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O Portal Da Anaya
O Portal Da Anaya
O Portal Da Anaya
E-book412 páginas6 horas

O Portal Da Anaya

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Sobre este e-book

Os ataques aos rebelados se intensificam. Aqueles que são capturados, sofrem na câmara de tortura do castelo do Rei Rufus, enquanto traições inesperadas alteram destinos e expectativas. É preciso proteger o salvador e encontrar um novo refúgio. A tolerância se torna a maior qualidade desses guerreiros de origens tão diferentes e a ajuda nem sempre vem de onde se imagina. Um fenômeno natural pode ser a chave para explicar o impossível. Toda magia não passa de conhecimento e energia. Todo fim é apenas um passo para um recomeço, assim são os ciclos, assim é a evolução.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de set. de 2023
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    O Portal Da Anaya - Cristiane Lira

    O Portal de Anaya

    Livro 3

    A Evolução

    Cristiane Lira

    O Portal de Anaya

    Livro 3

    A Evolução

    Rio de Janeiro

    2022

    Cristiane Lira, 2022

    Direitos desta edição reservados à autora

    https://pt-br.facebook.com/portaldeanaya

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Lira, Cristiane

    O portal de Anaya : a evolução / Cristiane Lira. -- 1. ed. -- Rio de Janeiro : Ed. da Autora, 2022. -- (O portal de Anaya ; 3)

    ISBN 978-65-00-57226-1

    1. Ficção de fantasia I. Título II. Série.

    22-136620                                          CDD-B869.93

    Índices para catálogo sistemático:

    1. Ficção de fantasia : Literatura brasileira B869.93

    Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

    Aos meus filhos Erik e Manuela por serem minha inspiração, sempre.

    Aos voluntários listados ao final desta obra.

    Amigos e apoiadores que contribuíram financeiramente para que o livro 1 fosse disponibilizado também em língua inglesa na plataforma Wattpad.

    Mas acontece que tudo tem começo e se começa um dia acaba…

    Fátima (Capital Inicial)

    Capítulo 1

    O primeiro ataque

    Depois dos longos dias avermelhados de Rugx, era bom ter a claridade de Flav a penetrar a vegetação e iluminar a aldeia, e qualquer desavisado que chegasse poderia crer que ali se vivia uma rotina harmoniosa, onde o cair da noite anunciava o término da labuta diária, e o retorno à tenda era recompensado pelo convívio com os entes queridos. Contudo, essa seria uma conclusão precipitada e superficial, induzida pelo silêncio imposto a todos os aldeões depois de saberem que o Salvador havia sido levado por seus líderes para algum lugar desconhecido.

    Todos tomaram conhecimento de que Eik e Barbarus haviam partido sorrateiramente com o menino Tedros, mas esse não era um assunto sobre o qual fosse permitido especular. Os pais de Abdias bem que tentaram obter alguma informação a mais quando receberam o recado da nora grávida, que lhes chegou à tenda com os olhos lacrimosos e o bilhete em mãos. Temerosos, como sempre, pelo destino do filho extremamente amado, o casal acolheu a jovem que logo depois deu à luz a um forte e saudável bebê e buscou junto ao Conselho uma resposta para a partida repentina do rapaz. Todavia, eles encontraram não apenas o silêncio, mas a expressa recomendação para não fazerem nenhum tipo de questionamento a esse respeito, pois Abdias estava a serviço dos interesses da aldeia e que tanto o destino quanto o motivo de sua ausência eram de conhecimento apenas de seus líderes e conselheiros.

    Essa partida abrupta também impactou profundamente Dathí Daoud. O rapaz passara toda sua vida sentindo-se medíocre, mas havia encontrado a alegria projetada na anomalia das irmãs misturadas Aura e Lokele. Quando soube da partida das meninas e que, além delas, seu irmão Ubax também se juntara ao reduzido grupo, afundou novamente em uma existência vazia e ainda mais amarga. Desde então, o veneno destilado por Dathí tornara-se tão letal quanto o de um escorfídio, e nem mesmo a mãe era capaz de se aproximar sem que fosse atingida por um comentário capaz de abrir feridas em seu coração, como o fato de ouvir do filho que o pai frequentava a Tenda Vermelha porque não se interessava mais por ela, que se transformara numa mulher gorda e sem atrativos. Depois disso, ela evitava qualquer conversa com o rapaz e, menos ainda, convencê-lo a ter paciência com os irmãos, o que se tornara desnecessário, uma vez que ele trocara o sofrimento das humilhações impostas por eles por agressões verbais que os colocavam devidamente em seus lugares pequenos, não por suas atividades, mas por suas mentalidades.

    Dathí só lamentava uma coisa, ter precisado chegar ao fim do abismo de sua dor para descobrir que os irmãos eram uns estúpidos, incapazes de revidar de forma inteligente uma ofensa. Na maioria das vezes, sequer conseguiam compreender que tinham sido insultados e quando acontecia dele ser bem explícito, sem dar margem à dúvida de que os tinha xingado ou ofendido, eles demoravam tanto para elaborar uma resposta à altura que quando estavam prontos a replicar, Dathí Daoud já havia se retirado, nunca sem deixar mais um pouco de veneno pelo caminho.

    - Se o que você tem entre as pernas for tão inútil quanto o que você tem na cabeça, eu me pergunto se aqueles filhos são realmente seus.

    Mas o auge de sua performance se deu quando reuniu todas as forças de seu espírito para enfrentar o pai. Acostumado à sua indiferença, Dathí evitava qualquer contato com seu progenitor, mantendo-se fora do caminho ao menor sinal de sua presença. No entanto, naquela noite ele não faria isso. Estava tomando seu caldo quente na entrada da tenda, aproveitando a brisa fresca e construindo mentalmente um arsenal de frases de impacto, afiando-as, polindo-as, como adagas a serem usadas em um campo de batalha, prontas para atingir o primeiro inimigo que cruzasse com ele.

    O pai se aproximou sem que Dathí o percebesse e se prostrou diante dele esperando que saísse da sua frente como sempre fazia, mas ele não o fez. Lentamente, Dathí ergueu os olhos para em seguida observar o espaço a sua volta. Então, voltou a tomar o seu caldo, caprichando na tragada e sorvendo o líquido ruidosamente.

    - O que significa isso? – Seu pai perguntou indignado. – Saia daí!

    - Não. – Dathí limitou-se a responder.

    - Ora, o que pensa que está fazendo? – A voz do pai havia se tornado um urro e ele teve certeza de que levaria um tapa capaz de arremessá-lo para longe dali, mas como nada aconteceu, Dathí prosseguiu.

    - Creio que haja espaço suficiente para você passar, a menos que sua barriga esteja tão enorme quanto sua arrogância. – Agora era certo que seu pai lhe bateria.

    Enquanto o silêncio se ocupava de preencher cada espaço, propagando-se pelo ar, tornando-o extremamente pesado e tenso, aconteceu de Dathí vivenciar o dia mais feliz de toda sua estranha e arrastada vida.

    - Finalmente, pela primeira vez desde que nasceu, eu não me arrependo de tê-lo deixado viver. – Seu pai disse com a voz firme. – Já era hora de você aprender a se defender de alguma forma e sair de debaixo das asas da sua mãe.

    Dathí havia deixado seu caldo de lado e olhava para o pai como nunca tinha feito antes, mas o melhor de tudo era que seu pai o olhava nos olhos, o encarava de verdade, direcionava-lhe um diálogo, conversava com ele como sempre fez com qualquer um de seus irmãos e irmãs.

    - Entenda uma coisa – seu pai prosseguiu –, se você está vivo até agora, apesar de ter nascido deformado desse jeito, é porque o deus Nicola assim o permitiu, então, deve haver algo para você realizar e não importa o que seja!

    O rapaz decorava cada palavra dita pelo pai, repetindo-as mentalmente para não as perder.

    - Ninguém realiza nada agarrado à mãe como uma ave implume! – O homem pensou um pouco antes de continuar. – Percebi que sua língua é uma arma ardilosa e pérfida, mas não a use contra aqueles que são bons para você, e me refiro à sua mãe neste momento, e nem a use aleatoriamente, ou perderá sua força.

    Dathí permanecia atento ao ensinamento do pai, o primeiro e talvez o último que receberia, por isso, nenhuma palavra poderia ser desconsiderada.

    - Haverá ocasiões certas para causar danos com a palavra. Encontre o direcionamento adequado e o tom apropriado. Não saia por aí atirando flechas envenenadas para matar uma formiga, pois pode precisar delas para abater uma fera e estará sem munição.

    Dizendo isso, o pai lhe deu um tapinha nas costas aleijadas e o contornou para adentrar a tenda, mas Dathí permaneceu onde estava, repetindo e repetindo a lição que seu pai acabara de compartilhar com ele, sentindo-se tão filho quanto qualquer um dos outros e portador de uma grande responsabilidade: a de aprimorar seu dom e saber quando e com quem usá-lo. – Sim, como um guerreiro, ele iria treinar incansavelmente!

    §

    - Você não está sendo sensata! – Vetus repetiu pela centésima vez. – Nós já conversamos sobre isso, foi uma decisão dos deuses!

    - Para Tartharius com os deuses! – Marianna praguejou. – É o meu filho! Ninguém tem o direito de tirá-lo de mim sem o meu consentimento!

    - Provavelmente, foi por isso que ordenaram que você ficasse! Sua teimosia é insuportável! – Vetus tentava manter a calma, mas Marianna vinha lhe testando a paciência, ele não via a hora de Eik retornar para que resolvesse essa situação.

    - Vocês roubam o meu filho, proíbem-me de falar sobre isso, e eu sou insuportável? – Marianna fechou os punhos e grunhiu tremendo o corpo inteiro. – Chega! Se é assim que vai ser, eu não tenho mais nada para fazer aqui, eu não posso viver entre traidores!

    - Como assim? – Vetus sacudiu a cabeça, estava zonzo de tantas brigas com Marianna desde a manhã na qual ela acordara e descobrira a tenda vazia, sem filho e sem marido. – Para onde você vai?

    - Eu vou me juntar às mulheres livres! – Ela falou já se dirigindo para a saída da tenda de Vetus. – Tiraram meu filho de mim e o levaram para ser criado sabe-se lá por quem, então, só posso crer que não sirvo para nada aqui! – Ela fez uma cara de deboche e alisou os seios. – No entanto... na Tenda Vermelha...

    - Marianna! – Vetus foi em sua direção, segurando-a pelo braço. – Você não vai fazer isso!

    - Quem vai me impedir? Você? – Ela o desafiou.

    Vetus suspirou, pensando em Novus e Eik, dois homens que brigaram por aquela mulher arisca. Naquele momento ele sentiu o quanto era feliz com suas meigas e obedientes esposas.

    - Não, eu não vou impedi-la, simplesmente, porque tenho algo mais importante para fazer. – Ele alterou ligeiramente a voz. – Eu tenho uma guerra para planejar, Marianna! Neste exato momento, Malah e todos os conselheiros estão reunidos na tenda do meu pai, elaborando um ataque surpresa ao castelo do Rei Rufus! Nossos guerreiros treinam exaustivamente todos os dias e nossos ferreiros não param de produzir armas e escudos, você compreende isso?

    - Sim. – Ela respondeu suave. – E, se nós vamos atacar – ela foi aumentando o tom de voz –, por que precisaram levar o meu filho? – Marianna concluiu já gritando e puxando o braço para se soltar de Vetus.

    - Eu desisto. – Ele disse recuando. – Só lhe afirmo uma coisa, se você levar essa loucura adiante, mudando-se para a Tenda Vermelha, Eik não a aceitará de volta.

    - Você ainda não entendeu? – Ela falou com desprezo. – Eu não o quero de volta, ele me traiu mais do que todos os outros!

    Marianna lhe deu as costas e saiu da tenda tão brava quanto um animal selvagem preso a uma armadilha. Tudo o que ela queria era vingança, e o faria entregando-se a todos aqueles que a desejassem possuir. Completamente cega de raiva, ela nem cogitou se despedir da mãe, pois sabia que Eda Gren jamais concordaria com essa atitude e era até capaz de amarrá-la para evitar que concretizasse sua intenção. Por isso, Marianna seguiu em direção ao rio onde se localizava a fronteira da aldeia que se contrapunha à Tenda Vermelha. Era uma grande distância, mas sua determinação era maior e antes de escurecer, chegara à margem do rio, deparando-se com a tenda de Riley. Ela sabia que o guerreiro não estava ali, pois o vira no centro da aldeia, treinando com os outros, mas àquela hora eles já teriam dado por encerradas as atividades do dia e Riley devia estar a caminho de casa. Precisava se apressar, não queria ser vista, não queria correr o risco de que alguém tentasse impedi-la ou convencê-la a desistir. Além disso, a esposa de Riley provavelmente estaria na tenda, junto com o filho que já nascera. Imediatamente, essa imagem fez os olhos de Marianna lacrimejarem ao se lembrar de Tedros e de todas as gracinhas que o menino aprendera a fazer. – É um absurdo colocarem sobre os ombros do meu filho esse peso! – Ela reclamou entre dentes, olhando para o alto, desejando que o deus Nicola a ouvisse e compreendesse, mas não houve resposta. Cansada, física e emocionalmente, Marianna encontrou três barcos atracados à margem do rio, atrás da tenda de Riley, e se embrenhou pelas árvores e arbustos, apropriando-se de uma pequena embarcação e se apressando para chegar do outro lado antes que Flav desaparecesse de vez.

    Quando atingiu seu objetivo, ela desceu do barco e o amarrou junto a outros dois que já estavam ali. Os tocheiros ainda não haviam sido acesos, mas não foi difícil encontrar o caminho que a conduziria à Tenda Vermelha, pois o vai-e-vem dos frequentadores criara uma trilha natural na vegetação rasteira. Foram apenas poucos passos até se deparar com o que procurava e teve que admitir que o local era bem mais imponente do que pensara. Sentiu-se enjoada e suas pernas bambearam, levando-a a recuar um pouco, mas bastou se lembrar da traição de Eik, permitindo e participando do sequestro de Tedros, que Marianna recuperou suas forças e entrou no recinto com o espírito decidido.

    O ambiente era bem colorido e alegre por dentro, cheirando a incenso e preenchido por uma música suave, de tons agudos, que parecia vir de algum outro cômodo. Havia algumas garotas limpando e arrumando o espaço e todas pararam para observá-la. Uma delas gritou alguma coisa que Marianna não entendeu bem o que era, pois estava totalmente absorta em seus pensamentos, inebriada pelo aroma e pelos sons. Uma mulher, bem mais velha do que ela poderia imaginar por ali, surgiu de detrás de uma cortina opaca brilhante, bordada com pedras. Os cabelos estavam presos em cachos e ela usava um roupão vermelho de tecido sedoso, diferente de qualquer outro que Marianna já tivesse visto. Seu rosto estava pintado e isso disfarçava bem os vincos que poderiam indicar sua idade. Ela ainda trazia acessórios pendurados no braço, pescoço e orelhas, mas o que chamava mais atenção, era o pingente que se destacava em sua testa, preso a uma corrente aramada com detalhes que lembravam pequeninas folhas de árvores e que iam se fixar ao prendedor que compunha seu penteado.

    - O que você faz aqui? – A mulher perguntou rispidamente.

    - E-eu vim me juntar às mulheres livres. – Marianna respondeu insegura, deixando para trás toda sua coragem.

    - Pois dê meia volta, eu não quero confusão na minha casa. – A mulher ordenou, dando as costas a Marianna.

    - Como assim? – Ela questionou. – Eu não vou arrumar confusão.

    - Você pode não arrumar, mas seu marido certamente irá. – A mulher replicou sem se virar e voltou a entrar no cômodo de onde saíra.

    Marianna respirou fundo e foi em direção à mulher, mas as garotas que estavam limpando o salão se colocaram no caminho, impedindo sua passagem.

    - Ela não pode me proibir de ficar aqui, pode? – Ela perguntou com a voz ligeiramente desesperada.

    - Sim, ela pode! – Uma das garotas disse de forma altiva.

    - Eu não posso voltar... estou cansada demais, por favor... – Marianna olhou para as garotas e começou a chorar.

    - Nós sentimos muito, mas a decisão de Madame Kyria é absoluta. – Outra garota respondeu solidária.

    - Deixem-me ao menos descansar um pouco... – Marianna pediu, pensando em ganhar tempo para reorganizar seus pensamentos.

    As garotas se entreolharam. A maioria concordou, uma delas reagiu, mas, por fim, levaram-na a um cômodo dos fundos da tenda para que descansasse um pouco. Ela deveria sair por ali e contornar por fora. Madame Kyria não poderia vê-la, muito menos, algum cliente e, logo, logo, eles começariam a chegar, transbordando de de depois de um longo dia de treinamento, que os deixavam extremamente excitados e, por vezes, um pouco violentos.

    Marianna agradeceu a gentileza das garotas e se acomodou entre almofadas macias e perfumadas.

    - Tome, isso aqui vai te relaxar.

    Ela observou a bebida que lhe estava sendo oferecida.

    - O que é isto? Algum tipo de poção? – Marianna perguntou examinando a espuma branca que cobria o líquido amarelo.

    As garotas riram.

    - Não, isto é ninda fermentada. Beba, vai te ajudar a descansar.

    Marianna preferiu não questionar. Estava exausta demais para pensar, então, bebeu todo o líquido de uma só vez, limpando a espuma em volta dos lábios com o braço e, sem que pudesse evitar, abriu a boca deixando escapar um ruidoso arroto.

    - Desculpem-me, eu não pude contê-lo. – Ela disse constrangida, mas as garotas não se importaram, e riram ainda mais, comparando-a a alguns clientes já conhecidos por seus arrotos extravagantes.

    - Bem, tente descansar, mais tarde retornaremos para lhe ajudar a atravessar o rio de volta. – A garota, inicialmente altiva, agora se mostrava compassiva. – Mas não saia daqui, ok? A menos que haja uma catástrofe!

    Com os olhos pesados e a cabeça girando, Marianna concordou. Instantes depois, ela estava entregue a um sono profundo e sem sonhos.

    §

    O mapa aberto estava marcado com todos os pontos de aproximação possíveis para que humanos e rebelados pudessem cercar o castelo do Rei Rufus sem serem vistos. A notícia de que a Rainha Zerda estava sendo mantida em cárcere privado dentro do próprio quarto já havia se espalhado e isso significava que seu castelo não era mais uma ameaça, pois todos os fenecos agora habitavam junto aos lobos.

    Vetus, Malah, os comandantes e os conselheiros revisavam mais uma vez o plano de ataque, eles haviam decidido não esperar mais pelo retorno de Eik e Barbarus. Caso não retornassem até a segunda noite de Blu, seguiriam em frente sem eles. O exército dos lobos os superava em número, numa proporção de oito para um, sem contar os fenecos, mas eles torciam para que os gwenos se juntassem a eles também. O Rei Rufus não descansaria até que todas as aldeias fossem dizimadas e os sobreviventes escravizados.

    Já era tarde e eles começaram a retornar às suas tendas. A aldeia repousava coberta pela negritude da noite que antecedia à aparição de Blu. Não havia nenhum tocheiro, lamparina ou fogo acesos, todos pareciam dormir, contudo, o vento quebrava a quietude, entoando uma variação de sons estranhos e ruidosos.

    A esposa de Riley dormia abraçada ao filho e ele teve o cuidado de envolvê-los numa manta bem quente. Beijou a testa da mulher e saiu da tenda o mais silenciosamente possível, contornando-a até a beira do rio. Perdido em um emaranhado de conflitos internos, ele não percebeu a ausência de um dos barcos e atravessou o rio carregando em seu coração e em sua lembrança o sorriso de Ubax. Sentia-se mal pela forma como o vinha tratando e, por mais que achasse repugnante a ideia de se relacionar com outro homem, ele não conseguia esquecer o beijo que haviam trocado. Em alguns momentos, entregava-se a essa lembrança de corpo e espírito, mas, logo em seguida, sacudia-se reativamente, desejando arrancar uma parte de sua cabeça para que nunca mais tornasse a ver essa imagem em sua mente, mas não conseguia.

    - O que você fez comigo, hein? – Riley gritou para a escuridão.

    Ao chegar na outra margem, seu único desejo era possuir todas as fêmeas que pudesse até desmaiar de cansaço. Rapidamente sua vontade se realizou. Riley era tido como um dos guerreiros mais valorosos da aldeia e muitas vieram atendê-lo. Sua frequência à Tenda Vermelha era tão alta e suas contribuições, tão generosas, que nenhuma delas se importou que ele tivesse chegado de mãos vazias. Quando Madame Kyria sinalizou com a cabeça que elas poderiam servi-lo mesmo assim, cinco delas o levaram para o maior cômodo da tenda.

    Entregue às carícias e sem esboçar qualquer reação, Riley fechou os olhos tentando não pensar em nada, mas não era possível, o rosto de Ubax havia invadido sua mente. Preferiu, então, manter os olhos abertos e percebeu que não queria estar ali. Decidiu ir embora, mas alguma coisa chamou sua atenção. De repente, a Tenda Vermelha havia sido tomada por gritos e choro de mulher, parecia uma briga ou discussão. Ele se levantou rapidamente enquanto as fêmeas se vestiam, exibindo olhares assustados, ninguém entendia o que estava acontecendo, mas o alvoroço parecia maior a cada instante.

    Quando Riley correu para o salão da tenda, viu duas garotas desesperadas falando de forma descompensada, enquanto as demais choravam e corriam de um lado para o outro. Ele olhou para trás e viu alguns clientes saindo dos cômodos privados, ainda despidos, mas tentando se vestir pelo caminho. Todavia, a figura de Marianna saindo do último cômodo, com um semblante sonolento e o andar cambaleante, deixou-o desconfortável. Ele disfarçou, fingindo não a ter visto, e mudou de lugar, garantindo que não cruzaria seu olhar com o dela. Ainda sem entender o motivo da gritaria, Riley viu Madame Kyria esbofetear uma das garotas, jogando-a ao chão. Todos se calaram, congelados em suas posições.

    - Basta! – Ela disse com firmeza. – O que está acontecendo?

    A outra garota causadora da confusão, tentou se controlar respirando profundamente e prendendo o choro.

    - Madame Kyria – ela disse com a voz trêmula –, nós estávamos do outro lado do rio, colhendo flores noturnas para essências de perfumes e incensos quando... – a garota não segurou as lágrimas.

    - Pare de chorar, agora! – Madame Kyria ordenou. – Se não nos disser o que viu, não poderemos fazer nada para ajudar.

    - Mas ninguém pode, madame – a garota falou entre soluços –, nós vimos o exército dos lobos matar os guardiões da fronteira e seguir em direção à aldeia.

    Imediatamente houve uma explosão de gritos e o caos tomou conta da Tenda Vermelha.

    - Calem-se e fiquem quietos! – Madame Kyria gritou de forma a que todos ouvissem. – De nada adiantará o nosso desespero! Guerreiros, vão agora! Uma batalha os espera! – E enchendo o peito de ar, ela olhou uma a uma de suas protegidas. – Garotas, vocês são treinadas para lutar, então, vistam-se e peguem suas armas, caso contrário, esperem para serem estupradas e devoradas por esses predadores, ou coisa pior!

    Todas as fêmeas da Tenda Vermelha correram aos seus cômodos, inclusive a que estava no chão, mas a garota que narrou a invasão foi detida por Riley.

    - O que você viu?

    Ela sabia o que estava nas entrelinhas da pergunta dele e baixou os olhos, enchendo-os d’água.

    - Não! – Ele a empurrou instintivamente.

    - E-eu sinto muito. – Ela balbuciou entre lágrimas. – Nós nos escondemos no rio, mas pudemos ver quando eles entraram na sua tenda.

    Enlouquecido, Riley saiu em disparada, a mente borbulhando de imagens, o coração pesado pelo remorso. Não tinha sido um bom amigo para Ubax e havia se tornado um péssimo marido e pai. Jogou-se no barco clamando ao deus Nicola para que não fosse tarde demais.

    - Por favor, castigue-me o quanto quiser, eu mereço! – As lágrimas se misturavam com os respingos da água do rio e o suor. – Mas eles são inocentes... meu filho é só um bebê... por favor... – sua cabeça parecia que ia explodir.

    Antes que o barco tocasse a margem, Riley desceu e caminhou desengonçadamente, lutando contra a pressão da água, até que pisou em terra firme. Aos tropeços, ele chegou à tenda e tentou se recompor. Tudo estava silencioso, somente ouvia seu coração bater aceleradamente, quase rasgando seu peito. De espada em punho, ele contornou a tenda até chegar à entrada. As lágrimas insistiram em voltar quando ele invadiu a própria moradia. Na escuridão e no silêncio, ele pensou na possibilidade da esposa ter tido tempo de fugir com o bebê e estar escondida em algum ponto da Floresta de Bordos. Saiu novamente da tenda e procurou o tocheiro externo, acendendo-o com dificuldade, tanto pelas mãos ainda molhadas, quanto pelo fato delas estarem tremendo.

    Riley respirou forte algumas vezes e entrou na tenda novamente, trocando, agora, a espada pelo tocheiro. Foi inevitável que seu olhar se dirigisse primeiramente para o local onde ele havia envolvido sua esposa e seu filho numa manta aquecida. Naquele momento, seu espírito foi partido por um raio violentamente. As pernas bambearam e ele caiu de joelhos, deixando o tocheiro rolar pelo chão. Os lobos não tiveram piedade e, provavelmente, a mulher e o bebê não chegaram nem mesmo a entender o que estava acontecendo. Seus gritos se tornaram uma mistura de dor e ódio. Seu corpo estava à beira de uma convulsão, não havia partes suficientes para recompor seus entes amados, os lobos os deixaram totalmente dilacerados.

    Com a tenda em chamas, Riley entregou-se ao fogo para que ele pudesse lhe causar a mesma dor sentida por aqueles a quem deveria ter protegido. Deitou-se no chão e observou as chamas crescerem. O calor aumentava, mas era como se estivesse sob efeito de alguma poção, pois nada sentia, além de um grande vazio. – Se alguém pudesse lhe dar um abraço...

    Repentinamente, ele foi tocado por um sentimento mais forte que a dor. Ainda havia pessoas a serem protegidas, pessoas que eram importantes para ele e para alguém que ele amava. Riley despertou daquele torpor e lutando contra o fogo a sua volta, arrastou-se para fora da tenda. Sua mãe e a família de Ubax estavam na aldeia, ele precisava ir para lá.

    §

    Os lobos não conseguiram chegar ao coração da aldeia sorrateiramente, como imaginaram. Helmuth fugiu habilidosamente sem ser visto e, utilizando as árvores para se movimentar, chegou rapidamente à tenda de Vetus. O alarme de invasão foi disparado e os guerreiros se apresentaram imediatamente, enquanto os velhos e os pequenos eram conduzidos para o caminho da floresta que os levaria às Cavernas Úmidas, onde poderiam se proteger.

    Tocheiros e lamparinas foram acesos, transformando a aldeia em um palco de sombras trêmulas, violentas, mutiladas e ensanguentadas. Em êxtase, o Chefe orientava os Coletores na captura dos espíritos dos mortos, que eram acorrentados e enjaulados para serem conduzidos a Tartharius. Os voluntários ajudavam o quanto podiam e tentavam amparar e proteger os espíritos de ambos os lados, mas sabiam que deveriam interferir o menos possível, auxiliando apenas aos que solicitassem ajuda. De qualquer forma, o ódio era um obstáculo para que se aproximassem e somente os que mantinham a fé vibravam na frequência que permitia o resgate.

    Liderados pelo General Signatus, os lobos direcionavam seus ataques às crianças humanas, especialmente aos meninos, mas nenhum pequeno estava a salvo. Acompanhando-os e induzindo-os, Salac também procurava pelo Salvador, mas a cada tenda sua frustração aumentava. Deparou-se com uma família que havia morrido abraçada: um casal adulto, uma jovem e um bebê recém-nascido. Por uns instantes, ele os observou, havia alguma coisa estranha ali. – O bebê! Ele ainda vive! – Salac se aproximou e viu que era um menino, forte e robusto. Estava coberto de sangue, sacudindo-se em busca de ar. De repente, um clarão surgiu e ele quase pôde ver uma forma. O bebê soltou seu último gemido de agonia e paralisou, estava morto. Salac viu uma pequena luminosidade sair do bebê e se juntar ao clarão. Foi então que ele percebeu que estava diante de espíritos de luz e que podia vê-los. – Mas como isso é possível? – Sentiu-se amedrontado e recuou.

    - Não tenha medo. Seu coração sentiu piedade, por isso sua vibração mudou e você pôde notar minha presença. – Ele ouviu uma voz amorosa falar em sua cabeça. – Quando estiver pronto, basta nos chamar. – Salac achou que fosse desfalecer com aquela voz inebriante, mas não durou muito, logo, foi tomado pelo medo e a luz desapareceu.

    - Onde está você, seu verme? – Os gritos do Chefe lhe sacudiram de volta, chamando-o ao trabalho de procurar o Salvador.

    As garotas da Tenda Vermelha e os guerreiros que estavam lá, já haviam chegado à aldeia e lutavam com os demais. Marianna colocava toda sua mágoa nos golpes de espada e nas flechas certeiras. Ela já não culpava Eik por ter levado Tedros da aldeia e, sim, os lobos, por isso, era neles que descarregava sua fúria, ainda mais quando encontrou a mãe lutando bravamente na tenda, mas Eda Gren teve o coração arrancado em um descuido, transformando Marianna em uma besta feroz.

    Riley correu para a tenda dos pais de Ubax, chegando a tempo de salvar Dathí, que estava sozinho. Deixou-o escondido e saiu em direção à tenda da mãe, sem saber que já era tarde demais. Malah apareceu, em seguida, buscando abrigo para seu filho, que mal abrira os olhos e cujas orelhas ainda não haviam se desenvolvido.

    Aconchegou o pequenino dentro de um saco de cereais e o colocou a um canto da tenda, cobrindo-o com folhas. Dathí a observava em silêncio, mas deixou escapar um grito quando percebeu que Malah seria atacada por trás.

    Na tenda de Vetus, o General Signatus tentava capturá-lo, pois a ordem era levar os líderes com vida. Ambos estavam exaustos e a espada já havia sido deixada de lado, enquanto usavam os próprios punhos para ataque e defesa e trocavam ofensas sobre suas espécies e o modo de viver de cada um.

    - Os lobos são o lixo de Wicnion. E você é o esgoto do castelo do Rei Rufus! – Vetus atacava verbalmente, tentando desestruturar o general.

    - Humanos! Fracos e decadentes! Dizimados pela própria arrogância! Sua mulher não aguentou o que eu tinha para ela! Mas morreu com um sorriso... – o general deu uma gargalhada debochada, apertando-se entre as pernas para provocar Vetus, que se jogou para o lado, recuperando sua espada.

    A lâmina da arma foi certeira na mão do General Signatus, decepando-a. Com o grito que soltou, os lobos invadiram a tenda, ao mesmo tempo que Salac e o Chefe os induziam a bater em retirada, pois o Salvador não estava ali e não compensava perder mais guerreiros em uma batalha infrutífera.

    Ferido, o general determinou que recuassem, então, o exército dos lobos partiu, deixando para trás uma aldeia dilacerada. Immutef, que havia levado o kuwi e Valente para as Cavernas Úmidas, retornava, agora, com a missão de cuidar dos sobreviventes. Alguns, tinham apenas ferimentos externos, outros, como Marianna, Vetus e Riley, tinham ferimentos profundos na alma, que tão cedo não iriam cicatrizar.

    E enquanto os aldeões buscavam por sinais de vida em meio às centenas de corpos ou fragmentos deles, Malah e Dathí pensavam sobre o que lhes reservava o futuro, amarrados e amordaçados em uma jaula que seguia rumo ao castelo do Rei Rufus.

    Capítulo 2

    Enterrando os mortos

    A chegada do pequeno grupo ao Pântano do Desespero (pois somente seus habitantes o chamavam de Pântano da Esperança) havia sido recebida com precaução pelos misturados, que ficaram um pouco mais à vontade quando se depararam com Aura e Lokele, contudo, convencê-los a abrigar o Salvador havia sido mais fácil do que tinham imaginado. Era a primeira vez na história de Wicnion que os misturados eram envolvidos em um evento pelas demais aldeias, e isso os deixava orgulhosos, fazendo com que se sentissem úteis e valorizados.

    Os misturados tinham a estima extremamente baixa e temiam todas as demais

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