A Boneca De Olivia
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A Boneca De Olivia - Antônio José Melo Marques
A boneca de Olivia Romance
Antônio José Melo Marques
[ 2 ]
Dedicatória ........................................................................... 5
Nota do autor ...................................................................... 8
Introdução .......................................................................... 11
[ 3 ]
A boneca de Olivia, por Antônio José Melo Marques Dedico esta obra a você que só agora nos vemos, mas sempre nos conhecemos…
A você que não me entende algumas vezes, por que não se entende outras tantas…
A você que me chama de louco, mas adora que minha loucura lhe lembre a lucidez…
A você por quem deixei de mentir, mesmo que a mentira deva ser extinta sem razão aparente…
A você que não quero escravizá-la para não escravizar-me, e por isso luto para acompanhar a mim mesmo nesta imensa solidão…
A você que em você conquisto o meu avesso, e assim o saber da escolha no caminho de portas entreabertas…
A você que me prefere a magia, por que sente que um dia toda a fantasia será verdade…
A você cujo não
de seus lábios me faria engolir-me vivo, embora saiba que engolir-se é o início do cosmo no homem…
A você que em seu corpo mergulho em mim, e sofrendo feliz sobrevoo estrelas que nem existem lá…
A você que há um milagre acontecendo entre nós, e vamos respeitá-lo por que somos dignos diante da vida…
[ 5 ]
A boneca de Olivia, por Antônio José Melo Marques A você que crê, apesar de toda você descrer em mim, eu fiz das incertezas a segurança, tal como os dias…
A você a quem AMO amando todos os jeitos de amar, e por isso temos força e direito de mudar os mais sólidos destinos…
Você e eu… Eu olho para mim e então, aqui está você!
[ 6 ]
A boneca de Olivia, por Antônio José Melo Marques
Entre o amor carnal e a consciência divina há sempre um caminho a ser percorrido, mesmo que divino seja também o estado inicial. Longo, estreito, obrigatório e difícil é o caminho, leis diversamente iguais para todos os caminhantes… Longo, pois o infinito e de finais relativos…
Estreito, pois na imensa largura do si mesmo
…
Obrigatório, pois parar também é decisivo e gera efeitos…
E difícil, pois já somos felizes, mas não conseguimos saber disso sem dor…
Mas, apesar de tudo, o homem haverá de ser o que ele verdadeiramente é!
Hoje, ele ainda caminha o contrário necessário…
[ 7 ]
A boneca de Olivia, por Antônio José Melo Marques Nota do autor
Sei que fiz uma estória doméstica. Não me afastei do almoço, do trabalho, do dinheiro, da preocupação do sobreviver como base primeira de viver. Não, eu não saí da nossa própria casa para fazer esta estória. Os personagens são pessoas simples como nós, com os mesmos problemas que nos afingem no cotidiano, com as mesmas reflexões sobre a vida e a morte, a espera e a esperança de um futuro melhor. A ambiência é também a nossa ambiência, com todos os tumultos da rua, as relações de vizinhança, o quintal de frutas podres no chão, e outras maduras nos galhos. Não, não me afastei de nós mesmos ao escrever está estória. No entanto, não querendo se afastar dos homens para não se afastar de Deus, eu busquei atingir o porquê da nossa existência, em meio aos tantos por quês que nos desviam da meta sem meta, ao nos abrir portas de entradas falsas, portas estas as quais temos de retornar ao nos deparar-nos com os vazios que elas enceram. O verdadeiro porquê de se estar vivo e se respirar, descortina-se ao homem após o processo de sofrimento, desencantos e incompreensões, sinais de afastamento do homem em relação a si mesmo, cuja força matriz, encontra-se na dinâmica constante dos acontecimentos diários. Os personagens centrais, poucos, mas significativos, definham a princípio e quase morrem nos estreitos corredores do desalento, fortalecem-se no processo da transmutação, e explodem enfim de êxtase quando encontram todas as respostas as suas mais
[ 8 ]
A boneca de Olivia, por Antônio José Melo Marques angustiantes indagações. O Amor pleno, sem menosprezo a qualquer outro tipo de amor, pois não resulta senão deles por gradação, a tudo rodeia e a tudo dá significado, desde a um pedaço de tecido jogado ao lixo, ao acorde mais sublime de um assovio. Caso amasse eu mais a vida, a vida me teria proporcionado uma qualidade melhor tanto de linguagem quanto de ideias expostas. De qualquer sorte, com o amor que sinto, busquei fazer uma estória bonita. Tirei-a então da minha honestidade e entrego-a ao mundo. No ato de entregar-se, corro o risco de entregar-me à críticas, ou não corro risco algum, pois afinal, o que sou eu senão toda a crítica humana e a humanidade crítica? De onde poderá vir um espinho a me ferir, se eu próprio já sou o espinho? Assumo todas as minhas boas e péssimas qualidades sem culpa de havê-las assumido. E então entrego ao mundo esta obra como a criança entrega-se a mãe, confiante de estar apenas retornando a fonte. Dar a si o que é de si, nada mais.
Nesta estória reina a contradição. As antíteses e teses coabitam na mesma casa de cômodos exíguos, sintetizando como minúsculo modelo toda plenitude que faz a macro verdade do universo. Sim, tudo o que vemos contém a verdade, mas para a percebermos, necessário será harmonizarmos em nós as antíteses e as teses. A verdade se revela ao homem chega a própria verdade com o seu contrário aceito. E os personagens dessa obra não tem outro objetivo senão o si mesmo, embora tudo importe na caminhada.
[ 9 ]
A boneca de Olivia, por Antônio José Melo Marques Não há um lugar para se ir,
embora se possa ir a muitos…
Só há um lugar para se fazer,
embora o lugar já esteja feito…
E quando estamos no lugar,
percebemos que o lugar sempre fora aqui…
Embora para sabermos,
necessário foi nos afastarmos dele….
[ 10 ]
A boneca de Olivia, por Antônio José Melo Marques Introdução
Antes, quero me apresentar. Eu poderia simplesmente dizer meu nome, como apresentações são feitas… Mas, o que é um nome diante de um significado? E seu mudasse de nome logo após dizê-lo a vocês, eu estaria mudando algo em mim? Tudo, se o nome fosse de todo importante, e nada, se não tem importância alguma. Depende então da importância que se dá a um nome. E eu posso muito bem passar sem um nome. Não tenho conta em banco nem vou candidatar-me por um partido. Bem, seria melhor então falar do que sou, a minha forma, o meu tamanho, mas se o dissesse também não estaria dizendo a verdade. Não que eu não seja o que aparento ser… Mas o que isto representa diante do que não mostro ser? E
mais ainda, o que representa o que não mostro ser diante do que ainda nem sei que sou? Caso vocês me vissem apenas com os olhos, diriam:
-Mas é apenas…
E é apenas
que me alucina, este termo reduz a total insignificância da minha real significância. E é em respeito a este apenas
tão degradante, que prefiro dizer quem sou e o que sou de outra forma, pelo conteúdo, pela essência… Acho que assim vão me respeitar como mereço, além dos limites dos sentidos comuns e do
[ 11 ]
A boneca de Olivia, por Antônio José Melo Marques convencional. Sou muito mais do que vocês imaginam…
As minhas ideias dirão! Não sei se sou excepcional, talvez sim, talvez não. Considero-me normal, alguém que pode aprender quando quer, e quando não quer simplesmente teimar em não aprender. Sou normal, só não sou comum porque não fujo do incomum para manter um comum tão cômodo… não quero pagar o preço pelo comodismo… um preço que pode valer a perda de uma vida de descobertas...
[ 12 ]
A boneca de Olivia, por Antônio José Melo Marques
-Quanto devo?
-Nada não… Foi um prazer!
-Nada não??? Um prazer??? Você é doida ou está querendo me gozar?
-Não faço por dinheiro!
-Não faz por dinheiro??? Que estória é essa? Eu lhe peguei lá na esquina…
-Mas não faço por dinheiro… Foi um prazer, verdade!
-Então é doida! Mas, doida ou não vou pagar, quero pagar… Quanto é?
-Não sei, não cobro nunca! Não vou aceitar!
O homem arranca os últimos fios de cabelo.
-Olha aqui… Tenho mulher, tenho filhos… E minha mulher sabe que de vez em quando dou minhas trepadas na rua com as putas, mas só com as putas, sabe? Quer que minha esposa pense que estou com amantes gostando de mim? Está querendo me tirar dela?
-Não é isso, não estou querendo tirar você de sua esposa…
-E nem pense nisso, ouviu? Nem pense! Amo minha mulher, tenho quinze anos de casado e me respeito muito. Dou minhas trepadas na rua e ela sabe, eu digo a ela e ela consente… Ela sabe que não troco ela por uma puta… E você é uma puta e bem puta, faz de tudo que um homem quer… Tem que receber dinheiro. Quanto é?
-Já disse que não sei, não cobro… O senhor vai me desculpar. Foi um prazer…
O homem perde o resto da pouca paciência e dá uma bofetada em Olívia. Foi pouco, uma Olívia que nem reage, cabeça baixa, os cabelos escondendo a face. O homem puxa a carteira do bolso, tira algum dinheiro, o que julga
[ 13 ]
A boneca de Olivia, por Antônio José Melo Marques suficiente para pagar a uma puta, o que pagou a outra, joga o dinheiro em cima de Olívia, no regaço pegajoso.
-E nunca mais dou as caras por aqui. Está pensando que sou o que, otário? Está se fazendo de boazinha só para me prender… Amo minha mulher e não é uma puta qualquer que vai acabar meu casamento… Não lhe dou uma surra, por que não quero me sujar…
Ajeita a roupa, nervoso, calça os sapatos sem amarrar os cadarços, e vai embora sem olhar para trás e ver que a mulher na qual despejou esperma e saliva, continuava sentada, a boca partida e escorrendo sangue num lado.
Apenas eu fico olhando Olívia, uma Olívia qualquer que nem puta sabe ser. Oh, Olívia, será que você com essa mania de não aceitar dinheiro, não está mesmo intimamente disposta a tomar homens do alheio? Não será essa a sua intenção, oculta debaixo dessa absurda mania de fazer por prazer
? Não posso responder a isto, não posso, só você pode, talvez nem você… Ah, Olívia, eu lhe vejo tão perdida, tão sem saber o que querer nessa vida de mil rumos! Na vida a gente tem que querer algo.
Olívia… Se a gente não quiser alguma coisa, a gente nem confia que está existindo…
A visão que tenho da vida? A minha visão! Relativa como tudo que existe. E por isso só posso falar da realidade que o relativo de minha visão é capaz de captar. Mas se a goiabeira do quintal só pode falar das coisas dela e eu não, então é por que a realidade é muito mais vasta do que posso ver. Não é só nossa casinha e o pouco que percebo além dela. Mas gosto de ousar e vivo tentando
[ 14 ]
A boneca de Olivia, por Antônio José Melo Marques adivinhar o que existe além dos meus limites. Não aquela adivinhação doida, baseada na sorte, no risco, mas partir de tudo que sinto ao meu redor. Não é bem adivinhação, mas dedução. E assim descubro muitos segredos além do que poderia. Um deles é muito interessante, muito importante… e se não verdadeiro, traz um grande alento: o infinito está em toda parte e por isso está em tudo aqui.
Como deduzi? A partir de uma reportagem na televisão: microscópios cada um mais potente que os outros iam observando partes cada vez menores de uma folha… e quando todos nós pensávamos que havia chegado a mínima parte, eis que aparecia outra menor que ampliada ficava maior. O vazio nunca aparecia. Lógico que o filme acabou, pois a potência dos microscópios também é relativa. Só quem não chegou ao finito foi ao infinito.
E por que tal descoberta me dá alento? Não é alento saber que pessoas tão limitadas quanto eu são infinitas em si mesmas?
Mas não é só pela televisão que descubro coisas além dos meus limites. O pouco de dentro da nossa casa me mostra o muito lá de fora. Os móveis me fazem conhecer as fábricas, as máquinas; o urso de pelúcia me mostra que as pessoas tem medo de ursos de verdade; as prateleiras me dizem o quanto mais se tem mais se guarda coisas que não prestam; as panelas me falam da chatice que é remover gorduras; os sapatos sugerem o quanto as ruas estão sujas e o quanto é perigoso andar descalço. E
certamente há coisas iguais a estas nas casas dos outros.
Isso me faz visitar as casas dos outros sem sair daqui.
E mais do que a televisão e as coisas da casa, Olívia me faz descobrir… Olívia, uma pessoa aparentemente uma,
[ 15 ]
A boneca de Olivia, por Antônio José Melo Marques mas com toda a humanidade dentro. A humanidade está em Olívia? Que ideia maluca é esta? Bom, se não está em cada pessoa, em Olívia está. Eu já descobri centenas de pessoas nela, e não descobri milhões porque ainda não pude. Sim, é Olívia quem mais me fala da humanidade e ninguém melhor do que ela para falar… Ela que não é de falar muito. A Olívia que as vezes me afaga como num adeus e as vezes me ignora como se eu fosse a última partícula que microscópio algum jamais observará.
Olívia me pega, me nina, me dá um beijo entre os olhos, e, como de costume, coloca-me na cadeira frente a ela…
Oh mas como a mesa é alta!
-Quem manda não crescer! -Diz Olívia, sorrir, empilha embaixo de meu bumbum três almofadas largas… e aí sim, posso ver a mesa: pão, queijo, cuscuz, manteiga, café e mel. Uma mesa de janta bem-posta, guardanapos e tudo.
Olívia vai até o fogão, volta com um prato fundo, cheião.
-Ah, sopinha de feijão com arroz… tempero do sertão!
Faz um movimento brusco e inesperado, a mesa balança em falso, a sopa derrama na toalha limpa e trocada na hora. Uma grande mancha marrom se espalha no branco impecável. É Olívia quem lava a toalha, quem tem o trabalho, mas nem por isso se contraria.
-Fico contrariada quando me contrário: - Costuma dizer.
Eu acho lindo ela dizer isto, ela pensar assim, embora eu ache impossível alguém conseguir não contrariar-se nunca na vida que por si é uma contrariedade. E fico observando ela tomar a sopa, diminuir a sopa do prato, secando o
[ 16 ]
A boneca de Olivia, por Antônio José Melo Marques prato a cada colherada paciente. Olívia até parece uma madame, gente da alta, gente que tem, gente de bem…
parece. E até que ainda há uma certa fineza no seu modo de comer, ainda não esqueceu as boas maneiras. Adoro observar Olívia, vivo observando Olívia, quase não vivo outra coisa senão observar Olívia.
Quando termina a sopa, vai lavar o prato na pia. Olívia é ordeira, zelosa. Nossa casinha vive um brinco, um brilho.
Olívia tem tempo para cuidar de tudo. Se não tem tempo, arranja, multiplica o tempo, brinca com o tempo como se este não existisse. Olívia tem tempo para tudo, tudo que se possa imaginar e o que não se possa…
Volta, senta-se novamente à mesa. Desemborca a xícara, põe leite muito, café apenas para morenar…
-Para que eu não continue tão branca! - Ela diz.
Açúcar, três colheres. É uma criança comendo açúcar, come torrões toda vez que passa diante do açucareiro.
Tira com a faca de serra um pedaço de pão, abre-o em duas bandas, passa manteiga nelas, bastante manteiga, come manteiga com pão, beberica uma colher de mel.
Prepara o cuscuz num prato, mais manteiga e mais açúcar. E uma vez por outra fixa nos meus olhos negros seus olhos azuis de céu. Estremeço cada olhar. Tenho uma paixão pelos olhos de Olívia. E pelo olhar, obsessão…
O olhar é a vida dos olhos! Pelo olhar de Olívia morro sem pedir socorro. Mas, como uma coisa tão preciosa pode não valer nada? Uma pérola nas mãos de um homem morrendo de fome num deserto. Sim, o olhar de Olívia, tão valioso, não vale nada… Mas está sempre me olhando com carinho, quando olha para mim. Isso não posso negar, nem me queixar. Não me lembro dela haver me
[ 17 ]
A boneca de Olivia, por Antônio José Melo Marques olhado de outra forma a não ser com carinho. E se houvesse me olhado de outra forma eu não estaria vivendo. E olha que faz anos que moramos sob um mesmo teto. Mas olhar com carinho não significa olhar toda hora. Quando tem alguém em casa ela nem me liga.
Quando me liga, porém, esquece as vezes que me despreza. E eu… olho muito para ela? Eu? Oh, pobre de mim. Acompanho cada movimento seu, cada gesto. Meu mundo é Olívia!
Olívia comeu o que tinha de comer e agora abandona a mesa, e fico eu e a mesa, uma mesa estéril pois Olívia saiu… e levou tudo para a pia. E Olívia começa a cantar.
Olívia canta a vida e me encara. E mal começa a lavar, já enxuga. E mal começa a enxugar, já guarda tudo no armário. E tudo está limpo e enxuto e guardado. Olívia é rápida, sabe multiplicar o tempo sem atropelar o que faz.
Depois leva-me para o quarto, senta-me na cama, e começa a trocar de roupa. Eu fico admirando seu corpo.
Ah, se eu tivesse um corpo assim! Um corpo que apesar dos pesares continua tudo no lugar. E dizer que ela tem cuidados especiais com o corpo, não tem. Bem verdade que faz muitos exercícios… exercícios, se é que pode dizer assim. Mas tudo em Olívia engano tempo, desafia o tempo.
Olívia veste um vestido colado, os diabos dos vestidos colados, o verde. Põe um cinto