comércio internacional no Congo e o da navegação no Níger, e em segundo lugar, definir as condições em que as futuras anexações de território em África poderiam vir a ser reconhecidas. A Igreja viu-se envolvida neste conflito internacional, porque as rivalidades nacionais entre os missionários franceses e portugueses constituíam um obstáculo ao trabalho das missões católicas. As tensões religiosas entre os missionários protestantes ingleses e os missionários católicos portugueses na capital do reino do Congo foram exacerbadas pelas rivalidades coloniais entre Portugal e a Grã-Bretanha. As missões luteranas na fronteira a sul de Angola foram abandonadas pelos alemães e ocupadas pela Igreja Católica quando Portugal saiu vencedor do seu conflito com a Alemanha.

    A publicidade internacional dada à «corrida à África», levou à errada conclusão de que a Igreja implantada em Angola o foi em solo português. Este pressuposto não corresponde à realidade porque, durante o último quartel do século dezanove, Portugal não tinha ainda ocupado efectivamente o território que hoje é conhecido por Angola. Mesmo na foz do Zaire, aonde os portugueses haviam chegado quatro séculos antes, eles não exerciam controlo em 1912, isto é, duas décadas após a assinatura do tratado sobre as fronteiras celebrado entre Portugal e o Estado Livre do Congo.

    O governador do distrito do Congo confessava, em 1912-13, que Portugal apenas controlava uma estreita faixa ao longo da costa e, por conseguinte, pode dizer-se que o solo político da Angola consistia numa parte portuguesa contra nove africanas. Os reis e dirigentes africanos não detinham a autoridade em territórios muito vastos, mas gozavam de poder suficiente a nível local para autorizarem ou recusarem a instalação de missões nas suas zonas. O rei do Congo exercia grande influência sobre as missões católicas e protestantes que se tinham instalado na sua capital, S. Salvador, e a confederação Umbundu no planalto de Benguela, embora fosse descentralizada, influenciou a Igreja através de reis tão poderosos como Ekwikwi II, do Bailundo, e Ndunduma, do Bié. Os reis Kwanyama, na zona mais meridional de Angola, conseguiram frustrar, durante várias décadas, os esforços dos missionários católicos para instalarem uma missão. O solo político, no virar do século, era, pode dizer-se, mais africano do que europeu.

    O SOLO ECONÓMICO

    Nos séculos XV e XVI, o comércio dos escravos tinha envenenado o solo africano em que a Igreja estava a ser implantada. Nos finais do século XIX, já tinha acabado, surgindo para o substituir o comércio do marfim, da cera e da borracha, os quais também não proporcionavam um terreno muito propício à implantação da Igreja. Este tipo de comércio exigia uma mobilidade constante, não permitindo, por conseguinte, que se criassem comunidades estáveis, que poderiam vir a ser como que

    Mapa de Angola com divisões administrativas

    «viveiros» da nova fé. O comércio da borracha deu origem a uma população que se tinha de deslocar frequentemente. Gladwyn Childs descreve as populares caravanas da borracha da forma seguinte:

    Quem fosse capaz de transportar uma carga, juntava-se à caravana. Tinha sido sempre costume levar rapazes nas expedições comerciais. Logo que tivessem idade para ir — por volta dos 10 anos — fazia parte da sua educação. Agora, também raparigas eram levadas e quase ninguém, a não ser as mulheres, ficava em casa, para cuidar das culturas e dar de comer às caravanas.²

    Na realidade, as mulheres desempenhavam o papel mais importante na economia de Angola, independentemente das exigências que as caravanas tinham para com as outras camadas da população. Na maioria das zonas, as mulheres saíam para os campos ao nascer do sol, carregando as enxadas e os cestos e, na cabeça, as cabaças. As costas, algumas carregavam os seus bebés; outras levavam pela mão os filhos que ainda mal andavam. Ao chegar aos campos, elas amanhavam a terra onde cultivavam o milho, o massango e a mandioca. Segundo as regiões, tinham ainda como tarefa partir as abóboras, pôr as sementes a secar ao sol ou desenterrar os amendoins, espalhando-os depois para secar. À tardinha regressavam a casa com os cestos carregados de comida, de molhos de lenha e com as cabaças cheias de água. Elas e as raparigas preparavam então a refeição mais importante para a família. Esta refeição consistia numa papa de farinha de mandioca no Norte, de milho no Centro, e de massango ou massambala no Sul.

    Aos homens cabiam determinadas responsabilidades económicas. Enquanto as mulheres se encarregavam de fornecer vegetais e cereais à família, os homens abasteciam-na de carne e peixe. Eram eles que construíam as suas casas e, nalgumas áreas, também eram artesãos, sendo o ferreiro o mais importante.

    Embora a caça fizesse parte da economia de todas as regiões de Angola, ela desempenhava um papel mais importante na vida económica dos Lunda-Chokwe, do que na de outros grupos. Entre eles todos tomavam parte na caçada, embora a de maior envergadura fosse da especial responsabilidade dos homens. O papel que era reservado às mulheres não era menos importante, visto a maior parte da carne que era consumida ser de caça miúda, como seja os coelhos e outros roedores.

    Entre alguns povos do grupo Ganguela, a pesca era também uma parte importante de sua economia. Os Luvale seguiam, em especial um ciclo anual, adaptando o seu tipo de pesca às correntes dos rios e das ribeiras.

    A criação de gado representava um sector importante na economia dos Ambo, Nhaneca-Humbe e dos Herero.

    O ESPAÇO SOCIAL

    A Igreja foi implantada num espaço social caracterizado por grupos etnolinguísticos. A palavra «tribo» não será utilizada para descrever os Angolanos, uma vez que, para a maioria dos europeus e dos americanos, tem um sentido pejorativo. Empregar-se-á a palavra povo para nos referirmos à unidade que, noutra publicação, possa chamar-se tribo. Um povo ocupava um território mais ou menos definido, em geral pela exclusão de outros devido ao facto de praticarem um determinado tipo de vida ou por a ele terem aderido, e ainda por estarem inseridos num sistema social coerente. Um povo falava um dialecto de uma língua que era mutuamente compreendida por outros povos, com os quais formava um grupo etnolinguístico.

    A Igreja foi implantada entre onze grupos etnolinguísticos — oito bantos e três não bantos. Wilhelm Bleek, um linguista alemão, na África do Sul propôs o termo banto em 1856 para se referir a uma «família» de línguas que usavam uma raiz ntu para «pessoa»: muntu, singular, e bantu, plural.

    O que segue não constitui uma descrição sistemática e exaustiva dos grupos etnolinguísticos, mas é antes um simples esquema com algumas das características salientes de cada grupo. Decidi seguir as normas das transliterações inglesas, ao eliminar os prefixos das palavras bantas, excepto nos casos dos dois grupos mais importantes que têm o mesmo nome de raiz, mbundu. Assim, o prefixo do adjectivo serve para distinguir os Kimbundu, que ocupavam os distritos de Luanda, Cuanza Norte, Cuanza Sul e Malanje, dos Umbundu, que se concentravam nos distritos de Benguela, Huambo, Huíla e Bié.

    O GRUPO CONGO — De reino a clâ

    O grupo etnolinguístico do Congo, com cerca de treze por cento da população, era o terceiro maior reino de Angola. Era composto por oito povos, relacionados entre si, os quais ocupavam Cabinda e os actuais distritos administrativos do Zaire e do Uíge.

    Embora dois terços dos congos vivessem fora de Angola, no Congo (Brazzaville) e no Zaire (Kinshasa), os congos de Angola sentiam-se privilegiados porque a antiga capital do reino era em Angola. O povo mais numeroso deste grupo, os Xikongo, ocupava a zona em redor da capital, Mbanza Kongo/São Salvador, situada a 128 quilómetros para sul do rio Congo. Os Xikongo, juntamente com mais sete povos — os Susso, os Zombo, os Sorongo, os laca, os Congos, os Pombo e os Sucus — formavam o grupo etnolinguístico congo.

    As pessoas desta zona identificavam-se, em regra, como membros de um dos oito povos já mencionados. A sua identidade com a totalidade do grupo etnolinguístico congo era reforçada pelo facto da região do Congo ter a única monarquia centralizada de Angola.

    Os Congos distinguiam-se também por uma herança católica que datava do tempo de um dos seus reis, Afonso, no início do século XVI. Embora esta herança não fosse suficientemente forte para manter a Igreja viva, ainda teve a sua influência quando, no século XIX, se procedeu novamente à implantação daquela instituição.

    Foi também importante em Angola a coesão social, a qual forneceu um terreno fértil para a germinação e crescimento da Igreja. O elemento mais importante de coesão social entre os congos residia no clã matrilinear, kanga. Um ditado congo dizia que quem deixava o seu clã era como «um gafanhoto que perdia as asas»; era alguém que ultrapassava os limites para além dos quais a segurança, a solidariedade e o afecto deixam de ser garantidos, sejam quais forem as circunstâncias.

    O clã era composto pelos descendentes de uma linha comum, «quer vivessem debaixo (os mortos) ou ao de cima da terra (os vivos), que estavam unidos por uma comunidade de sangue».³ Apenas as mulheres de estatuto livre tinham este sangue, o qual lhes conferia o direito de pertencer ao clã. A mãe e o filho eram do mesmo clã, mas o pai, no espírito do clã, permanecia sempre um estranho desse acesso a uma consanguinidade, ou kitata. O clã, que era representado e dirigido por um ancião, era a entidade que orientava a maior parte das relações sociais. Era ainda o clã que definia as relações sexuais incestuosas, visto a consanguinidade proibir as relações entre um homem e uma mulher que tivessem o mesmo nome de clã, e garantia o acesso ao seu território, que continuava a ser pertença dos antepassados, os quais tinham sido os fundadores das primeiras aldeias. O direito de transmissão da terra e a linha de descendência era de tio (da parte da mãe) para sobrinho. O clã criava as condições para que houvesse segurança e solidariedade.

    O GRUPO KIMBUNDU — O centro da assimilação

    Os vizinhos mais próximos do Congo, entre os rios Cuanza e Dande, pertenciam ao grupo etnolinguístico kimbundu, que tinha quase o dobro da população do Congo. Íamos encontrar esta etnia desde Luanda, na costa, até à bacia de Cassange, na parte oriental do distrito de Malanje. Faziam parte do grupo Kimbundu vinte povos: Ambundu, Luanda, Luango, Ntemo, Puna, Dembo, Bangala, Holo, Cari, Chinje, Minungo, Bambeiro, Quibala, Haco, Sende, Ngola ou Jinga, Bondo, Songo, Quissama e Libolo.

    Do ponto de vista linguístico, a etnia kimbundu não estava tão dividida como a longa lista de povos levaria a supor. Heli Chatelain, um missionário suíço-americano que era linguista, ao estudar a língua kimbundu, em finais do século dezanove, dividiu-a em dois dialectos principais: o luanda, usado na capital e na planície costeira, e o ambaca, que era usado no planalto. Esta divisão linguística coin-cidia com as rivalidades verificadas a nível político e a nível social, as quais influenciaram o grupo kimbundu e a história daquela zona de Angola até aos dias de hoje.

    Os Ambaquistas orgulhavam-se da sua associação com os Portugueses, que datava de há muito, e do papel desempenhado na subjugação da Angola ao poder colonial. Chatelain foi testemunha da importância do papel colonial desempenhado pelos Ambaquistas, ao afirmar: «Não foram os Portugueses, nem os Alemães, nem os Belgas, mas sim o povo negro Ambaca quem tornou acessíveis as bacias do Kwangui, do Kuilu e do Kasai.»⁴

    Uma outra prova da assimilação da cultura portuguesa pelo povo Ambaquista era o termo mundele, que, em geral, significava «homem branco» e que era usado pelos povos vizinhos para se referirem aos Ambaquistas. Nas zonas do interior, mundele podia significar não só um europeu, como também, «um preto de sapatos».⁵

    Os Kimbundu aprenderam não só o português ao serem assimilados, como foram eles quem produziu as primeiras obras da literatura escrita angolana. Todos os povos de Angola possuíam uma riquíssima literatura de transmissão oral — contos populares, provérbios, poesias e canções —, mas foi entre os africanos fixados, principalmente em Luanda, nos finais do século XIX, que surgiu a literatura escrita. A palavra «africanos» referia-se, naquele contexto, a um grupo cultural distinto, que era composto por negros e mestiços, os quais mantinham um estreito contacto com os europeus. Esta élite angolana que se dedicava principalmente ao comércio e ao funcionalismo público, na capital, encontrou na actividade jornalística um meio de divulgação e de expressão do seu talento literário. O Eco de Angola, surgido em 1881, foi o primeiro jornal periódico a ser editado pelos africanos, e durante os dez anos que se seguiram foram vários os jornais que em kimbundu e português circulavam na capital.

    O GRUPO UMBUNDU — Gregários e comerciantes

    Mais de um terço da população de Angola, no seio da qual a Igreja foi implantada, pertencia ao grupo etnolinguístico Umbundu. Apesar de ser o maior de todos, ele era o mais homogéneo de Angola; na verdade, era possível classificar os Umbundu mais como um povo do que como um grupo etnolinguístico.

    Os Umbundu estabeleceram-se a sul do rio Cuanza, no planalto central, dispersando-se pelos distritos mais populosos de Angola: Huambo, Benguela e Bié. A partir deste centro populacional, os Umbundu foram-se espalhando por todos os outros distritos; e, assim este grupo, que era o mais homogéneo de todos, era também, paradoxalmente, o mais abrangente de todos os grupos linguísticos.

    O grupo Umbundu constituiu terreno fértil para a implantação da Igreja, devido à sua homogeneidade e, ainda, ao facto de as pessoas viverem em aldeias relativamente grandes. A imbo (plural ovaimbo) era composta por dez a cinquenta fogos, com uma população que oscilava entre as 100 e as 1000 pessoas. Em geral, a aldeia recebia o nome do seu fundador, de quem o membro mais velho da aldeia muito provavelmente descenderia.

    Apenas o ancião da aldeia, o sekulu, podia falar da «minha aldeia» (imbo liange); para o resto das pessoas, ela era a «nossa aldeia» (imbo lietu). Em território umbundu, apenas pessoas ligadas pelos mesmos laços de sangue construíam as suas casas na mesma aldeia.

    Em finais do século XIX, os Umbundu estavam organizados politicamente em doze reinos, dos quais o do Bailundo, o do Huambo, Bié, Chiyaka, Galangue e Andulo eram os mais poderosos. As três funções mais importantes desempenhadas pelos reis consistiam em comunicar com o mundo espiritual, relacionar-se com os outros povos e administrar a justiça.

    O rei era o sacerdote supremo do seu povo, uma vez que os seus antepassados eram as principais divindades comunais. Ele e os seus curandeiros ofereciam sacrifícios no altar régio com o objectivo de controlar os elementos e assegurar a fertilidade e o sucesso nas caçadas. Intimamente ligada a estas funções religiosas do rei estava o uso da magia, da feitiçaria e da adivinhação, para se proteger a si próprio e ao seu povo. No cumprimento da sua função diplomática, o rei celebrava acordos com os outros reis para fomentar o comércio, ou para entrar em guerra com os povos vizinhos com a finalidade de conseguir honras para a sua corte e despojos para os seus guerreiros.

    Embora as funções diplomáticas e religiosas pudessem ser consideradas as suas responsabilidades mais importantes, o que é certo é que ele passava mais tempo a administrar a justiça do que noutra actividade. Os provérbios que existiam sobre os julgamentos, em tribunal, eram mais numerosos do que em relação a outro assunto, exceptuando os que se aplicavam à educação dos jovens. Os julgamentos eram, regra geral, muito morosos e só terminavam depois do rei dar a sua sentença. «O advogado fala; o rei tira as suas conclusões e decide»: o popia onganji, o malapo osoma. Ele, regra geral, não se mostrava arbitrário nas decisões que tomava, respeitando os costumes do seu povo e as opiniões dos seus conselheiros.

    Cada rei umbundu exercia a sua autoridade sobre uma série de subreinos, ou atumbu. O reino maior de todos, o Bailundo, era composto por cerca de 200 atumbu, governando cada atumbu, entre três a trezentas aldeias.

    Os Congos, os Kimbundu e os Umbundu representavam cerca de setenta por cento da população de Angola.

    O GRUPO AMBO — Criadores de gado e lavradores

    Os Ambo,* que representavam menos de três por cento da população, possuíam a maioria do gado de Angola, sendo os principais fornecedores do planalto central. A sua economia deveria classificar-se como agro-pastoril, uma vez que eles dependiam tanto da agricultura como da criação de gado, dando preferência ao desejo de possuir uma grande manada.

    Os Ambo ocupavam a fronteira entre Angola e a Namíbia. Em Angola aquela denominação aplicava-se ao grupo etnolinguístico que incluía os Cuanhama, Cuamati, Dombandola, Evale e Cafima, e que ocupava a zona situada entre o grau 16 de latitude até a fronteira com o sul.⁶

    Os Ambo não viviam em aldeias como os Umbundu. A população rural dividia-se em comunidades ou distritos, tendo cada comunidade um número que oscilava entre as cem e as trezentas famílias, que ocupavam uma área de limites mal definidos, chamada chilongo. A fazenda, omgubo, era ocupada por uma unidade familiar individual, e correspondia a uma vasta extensão de terreno cercado, com uma área aproximada de seis a vinte hectares, rodeado por ramos arrancados de arbustos e que se entrelaçavam para fazer as vedações.

    Os Ambo não só estavam unidos por famílias matrilineares, tal como a maioria dos angolanos, como ainda eram o único grupo com clãs totémicos bem estruturados. Estes clãs tinham um tótem, um animal ou uma planta, pelo qual se identificavam os seus membros e que era considerado como um antepassado comum. Foi criado um tabu contra a carne ou os frutos de tótem e impuseram-se leis exo- gâmicas entre os membros dos clãs. Entre os vinte e tal clãs que existiam, havia tótemes que eram bois, cães, leões, hienas e massango.

    Os Ambo não tinham um tipo centralizado de monarquia, mas todos os povos tinham o seu rei. Entre os Ambo de Angola, os reis dos Cuanhama desempenharam um papel preponderante.

    * O Instituto Nacional de Línguas de Angola classifica este grupo de Kwanyama que é, sem dúvida, a expressão linguística do grupo Ambo mais extensa em Angola.

    O GRUPO NHANEKA-HUMBE - Conservadores

    Os Nhaneca-Humbe, situando-se geográfica e culturalmente entre os Umbundu e os Ambo, representavam cerca de cinco por cento da população angolana. Dispersavam-se pelos distritos de Huíla e Cunene, desde as vilas de Chongoroi e Quilengues, a norte, até à fronteira da Namíbia, a sul. Este grupo é composto por dez povos: os Muílas, os Gambos, os Humbes, os Donguenas, os Hingas, Cuancuas, Handa de Quipungo, Quipungos, Quilengues-Humbes e Quilengues-Musos.

    O grupo Nhaneca-Humbe era o mais conservador de todos os povos em Angola. Eles tinham sido menos influenciados do que os outros pela cultura europeia, apesar de um número relativamente grande de colonos portugueses ter invadido o seu território em meados do século XIX. Este conservantismo que resistiu à urbanização fez com que Sá da Bandeira/Lubango, situada em pleno território Nhaneca-Humbe, fosse a única cidade em Angola a ter uma maioria branca.

    O GRUPO HERERO — Verdadeiros pastores

    O grupo Herero podia disputar com os Nhaneca-Humbe a classificação de «o mais conservador», mas como os povos Herero eram pouco numerosos, o seu lugar na cena angolana revestia-se de menor importância. Os poucos milhares de Dimbas, Chimbas, Chavicuas, Hacavonas, Cuvales, Dombes, Cuanhocas e Guendelengos ocupavam o território situado nos distritos de Benguela, Moçâmedes e Huíla, chegando ao interior a partir do deserto de Namibe.

    Do ponto de vista económico, os Herero eram, entre todos os angolanos, os que mais se dedicavam à criação de gado. Os grupos vizinhos, os Ambo e os Nhaneca-Humbe, davam mais importância à sua riqueza pastoril do que à agrícola, mas eles também tinham uma longa tradição agrícola. Em 1958, o membro mais velho herero lembrava-se ainda do tempo antes da agricultura ter entrado na economia do seu povo.

    OS LUNDA-CHOKWE — Caçadores por excelência

    Os povos do grupo Lunda-Chokwe incluíam os Lunda, Lunda-lua-Chindes, Lunda-Ndembo, Mataba, Cacongo, Mai e Chokwe. Na denominação composta deste grupo, «lunda» refere-se ao grande império da África Central, que no século XVII enviou chefes políticos de Katanga/Shaba, no Zaire, para as zonas mais populosas do Leste de Angola. Entre os povos que os chefes lunda foram encontrar, estavam os Chokwe, que viviam para lá da região banhada pelos rios Kasai, Cuango, Zambeze, e Cuanza, no Centro-Leste de Angola. A organização sociopolítica dos Chokwe assentava em doze clãs matrilineares, governados por chefes de linhagens menores. Os Lunda impuseram-se como dirigentes políticos aos governantes locais e fundaram reinos, segundo o modelo que vigorava no império lunda.

    Em finais do século XIX, os Chokwe eram o povo mais agressivo e mais independente em toda a Angola, mostrando sê-lo ao recusarem prestar homenagem ao imperador lunda e, em meados do século passado, no terem começado a expandir-se em direcção ao Centro de Angola. O poder económico reforçava ainda mais a sua não dependência, visto que o marfim, a cera e a borracha, que constituíam os produtos principais das trocas comerciais em finais do século XIX, se encontravam essencialmente na parte leste de Angola em áreas controlada pelos Chokwe. Eram também bons caçadores, tendo acumulado armas de fogo. Por trocas que efectuavam ou por ataques que perpetravam, adquiriam muitas mulheres escravas, que iam aumentar em grande número a população Chokwe, não só pelo facto de serem muitas, mas por estarem em idade de conceber.

    Durante este período de expansão, os Chokwe atraíram a atenção dos povos vizinhos e de observadores de fora, dando origem a epítetos, tais como «os ciganos de Angola» e «os boémios da Africa Central».⁷ David Livingstone, depois de ter atravessado a África desde o Cabo até Luanda, classificou os Chokwe como o povo mais selvagem e o menos hospitaleiro que jamais conhecera.⁸ Estas características reflectem a determinação dos Chokwe em manter as suas tradições, repelindo o domínio da cultura europeia.

    Os Chokwe, para além de serem conhecidos como caçadores- -guerreiros orgulhosos e independentes, eram ainda famosos como artistas. Os seus escultores executavam em madeira elegantes figuras humanas e máscaras para os rituais. Uma outra arte em que os Chokwe foram verdadeiros mestres era a pintura mural.

    O GRUPO GANGUELA - Pescadores

    O etnógrafo português José Redinha agrupou os vinte povos bantos que restavam ainda em Angola no grupo etnolinguístico Ganguela, que representava talvez cerca de sete por cento dos angolanos: os Luimbe, Luena, Lovale, Lutchazi, Bunda, Ganguela, Ambuela, Ambuíla-Mambumba, Econjeiro, Ngonielo, Mbande, Cangala, Iahuma, Gengista, Ncoia, Camachi, Ndungo, Nhemba e Avico⁹ O antropólogo americano, George Murdock, inclui a maioria destes povos num agrupamento Lunda, juntamente com os Chokwe.¹⁰

    O grupo Ganguela era o mais heterogéneo de Angola. Cada um dos vinte povos era tão pouco numeroso e vivia tão isolado que, nem os povos individualmente nem o grupo como um todo constituíam terreno fértil à implantação da Igreja.

    Os oito grupos etnolinguísticos descritos, que representavam mais de noventa e cinco por cento da população em finais do século XIX, eram todos bantos. Os três que restavam eram: os Khoisan, representantes dos povos que viviam em Angola antes da invasão dos Bantos, os Portugueses, que desempenharam um papel de grande relevância na implantação da Igreja em Angola, e os mestiços.

    OS KHOISAN — Os nativos de Angola

    Os Bosquímanos Kung, a sul de Angola, chamam-se a si próprios o «povo inofensivo», ou seja, zhu twa si.¹¹ Aos não bosquímanos, eles chamam zosi, o que quer dizer «animais sem casco». Segundo eles, os não bosquímanos eram maus e perigosos como as hienas e os leões. Quando os Bantos, ou os «animais sem casco», entraram em Angola, quatro a dez séculos atrás, foram encontrar populações que se dedicavam à caça e que eram de tal modo inofensivas que depressa se deixavam dominar.

    No início deste século, estas populações eram representadas apenas por alguns milhares de Khoisan e Vâtua. «Khoisan» é uma palavra composta a partir de khoikhoi, que era o nome hotentote que eles se davam a si próprios, e san, que era o nome que atribuíam aos Bosquímanos. Se alguma vez chegaram a existir hotentotes em Angola, eles foram de certo eliminados ou expulsos.

    Em finais do século XIX, alguns milhares de bosquímanos dispersaram-se pela parte Sul de Angola e pelo deserto da Calaári, em bandos constituídos por famílias pouco numerosas. Os Bosquímanos, de constituição frágil e de pele amarelada, viviam uma vida nómada sem se fixarem permanentemente.

    A organização social dos Bosquímanos assentava simplesmente na família nuclear, a qual, muito raramente, ia para além das vinte pessoas, podendo ser composta por um homem já velho, pela sua mulher, as suas filhas, genros e netos e talvez ainda por um ou dois filhos solteiros.

    OS PORTUGUESES — Colonizadores e colonos

    Em 1900 havia apenas 9198 brancos em Angola, ou seja 0,20 por cento da população, sendo a grande maioria portuguesa. No século XIX poucos portugueses foram voluntariamente para Angola: a maioria eram soldados ou criminosos exilados, os «degredados», que eram enviados para Angola para cumprir as suas penas, em vez de estarem encarcerados em Portugal. Em 1881, dos 1450 europeus que residiam em Luanda, metade (721) eram criminosos civis ou militares, e só 394 eram civis.¹²

    Uma população branca estável e a crescer deveria ser composta por um número igual de homens e de mulheres. No entanto, em 1902, só havia pouco mais de uma centena de mulheres europeias, das quais só oito ou nove não eram degredadas.

    Praticamente todos os portugueses eram católicos, de nome, de modo que a Igreja partiu do princípio que não havia necessidade de se implantar no seio da comunidade branca, precisando apenas de sacerdotes para que a Igreja funcionasse.

    MESTIÇOS

    O reduzido número de mulheres brancas em Angola, no século XIX, constituiu a causa principal do aparecimento de uma população mestiça ou mista, relativamente numerosa. Em 1845 havia 1832 brancos e 5770 mestiços, que desempenharam papéis de grande importância como intermediários no comércio de escravos e ocupavam postos-chave no comércio, na administração civil, no jornalismo, no exército e na Igreja.

    Em resumo, a população banta de Angola proporcionava um terreno geralmente fértil para a implantação da Igreja. Formando mais de noventa e cinco por cento dos angolanos, todos eles respeitavam os mesmos padrões de unidade social, baseados no parentesco. Apesar da importância das relações matrilineares e patrilineares diferirem de grupo para grupo, e mesmo de povo para povo, eram laços de parentesco decisivos quando se impunham padrões de casamento, se fixavam responsabilidades económicas, se definia o acesso à terra, ou se decidia a autoridade política a nível local, e ainda no que respeitava ao bem-estar espiritual.

    A Igreja, como Povo de Deus, encontrou um solo em que os Angolanos tinham já uma noção de povo muito arreigada em si.

    O SOLO RELIGIOSO

    Quando os missionários chegaram a Angola, por volta de 1870, não se aperceberam de que iriam implantar a Igreja num solo religiosamente muito rico. Eles classificaram a religião tradicional africana como uma superstição, visto não conter os princípios elementares da religião ocidental, ou seja, princípios doutrinários, uma estrutura eclesiástica e Escrituras. Contudo, à medida que os missionários iam aprendendo as línguas do povo no seio do qual trabalhavam, foram levados a contactar directamente com o «universo» da religião africana.

    Cedo se aperceberam que aqueles povos tinham uma palavra para designar Deus. Em kikongo, kimbundu e chokwe, era Nzambi. Os Umbundu chamavam Suku ao ser supremo e os Ambo referiam-se a Deus como Kalunga. Os Herero combinaram os nomes Nzambi- -Kalunga e os Nhaneca-Humbe partilhavam o nome Huku com os Umbundu e Kalunga com os Ambos. Os missionários, ao traduzirem as Escrituras para os vários idiomas africanos, empregaram sempre os nomes para Deus que eram de uso comum nas suas regiões.

    Nzambi, Suku e Kalunga eram não só muito conhecidos como ainda as características atribuídas à divindade não eram incompatíveis com a visão cristã de Deus. Na realidade, alguns missionários e antropólogos europeus descreveram a natureza do ser superior nas culturas africanas através de termos da teologia cristã, tais como omnipotente, omnisciente e omnipresente.¹³

    Estes atributos foram descobertos em provérbios e práticas rituais dos vários povos de Angola. Os Ambo, por exemplo, descreveram a omnisciência de Deus no seguinte provérbio: «Kalunga tem orelhas compridas e os seus olhos vêem no escuro.» ¹⁴ Os Nhaneca- -Humbe, na zona mais meridional do centro de Angola, falavam de um Deus justiceiro, em provérbios tais como: «Ukamenekelwa na Huku, Ukapahulva na Kalunga.» Tu serás saudado por Deus, tu serás visitado pelo Senhor. O que é interpretado para significar: (Mais tarde ou mais cedo Deus punirá as tuas faltas.) O mesmo povo diz também: «Wandinga tupu-tykale! Ekumbi limue olyo Huku ha munkh- wanya.» (Fizeste-me mal, deixa estar! Qualquer dia Deus há-de te pagar.)

    Segundo a religião tradicional angolana, Deus, para além de saber o que se passa no mundo, julga ainda as nossas más acções; a divindade também protege as suas criaturas, tal como afirma, de um modo retórico, um provérbio umbundu: «Suku ka lavi viosi evi a panga?» (Não olhará Deus por toda a sua criação?) Um provérbio herero manifesta a mesma confiança na protecção divina: «Hitu; mbi takamisiwa; Ndyambi-Karunga.» (Eu não morrerei porque Deus protege-me.) ¹⁵

    Os povos Ganguela, do Centro de Angola, usavam desenhos feitos na areia e provérbios orais, para descrever o universo em que viviam. Para executar aqueles desenhos, arranja-se um espaço com uma superfície lisa, na qual se traça uma forma geométrica feita de pontos e de linhas desenhadas com os dedos. Esta figura representa, por exemplo, Deus antes de «dar à luz a sua criação», prova de que existia antes de todas as coisas. As linhas curvas, no topo, que envolvem os pontos, representam os céus, ao passo que as linhas em baixo representam a terra. Os pontos que foram desenhados isoladamente representam os atributos de Deus:

    A hasi vuse | Ele pode tudo

    A tantekeya viosi | Ele sabe tudo

    A mona viosi | Ele vê tudo

    A li na ngozi | Ele é bom

    Emil Pearson, que registou os desenhos feitos na areia pelos povos Ganguela, interpretou os quatro atributos como sendo «omnipotência». «omnisciência», «omnipresença», e «amor».¹⁶

    Enquanto os provérbios e os gráficos na areia indicam que os Angolanos acreditam num Deus benevolente, as suas práticas religiosas demonstram que o ser supremo não era objecto de um culto habitual. As suas práticas de culto eram dirigidas a uma grande variedade de espíritos menores, que interferiam na vida diária do povo. Um angolano de nome Cilela fez uma descrição da religião mbundu em 1918 na qual, a dado passo, afirmava:

    «Todos sabem que existe um Deus, o criador de todas as coisas, só que eles não sabem como o devem adorar. Eles adoram apenas os olosande e dizem que os olosande nos protegem todos os dias.»¹⁷

    Os Umbundu reconheciam ainda vários outros espíritos para além dos olosande que interferiam nas suas vidas diárias, e que eram, muitos deles, espíritos dos mortos aos quais chamavam ovilulu. As práticas de rituais e de oração eram dirigidas frequentemente aos ovilulu, os quais podiam entrar no corpo dos vivos para ajudar ou para fazer mal. Os akisi eram os espíritos daqueles que já haviam morrido há muito, e que, depois de estarem completamente em paz, se tornavam em protectores daquela família, à qual haviam pertencido em vivos.

    Neste ponto do nosso estudo, já nos podemos aperceber de que a Igreja foi «plantada» no seio de uma cultura dominada por uma infinidade de espíritos que influenciavam todos os aspectos da vida das pessoas, desde que nasciam até ao dia em que morriam e ainda no além. Os Angolanos viviam num universo religioso, e cada ser humano comportava em si elementos, tanto materiais como espirituais. Os Kikongo identificavam quatro elementos em cada indivíduo: o corpo (nitu); duas almas, a alma espiritual (moyo) e a alma perceptível (mfumu kutu); e o nome (zina).

    Sendo em parte criaturas espirituais e vivendo num universo espiritual, os Angolanos criaram uma variedade de rituais como resposta à acção dos espíritos. Entre os Umbundu, havia certos rituais que eram executados na etambo, uma pequena casa erguida junto à residência do rei ou chefe. Esta casa, de pequenas dimensões, servia também, por vezes, de armazém para se guardarem produtos de valor, tais como os bens que eram utilizados nas trocas comerciais, como a borracha, os tecidos ou o marfim. Nas proximidades do etambo, havia um utala, o qual por vezes consistia apenas em dois paus bifurcados onde se pendurava a carne sacrificada em honra dos espíritos.

    A religião tradicional angolana também reconhecia certas funções especiais e poder a determinadas pessoas. O cimbanda, ou curandeiro, tinha grande experiência do uso de ervas e de raízes, conhecendo ainda determinados rituais secretos, que se destinavam a invocar a protecção de espíritos bons ou a exorcizar os espíritos do mal. Alguns adivinhos utilizavam um cesto onde colocavam uma série de objectos que eram usados para desvendar as causas da desgraça. A importância deste utensílio foi referida no testemunho prestado por um missionário a quem um nativo afirmara: «Ele (o cesto da adivinhação) é o nosso livro, não temos outro; o senhor lê o seu livro todos os dias porque acredita nele. Nós fazemos precisamente o mesmo.»¹⁸ As funções que eram atribuídas ao adivinho revelam muito do que é comum na religião tradicional angolana.

    A tarefa do adivinho Ndembu é a de desvendar as causas da desgraça e da morte. A sua função não é predizer o futuro, mas sim investigar o passado para identificar os agentes espirituais e humanos responsáveis pelos infortúnios pessoais. Uma vez que todos os problemas humanos, tais como a esterilidade, a doença e os problemas na caça, são atribuídos a conflitos morais no seio da comunidade humana, a tarefa do adivinho é descobrir os actos de imoralidade que provocaram a vingança dos antepassados e dar a conhecer o poder destruidor das bruxas e dos feiticeiros.¹⁹

    A religião tradicional africana, conhecida academicamente como animista, embora desprovida de princípios doutrinários, de estrutura eclesiástica e de escrituras, constituía no entanto um terreno fértil para a implantação da Igreja. Os Angolanos acreditavam num Deus supremo. Os seres espirituais de menor importância, muitos dos quais eram espíritos ancestrais, eram objecto de sacrifícios e de orações, executados com o objectivo de proteger os vivos dos perigos e da morte e buscar as boas graças e a felicidade. A sabedoria e o poder religioso competiam a pessoas, especiais, tais como os curandeiros, os adivinhos e os feiticeiros de certos locais e datas os quais eram reconhecidos como sendo especialmente sagrados.

    Os missionários que chegaram a Angola no virar do século XIX provinham de sociedades em que o alfabetismo, a ciência e a industrialização tinham criado o que se considerava as bênçãos da civilização cristã. Do ponto de vista dos Europeus e dos Norte-Americanos, os Angolanos não tinham saúde, educação, habitação condigna, roupas e uma alimentação adequada, devido ao facto de não terem sido evangelizados. O fosso entre a civilização europeia e a cultura africana era de tal maneira profundo que parecia terem poucos pontos de contacto. A maioria dos missionários não se apercebeu, durante algum tempo, que embora a vida na Europa e em África estivesse em profundo contraste, o facto é que a visão bíblica e a visão banta acerca deste mundo tinham muitos paralelos.

    A vida na Europa era cada vez mais individualista, ao passo que as culturas banta e bíblica se baseavam na comunidade. A sociedade africana unia as pessoas através de laços de parentesco muito fortes e incluía os antepassados como membros respeitados na comunidade. Os cristãos ocidentais pouco se interessavam das genealogias do Antigo Testamento em que se falava da descendência de Abraão e nos Evangelhos da ascendência de Jesus. Mas os Angolanos leram com muita atenção estas genealogias, pois sentiram a afinidade entre a cultura banta e a Bíblia, nas

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