O Dia Do Roubo
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Pré-visualização do livro
O Dia Do Roubo - Antônio José Melo Marques
O Dia do Roubo
Romance
Antônio José Melo Marques
[ 2 ]
Introdução ............................................................................ 6
Capítulo 1 – A cabra .......................................................... 7
Capítulo 2 – O óculos escuro ........................................ 10
Capítulo 3 – A bola de futebol ...................................... 13
Capítulo 4 – A anágua de rendas ................................. 19
Capítulo 5 – O perfume francês ................................... 23
Capítulo 6 – A delegacia ................................................. 26
Capítulo 7 – O batizado .................................................. 43
Capítulo 8 – A comilança ................................................ 49
Capítulo 9 – O fracasso ................................................... 52
Capítulo 10 – O ladrão .................................................... 55
Capítulo 11 – A pericia .................................................... 59
Capítulo 12 – A carta ....................................................... 65
Epílogo ............................................................................... 103
[ 3 ]
O Dia do Roubo, por Antônio José Melo Marques Aos que conseguem o milagre de tornar a tragédia humana engraçada, mesmo sem o desejo de fazer os outros rirem.
Há uma graça natural nos homens que são naturais!
[ 5 ]
O Dia do Roubo, por Antônio José Melo Marques Introdução
O claro do sol surgia numa banda do céu enquanto as brumas se afastavam do lado oposto. A friagem se estranhava nas cascas dos arbustos, caia sobre o capim seco. Mais um dia nascia naquele povoado de ruas tortuosas e poeirentas. Era verão: Jasmins e flores-de-maracujá faziam ramas e sorriam entre as cercas escuras, podres e irregulares que separavam pequenos quintais de outros menores ainda. A luz difusa já deixava distinguir-se entre um verde esmaecido e um branco-amarelado, limites entre minúsculas casas conjugadas. Dez ou dúzia de telhados mais vastos se aglomeravam em sítio mais elevado como a reclamarem aristocracia em meio a tanta pobreza. Gatos passeavam sobre muros enegrecidos e caídos em trechos e cachorros latiam aos bandos atrás de cadelas assustadas e em cio. Valas servindo de esgotos exalavam cheiro fétido e os mosquitos proliferavam nas poças maiores; assim que o sol esquentasse a terra, sairiam em redemoinhos atacando crianças de bucho grande, recém nascidos, velhos descansando e cavalos...
Uma manhãzinha igual a todas as outras... Assim aconteceu a manhã passada, a manhã de dez anos antes.
Mas, os homens estavam acordando... E os homens têm a mania de tornarem as coisas diferentes do que são...
[ 6 ]
O Dia do Roubo, por Antônio José Melo Marques Capítulo 1 – A cabra
Tiago pulou como se espicaçado por uma vara fina de aboiar. A cama estalou com o movimento brusco. Tiago sentia pressentimento ruim. Ia correndo para o quintal quando lembrou que estava de cueca. Procurou a calça num progo da porta tateando na penumbra do quarto.
Pegou a calça, tentou vesti-la apressadamente.
Enganchou uma das pernas, perdeu o equilíbrio e desabou sobre a cama que quebrou com estardalhaço.
–... Misera! Cando a gente ta cum preça tudo atrapáia! –
Exclamou impaciente. Levantou-se, correu, e ainda ajustando a corda servindo de cinto chegou à porta da cozinha que dava para o quintal. Seu pressentimento estava certo: Firmina havia desaparecido! Por isso não berrou naquela manhã. O lugar estava vazio, não considerando um monte de excrementos. Os olhos remelados de Tiago se embaçaram. Ele não podia crer: Firmina, anos com ele! Fugir? Não, não havia fugido... Só podia ter sido roubada!
– E ôje é o Dia do Rôbo
... Meu Deus! – Desesperou-se.
Fariam mal a Firmina? Coitadinha! Envelheceu o rosto em questão de segundos; os cabelos revoltos caíram pela testa. Escorregou molemente parede abaixo até sentar-se no tijolo gordurento da cozinha. Soluçou. Quem roubou a cabra... Quem? Não tinha inimigo declarado... Gente, que se lembrasse ninguém... Apenas o trabalho! Mas, trabalho não rouba cabra! E, aliás, pouco conversava com o pessoal do povoado... Pessoal besta e metido a
[ 7 ]
O Dia do Roubo, por Antônio José Melo Marques importante... Falador da vida alheia! Então, quem roubou a cabra? Algum inimigo do seu finado pai... Que Deus o tenha! Mas o pai também não havia deixado inimigo...
Vivo! Quando menino vira o pai engalfinhar-se com um companheiro de cachaça. A briga foi feia: O pai saiu com um corte fundo no braço, uma facãozada, mas deixou o outro estatalado no pó da rua, morto. O pai morreu anos depois vitimado por mordida de cobra sem fazer mais inimigos.
Levantou a cabeça; tinha o olhar de alma penada. Duas lágrimas escorreram pela face. Tiago parecia ver Firmina ali no cantinho a berrar por ele toda de manhãzinha... E lá ia ele com um caldeirãozinho, colocava-o debaixo dela, massageava as tetas da bichinha e punha-se a retirar o leite. Quando doía, ela gemia; ele compreendia sua linguagem e tratava de ser mais cuidadoso, carinhoso.
Aquilo toda manhã. O cadeirãozinho saía quase cheio: Parte ele bebia... A outra, ou fazia queijo ou a vendia nas casas misturada com água...
– Prá num dá dô di barriga nus minino... Leite di cabra é muito forte!
Agora Firmina havia sumido. Desesperava-lhe a ideia de não mais ver sua carinha tristonha quando ele raramente ia vender nas portas as frutas maduras que catava nos matos, nem sua carinha alegre quando ele voltava com os bolsos contendo o sustento para a semana. Não, Firmina já não estava ali: Ela sua confidente, sua companheira, sua... Ora, isso era m as más línguas do povoado... Se ele não havia casado foi porque não encontrou moça que fosse moça naquele fim de mundo! Imaginem... Falarem que ele e a Firmina... Coitada! Bufou de raiva. Se pudesse
[ 8 ]
O Dia do Roubo, por Antônio José Melo Marques esganava todo mundo do povoado, um por um! E com a raiva que estava então... Depois comia suas carnes, cruas mesmo!
Passados os momentos de desespero, Tiago pôs-se a pensar no que faria. O que não podia era ficar chorando e de braços cruzados enquanto a pobre da Firmina certamente passava de mão em mão. Tomou uma decisão: Iria falar como Delegado...
– Aquele porco... Iguazinho ao zôto! – Exclamou com raiva. Na certa o povoado inteiro haviam feito um trato para roubarem a cabra, a coitadinha da Firmina. Se assim fosse, estava perdido... Nem adiantava dar parte. Mas, afinal, tinha de fazer algo!
Os primeiros raios de sol caíam sobre as ruas de piçarra.
Tiago corria para a delegacia: corpo esguio, jocoso, passadas desritmadas como se estivessem pulando rêgos inexistentes ali.
[ 9 ]
O Dia do Roubo, por Antônio José Melo Marques Capítulo 2 – O óculos escuro
O cego Abilho sempre madrugava, desde pequeno ainda com os pais na capital. Dia após dia, desse o que desse, já estava de pé antes das seis. E assim foi toda a vida, menos nas semanas em que estava na cama de um hospital tratando de uma catarata violenta que lhe tirou completamente a visão. A doença se alastrou rápido e ele, funcionário público, não teve condições de pagar uma operação urgente e sofisticada. Lá se foram os preciosos olhos. O mundo para ele a partir de então não passava de um túnel escuro, um túmulo de solidão e tristeza. Depois que o pai morreu e também a mãe, ele conseguiu uma aposentadoria por invalidez e passou a receber uma pensão irrisória para uma vida na capital. Por isso vendeu as coisinhas da família e foi morar no interior onde o ritmo de vida era bem mais afeito a um inútil cego. Uma vez pretende casar-se e preparou tudo, mas a eleita fugiu com um sanfoneiro surgido no povoado antes da data marcada para o casório. Desiludiu-se por completo; no fundo deu razão à noiva:
– Quem qué labutá com cego?
Só não compreendia porque ela havia fugido. Deveria ter sido franca com ele. Bem, passa dia, passa ano, acostumou-se a morar sozinho. E como nada tinha para fazer na vida, procurava preencher a existência monótona andando à toa pelas poucas e tranqüilas ruas do povoado a falar dos erros e vícios dos outros e a inventar bravuras do tempo em