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Crucificação: um ponto de distinção entre os dois cristos da Bíblia
Crucificação: um ponto de distinção entre os dois cristos da Bíblia
Crucificação: um ponto de distinção entre os dois cristos da Bíblia
E-book501 páginas5 horas

Crucificação: um ponto de distinção entre os dois cristos da Bíblia

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Sobre este e-book


Quanto debate há sobre a crucificação de Cristo! Ele foi fixado numa cruz ou numa estaca de tortura? Ele morreu porque decidiu abandonar seu corpo ou em razão de um golpe de misericórdia? E o que dizer a respeito da própria cruz? Ela é um símbolo cristão ou uma imagem pagã? O presente trabalho tem o propósito de contribuir para a elucidação dessas questões.

Com o auxílio de dicionários e livros de antigos escritores gregos e latinos, da arqueologia, bem como de várias Bíblias dos primeiros cristãos, será demonstrada a impossibilidade de se afirmar categoricamente em que tipo de instrumento Cristo foi executado. O próprio texto bíblico é contraditório uma vez que Cristo pode ter sido estaqueado ou empalado.

De outro lado, com o apoio da arqueologia e das teologias egípcia, grega e babilônica, será revelado que aquilo que hoje chamamos de 'cruz' não é senão o mais antigo objeto de feitiçaria, a figura representativa do Deus pagão, e a imagem que traduz a dominação de um homem sobre outro homem. Aliás, a cruz do Cristo da Igreja é mais um dentre os vários elementos que comprovam o fato de que a Religião Antiga foi absorvida pelo Cristianismo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento23 de out. de 2023
ISBN9786525294124
Crucificação: um ponto de distinção entre os dois cristos da Bíblia

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    Crucificação - Ediek Pereira Nunes Jr.

    OS ANTIGOS LÉXICOS E OS TERMOS DA CRUCIFICAÇÃO

    Há alguns vocábulos com os quais o leitor deve estar familiarizado quando se pretende estudar o tema ‘crucificação’. Se observarmos o idioma grego, são de suma importância as palavras σταυρός (transliterada, stayrós , que se pronuncia staurós ) e σκόλοψ (transliterada, skólops ), bem como seus verbos derivados: σταυροῦν (translit. , stayroyn ), ἀνασταυροῦν (translit. , anastayroyn ) e ἀνασκολοπίσει (translit. , anaskolopísei ). A língua latina, de sua parte, oferece-nos o termo crux ou crucis , a origem de nossa palavra ‘cruz’.

    Olhemos, portanto, para os antigos dicionaristas da língua grega. É muito instrutiva a lição que eles nos oferecem a respeito do significado daqueles termos empregados em referência à crucificação. Reputo por desnecessário buscar os modernos lexicógrafos do grego antigo desde que faremos uma análise semântica de vários textos nesse idioma. Tal análise será o bastante para demonstrar a certeza ou incerteza quanto ao sentido em que o termo σταυρός era empregado.

    Iniciemos por Apolônio Sofista, professor em Roma no tempo do imperador Tibério (14 d.C. – 37 d.C.). Confira, nele, o significado de σταυρός:

    σταυροί. Postes fincados [καταπῆγες] e estacas pontiagudas [σκόλοπες] e todos os madeiros [ξύλα] erguidos na vertical. E [é] dessa ideia que se denominam entre nós. Em Heliodoro, σταυροὺς [vem a ser] a partir de ἑστάναι (‘estar de pé’): os chamados ‘atalaias’ ⁴ [σκοπίοι]⁵.

    (Apolônio Sofista, Léxico para os Elementos da Ilíada e da Odisseia).

    Hesíquio de Alexandria, dicionarista e gramático da língua grega, que viveu entre os anos 450 e 550 d.C., no Egito, também oferece sua contribuição. Observe que, segundo Hesíquio, o par de verbos ἀνασκολοπίσει e ἀνασταυροῦν e o par de substantivos σταυρός e σκόλοψ são equivalentes e intercambiáveis:

    ἀνασκολοπίσει. ἀνασταυρώσει

    [...].

    σκόλοψ. Madeiro [ξύλον] pontiagudo [ὠξυμμένον].

    σκόλοψιν,⁷ como um [espetinho] assado. Porque, no [tempo] antigo,⁸ os malfeitores eram empalados [άνεσκολόπιζον] — um madeiro [ξύλον] agudo [enfiado] ao longo da espinha e através das costas [νώτου], exatamente como os peixe[s] assados nos espetinhos [οβελίσκων, obelískõn].

    [...].

    σταυροί. As estacas pontiagudas [σκόλοπες] e os postes [χάρακες] fincados [καταπεπηγóτες],⁹ bem como todos os madeiros [ξύλα] que estão de pé. [Vem a ser] a partir de ‘estar de pé ’.

    σταυρούς. Vem de ‘estar de pé ao vento’.

    σταυροτύπως. Em forma de estaca.

    σταύρου. Estaquear¹⁰ [σταύρωσον]¹¹.

    (Hesíquio de Alexandria, Coleção Alfabética de Todas as Palavras).

    Eustácio (c. 1115 – 1195 d.C.), arcebispo de Tessalônica (Macedônia), erudito grego e professor de retórica, também ensina que σκόλοψ e σταυρός são estacas eretas e pontiagudas numa das extremidades, que também serviam para fazer paliçadas. Veja o que ele registra em duas de suas obras — Comentários na Ilíada e Comentários na Odisseia:

    σκόλοπες , madeiros eretos e pontiagudos no topo, que também se chamam σταυροί, e que cercam um lugar. 689, 46. 892, 43. 1358, 54. 1567, 17.

    [...].

    σταυροί, que também [são] σκόλοπες, [são] madeiros eretos e pontiagudos, por estar de pé ao vento ou por estar de pé no siroco, de onde [vem] a palavra ἀνασταυροῦν e também ἀνασκολοπίζειν. 689, 47. 892, 44. 1748, 50¹².

    σταυροῦν, à semelhança de ἀνασκολοπίζειν. 892, 45. Confira o [verbete] σταυροί¹³.

    (Eustácio de Tessalônica, compilado por Matthaeus Devarius em Index aos Comentários de Eustácio na Ilíada e na Odisseia, de Homero).

    É interessante notar a ênfase de Eustácio quando ele frisa que, nos dias dele, σκόλοψ e σταυρός mantinham o mesmo significado de outrora: Σκόλοπες δὲ καὶ νῦν, ξύλα ὀρθα. οἱ καὶ σταυροί,¹⁴ "Skólops até hoje [são] madeiros eretos, os quais também [são] stayroí " (EUSTÁCIO, Comentário à Odisseia de Homero, 1825, p. 258, vol. I; 1567,19).

    Desses eruditos, aprendemos que σταυρός é sinônimo de σκόλοψ. Logo, σταυρός não somente é uma simples estaca mas também é uma estaca pontiaguda. O que se confirma nas palavras de Apiano de Alexandria (c. 95 – 160 d.C.), um historiador romano. Seu texto descreve como o general romano Cipião Africano preparou o campo de batalha em seu ataque à cidade de Cartago, durante a 2.ª Guerra Púnica (218 a.C.– 201 a.C.). Observe que a ação de σταυρόω (estaquear) também se dá com estacas pontiagudas:

    [...] de modo que a trincheira, como um todo, formou um quadrado, e ele estaqueou [έσταύρωσε] [os quatro fossos] todos com madeiros [ξύλοις] pontiagudos [όξέσιν]. E, além dessas estacas [σταυροις], ele também levantou uma paliçada com estacas pontiagudas [έχαράκωσε] junto aos fossos [τάφρους], [...]¹⁵.

    (Apiano de Alexandria, História de Roma, VIII.18.119).

    Ademais, sabendo que o prefixo ἀνα (ana) é uma preposição que quer dizer ‘no alto’ ou ‘para cima’, podemos entender que ἀνασταυροῦν significa ‘fixar no alto de uma estaca mediante estaqueamento ou empalação’, e ἀνασκολοπίσει, ‘empalar no alto’ (de uma estaca).


    4 No grego, σκοπίοι (skopíoi). Trata-se de um hápax legomenon (‘que é dito uma única vez’). A palavra está aparentemente associada ao verbo σκοπέω (observar, olhar com atenção), do qual vem σκοπιά (fem., torre de observação) e σκοπός (masc. , vigia, guarda). Provavelmente, σκοπίοι é o masculino de σκοπιαί, que quer dizer ‘oréades’ (LIDDELL e SCOTT, A Greek-English Lexicon, 1940, no verbete σκόπ-ευσις, no subverbete -ιά), isto é, as ninfas das montanhas, os seres que animam as árvores que crescem nos lugares altos. Daí a ideia de estar de pé, e de lugar alto. Na mesma linha, Hesíquio de Alexandria escreve em seu léxico σκοπιαί - as cristas das montanhas, os locais elevados (HESÍQUIO, Coleção Alfabética de Todas as Palavras, verbete 1095). Tendo em vista que a palavra ‘atalaia’ é comum de dois gêneros — ‘o atalaia’ (vigia, guarda) ou ‘a atalaia’ (torre de vigia) —, optei por ‘o atalaia’ na tradução de σκοπίοι, pois Apolônio emprega o artigo definido e o próprio termo no masculino.

    5 APOLONIUS, sophist. Apollonii Sophistae lexicon homericum. Ex recensione Immanuelis Bekkeri. Berolini: Ge. Reimeri, 1833. p. 144. Disponível em: . Acesso em: 07 out. 2019.

    APOLONIUS, sophist. Apollonii Sophistae lexicon graecum Iliadis Et Odysseae. Versionem latinam adjecit Jean Baptiste Gaspard d’Ansse de Villoison. Lutetiae Parisiorum: J. C. Molini, 1773. p. 733. Tomus secundus. Disponível em: . Acesso em: 07 out. 2019.

    6 HESYCHIUS, of Alexandria. Hesychii Alexandrini lexicon.Post Ioannem Albertum, recensuit Mauricius Schmidt. Ienae [Jena]: Frederici Maukii, 1858. p. 183. Volumen primum (Α – Δ). Disponível em: . Acesso em: 07 out. 2019.

    7 Dativo plural de σκόλοψ (skólops). Dativo é o caso de flexão nominal para objeto indireto e complemento nominal.

    8 No [tempo] antigo, isto é, antes do ano 337 d.C. Porque o imperador romano Constantino (306 – 337 d.C.) aboliu a crucificação — (Sozomeno, História Eclesiástica, I.8.13) e (Aurélio Victor, De Caesaribus, XLI.4).

    9 Particípio passado perfeito do verbo καταπήγνυμι (translit., katapẽgnymi) = fincar firmemente em, fixar solidificando, fixar congelando (LIDDELL e SCOTT, A Greek-English Lexicon, 1940).

    10 Cercar com estacas; fazer uma paliçada; fixar alguém a estaca(s) pelos quatro membros, com amarras ou pregos, deixando-o suspenso do solo; empalar. Entre os gregos, o ato de estaquear incluía a empalação.

    11 HESYCHIUS, of Alexandria. Hesychii Alexandrini lexicon.Post Ioannem Albertum, recensuit Mauricius Schmidt. Ienae [Jena]: Frederici Maukii, 1862. p. 48, 72. Volumen quartum (Σ – Ω). Disponível em: . Acesso em: 07 out. 2019.

    12 Esses números fazem referência às seguintes obras de Eustácio: 689, 47 = Comentário na Ilíada, 1828, p. 176, vol. 2, disponível em: ; 892, 44 = Comentário na Ilíada, 1829, p. 97, vol. 3, disponível em: ; e 1748, 5[1] = Comentário na Odisseia, 1826, p. 58, vol. 2, disponível em: .

    13 DEVARIUS, Matthaeus. Index in Eustathii commentarios in Homeri Iliadem et Odysseam. Lipsiae [Leipzig]: J. A. G. Weigel, 1828. p. 427, 428, 432. Disponível em: . Acesso em: 07 out. 2019.

    14 EUSTATHIUS, of Thessalonica. Commentarii ad Homeri Odysseam. Editi Gottfried Stallbaum. Lipsiae: Johann August Gottlieb Weigel, 1825. p. 258. Tomus I. Disponível em: . Acesso em: 19 fev. 2020.

    15 APPIAN, of Alexandria. Roman history. With an English translation by Horace White, in four volumes. London: William Heinemann, 1922. p. 613. Volume I. (Loeb Classical Library n.º 2). Disponível em: . Acesso em: 05 mar. 2020.

    O PRINCIPAL ARGUMENTO DOS DEFENSORES DA CRUZ ()

    Aqueles que defendem a imagem da cruz de Cristo como hoje a conhecemos, sustentam que Cristo carregou um patibulum até o Monte da Caveira. No alto do monte, o patibulum , com Cristo pregado nele, foi erguido e fixado transversalmente num poste previamente fincado no chão. É o que dizem os paladinos da cruz.

    Não posso traduzir patibulum por ‘patíbulo’ porque essa palavra, hoje, tem outro significado. Mas o que é patibulum? A palavra tem origem no verbo patere, que quer dizer ‘esticar, estender’. Os autores antigos explicam que patibulum é aquela haste horizontal que serve de poleiro para as galinhas dormirem ou, ainda, que é a barra de madeira que, colocada horizontalmente, serve para trancar as portas¹⁶. Se nossa palavra ‘patíbulo’ (estrado onde os condenados são executados) não tivesse mudado de significado, ela hoje teria por sinônimos ‘trava’ ou ‘travessa’, os quais, aplicados à pena capital, indicariam o travessão no qual se prendem as cordas que servem para enforcar os condenados, por exemplo.

    O suplício do patibulum era mais um dentre vários daqueles praticados pelos romanos. Seu objetivo não era a execução, mas, sim, a humilhação e o sofrimento. Era um suplício aplicado aos escravos e àqueles que não eram cidadãos romanos. Uma barra de madeira era posta sobre os ombros do condenado. Os braços eram esticados, e seus punhos (os carpos) eram amarrados nas extremidades dessa barra. Em seguida, o condenado era forçado a caminhar pelas ruas da cidade, sendo seguido por um verdugo que o açoitava. Algumas vezes, o suplício do patibulum precedia a pena capital. A narrativa do historiador grego Dionísio de Halicarnasso (c. 60 a.C. – 7 a.C.) dá testemunho a respeito desse tipo de condenação e da forma como ela era aplicada. Confira:

    Aqueles que conduziam o escravo para a punição, tendo estendido ambas as mãos dele e tendo amarrado-as [προσδήσαντες] a um madeiro [ξύλω] que se prolongava do peito aos ombros e até os punhos [καρπών], estavam seguindo [ele], lacerando com açoites [seu corpo] nu¹⁷.

    (Dionísio de Halicarnasso, Antiguidades Romanas,VII.69.2).

    Em uma das comédias de Plauto (c. 254 a.C. – 184 a.C.), o escravo Céledro põe-se, de braços abertos, no vão da porta para impedir que Filocomásia entrasse furtivamente. Ao ver isso, o escravo Palestrião dirigiu as seguintes palavras a Céledro:

    Eu creio que, logo, nessa mesma [posição], tu serás imediatamente impelido para fora da porta, com as mãos estendidas, pois tu terás um patibulum ¹⁸.

    (Tito Plauto, O Soldado Fanfarrão, ato II, cena 4, linhas 359-360).

    O argumento segundo o qual Cristo teria carregado um patibulum em sua execução, é atraente. Porém, padece de erros. A maior falha desse argumento reside no fato de que o patibulum era amarrado ou pregado nos braços do condenado¹⁹. E isso foge ao relato da morte de Cristo. Se Cristo teve um patibulum amarrado ou pregado em seus braços, antes de sua execução, como foi possível que Simão de Cirene tivesse erguido e carregado essa barra de madeira?

    Os Evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) afirmam que foi Simão quem carregou o madeiro até o Calvário. E os Evangelhos de Mateus e de Marcos (Mt 27.32; Mc 15.21) empregam a forma verbal ἄρῃ, 3.ª pessoa do singular do aoristo subjuntivo ativo do verbo αἴρω, contração de ἀείρω, que também significa ‘levantar (do chão) e carregar’ ²⁰.

    E conduziram-no para ser fixado na estaca [σταυρῶσαι]. E, saindo, eles encontraram um homem de Cirene, de nome Simão. A esse [τοῦτον] eles obrigaram [ἠγγάρευσαν] a que [ἵνα] levantasse e carregasse [ἄρῃ] a estaca [τὸν σταυρὸν] dele [αὐτοῦ]²¹.

    (Evangelho de Mateus, 27.31-32, em Novo Testamento

    Completo, de Erasmo de Rotterdam).

    Outra falha desse argumento consiste na ausência de respaldo nas antigas Bíblias latinas. Nenhum exemplar da Vetus Latina emprega o termo patibulum para aquilo que Simão, o cireneu, carregou no lugar de Cristo. E quem afirma isso é um dos defensores da cruz, John Granger Cook²². De fato, a Vetus Latina usa o vocábulo cruce.


    16 COOK, John Granger. Crucifixion in the Mediterranean world. Tübingen: Mohr Siebeck, 2014. p. 16-18. Disponível em: . Acesso em: 19 fev. 2020.

    17 Apud SAMUELSSON, Gunnar. Crucifixion in antiquity. Tübingen: Mohr Siebeck, 2011. p. 93-94. Disponível em: . Acesso em: 29 fev. 2020.

    18 PLAUTUS, Titus Maccius. The miles gloriosus of T. Maccius Plautus. A revised text, with notes, by Robert Yelverton Tyrrell. London: Macmillan and CO. , 1881. p. 34. Disponível em: . Acesso em: 01 mar. 2020.

    19 COOK, John Granger. Crucifixion in the Mediterranean world. Tübingen: Mohr Siebeck, 2014. p. 28, 31. Disponível em: . Acesso em: 19 fev. 2020.

    20 LIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert. A Greek-English lexicon. A new edition revised and augmented throughout by Henry Stuart Jones, with the assistance of Roderick Mckenzie. Oxford: Clarendon Press, 1940. p. 27. Volume I. Verbete ἀείρω. Disponível em: . Acesso em: 01 mar. 2020.

    21 BÍBLIA. NT. Grego e latim. Novum Testamentum Omne. Recognitum, emendatum ac translatum ab Erasmo Roterodamo. [2.ª edição]. Basileae: Johannes Froben Offizin, 1519. p. 66. Disponível em: . Acesso em: 01 mar. 2020.

    22 COOK, Crucifixion in the Mediterranean World, 2014, p. 26-27.

    BREVE ANÁLISE DAS OBRAS DE SAMUELSSON E COOK

    Quando se aborda o tema ‘crucificação’, não se pode olvidar o trabalho seminal de Justus Lipsius. Ele foi o primeiro erudito a se debruçar sobre esse assunto.

    Sua obra De Cruce Libri Tres (Três Livros sobre a Cruz, 1593) foi uma forma de se reconciliar com a Igreja Católica após uma jornada no Neoestoicismo. Em seu livro, Lipsius começa com uma abordagem filológica para, em seguida, descrever a crucificação e as cruzes nos mais variados formatos. Desde que seu objetivo era voltar às boas graças da Igreja, ele sustentou que Cristo morreu numa cruz de quatro lados () ao afirmar que pelas quatro extremidades [da cruz] todo o mundo é abrangido ²³.

    Justus Lipsius também declarou que poetas e também pintores estão com essa forma. Nonnus expressamente descreve Cristo levantado ‘em madeiro de quatro lados’ ²⁴. E, mais à frente, ele acrescenta: "Et Christus sanè totam plenamque Crucem tulit",²⁵ "e Cristo decerto carregou a cruz inteira e completa". Ou seja, segundo Lipsius, Cristo carregou o poste e a travessa (patibulum) em sua caminhada para a execução. Lamentavelmente, sua obra oferece uma visão estreita sobre esse tema, uma vez que ele se baseia primordialmente nos textos dos pais da Igreja, deixando de lado os evangelistas e os autores pré-cristãos.

    Quanto a mim, dirigi o olhar para duas recentes publicações sobre o assunto: Crucificação na Antiguidade (2011), de Gunnar Samuelsson; e Crucificação no Mundo Mediterrâneo (2014), de John Granger Cook. São obras de grande mérito porque reúnem e analisam textos do período de 500 a.C. a 700 d.C. e que fazem referência à crucificação.

    O trabalho de Samuelsson (2001) impressiona por sua técnica. Com base no entendimento atual, ele estabelece o tipo ideal para a crucificação nos seguintes termos:

    Uma execução tentada ou consumada pela suspensão, na qual a vítima [viva] é pregada ou amarrada, por meio de seus membros, a um instrumento vertical de execução, usualmente um poste, com ou sem travessa, e assim publicamente exposta a fim de ser submetida a uma morte prolongada e dolorosa²⁶.

    Em seguida, ele compara esse tipo ideal com os antigos registros de crucificação e chega às seguintes e impressionantes conclusões: (1) no mundo antigo, o método de crucificação variava; (2) até o ano 200 d.C. , não existe evidência textual para uma travessa que é carregada e, depois, é fixada num poste previamente fincado na terra, no qual houvesse um apoio para as nádegas ou para os pés do condenado; (3) os textos antigos oferecem informação muito exígua e vaga sobre o formato do σταυρός , no máximo, que ele, às vezes, se assemelha ao mastro de navio (que varia no desenho);²⁷ (4) os Evangelhos não revelam coisa alguma sobre a forma desse instrumento de execução; e (5) o moderno e tradicional rótulo ‘crucificação’ contém muito mais do que a minguada descrição que o Novo Testamento oferece²⁸. Samuelsson, entretanto, não trata da crucificação sob o ponto de vista arqueológico.

    A obra de Cook (2014) é aquilo que se chama de contrainformação. Visa a ser um contraponto ao trabalho de Samuelsson (2011) de modo a manter o status quo. Cook, lamentavelmente, incorre em petição de princípio. Aquilo que ele pretende demonstrar — que Cristo carregou um patibulum até um poste já fincado no chão — é exatamente seu argumento principal.

    No livro de Cook (Crucificação no Mundo Mediterrâneo, 2014), o que deveria iniciar como presunção já é tomado por asserção. Cook toma por certo que σταυρός é a palavra grega que melhor traduz o vocábulo latino patibulum ²⁹. Ele não nota que os escritores gregos empregavam o termo ξύλον (transliterado, xýlon : madeiro, lenho) quando abordavam o suplício do patibulum ou o suplício da furca ³⁰. E também se esquece de que nenhum manuscrito da Vetus Latina traduz o grego σταυρός pelo latim patibulum . A Vetus Latina verte, sim, o grego σταυρός no latim crux .

    Após afirmar que σταυρός é patibulum , em qualquer texto grego no qual surge a palavra σταυρός , Cook verá o condenado carregando um patibulum (amarrado ou pregado em seus braços) que, depois, será fixado num poste. Nesse ponto, Cook escapa ao relato bíblico porque ele afirma que o criminoso não era solto do patibulum para ser fixado na cruz. O patibulum (com o condenado preso nele) era içado e fixado no alto de um poste³¹. Destarte, Cook viciosamente demonstra que o Cristo da Igreja morreu na cruz (). Digo ‘viciosamente’ porque os Evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) registram que foi Simão de Cirene quem carregou a cruz (estaca) de Cristo.


    23 LIPSIUS, Justus. De cruce libri tres – ad sacram profanámque historiam utiles. Antuerpiae: Officina Plantiniana, 1593. p. 22. Disponível em: . Acesso em: 03 mar. 2020.

    24 Idem, ibidem, p. 23.

    25 Idem, ibidem, p. 40.

    26 SAMUELSSON, Gunnar. Crucifixion in antiquity. Tübingen: Mohr Siebeck, 2011. p. 29. Disponível em: . Acesso em: 29 fev. 2020.

    27 SAMUELSSON, Gunnar. Crucifixion in antiquity. Tübingen: Mohr Siebeck, 2011. p. 120, 277. Disponível em: . Acesso em: 29 fev. 2020.

    COOK, John Granger. Crucifixion in the Mediterranean world. Tübingen: Mohr Siebeck, 2014. p. 7. Disponível em: . Acesso em: 19 fev. 2020.

    28 SAMUELSSON, Crucifixion in Antiquity, 2011, p. 260, 294-296, 306.

    29 COOK, Crucifixion in the Mediterranean World, 2014, p. 6.

    30 Acima, veja o texto de Dionísio de Halicarnasso (Antiguidades Romanas, VII.69.2) em que o grego ξύλον é usado no lugar de patibulum. Quanto à furca, é o que chamamos de ‘canga’ e também ‘cangalha’. Os escritores gregos igualmente empregavam o termo ξύλον quando se referiam à furca. Basta ver Plutarco (Vidas Paralelas: Caio Márcio Coriolano, 24.5 – Loeb edition, volume 4, 1959, p. 176-178; e Moralia: Questões Romanas, 70 – Loeb edition, volume 4, 1952, p. 106-108), em Cook (2014, p. 37-38). A furca difere do patibulum no formato, mas o suplício é idêntico: os açoites e a exposição pública em uma caminhada de humilhação.

    31 COOK, Crucifixion in the Mediterranean World, 2014, p. 22-23, 28, 31.

    DA POSSIBILIDADE DE CONTINUAR VIVO APÓS A EMPALAÇÃO

    Infelizmente, tanto Samuelsson (2011) quanto Cook (2014) incidem numa enorme falha. Ambos os autores afirmam que a empalação causa a morte imediata do condenado. Posto que, segundo eles, a crucificação pressupõe uma vítima viva, que sofre uma prolongada agonia de morte, Samuelsson e Cook excluem a empalação e o enforcamento do âmbito da crucificação ³².

    Nessa linha de raciocínio, eles sustentam que Cristo não foi empalado porque ele falou enquanto fixado na estaca (Mt 27.46; Jo 19.26-27). Desse modo, esses dois autores equiparam a crucificação ao estaqueamento, somente. Essa é a grande falha. Faltou a ambos uma pesquisa aprofundada sobre a empalação. Se o tivessem feito, teriam descoberto que a vítima empalada comumente morria como a vítima estaqueada, ou seja, perecia de sede após dois ou três dias de agonia.

    Entristeci-me por Samuelsson quando tomei conhecimento dos fatos a respeito da empalação. Seu livro Crucificação na Antiguidade (2011) é, na verdade, sua tese de doutorado. E essa falha infelizmente maculou o brilho de seu trabalho.

    Quem chamou a atenção para o fato de que a vítima empalada não morre necessariamente da própria empalação, foi Edward Miessner, engenheiro civil pela Universidade de Miami (EUA). Seu meritório artigo Uma das Coisas que Desencaminham os Eruditos... (2016)³³ é esclarecedor. Cita inúmeros relatos das empalações observadas pelos viajantes que percorreram a Ásia e a África durante o período da expansão comercial europeia; e, ao fazê-lo, Miessner demonstrou que a empalação não causava por si só a morte do empalado.

    Primeiramente, o leitor deve ter em mente que o estaqueamento e a empalação eram suplícios muito comuns na antiguidade. Em Babilônia, ao tempo do rei Hamurabi (c. 1810 – c. 1750 a.C.), a lei penal prescrevia a pena de empalação para a esposa que conspirasse a morte de seu marido para ficar com o amante:

    Se a esposa de um homem, em razão de um macho, deu causa a que seu marido fosse assassinado, ela será empalada³⁴.

    (Código de Hamurabi, § 153).

    A nação assíria adotou a mesma pena para o crime de abortamento, como se vê num código de leis assírias do século XI a.C. Confira:

    Se uma mulher expulsou o fruto de seu útero por seu próprio ato, [e se] acusação e provas forem trazidas contra ela, ela será empalada, [e seu corpo] não será sepultado. Se ela morreu ao expulsar o fruto de seu útero, ela será empalada, [e seu corpo] não será sepultado. Se essa mulher foi escondida quando expulsava o fruto de seu útero [e] isso não foi comunicado ao rei...³⁵

    (Código de Leis Assírias Tablete A, § 53).

    No Egito, empalavam-se os ladrões que subtraíam o tesouro dos templos e das tumbas. Quanto a isso, destaca-se o Decreto de Nauri, pelo faraó Seti I, em 1302 a.C. , gravado numa estela encontrada em Nauri (Sudão, próximo à ilha Arduan), no ano de 1924. Nessa lei, o faraó estabelece a pena de empalação para os funcionários da Casa (templo) que subtraíssem os animais pertencentes a Deus ou que desviassem as ofertas destinadas a Osíris. Cumuladamente, os ladrões eram apenados com o perdimento de todos os seus bens em favor do templo. É notável que esposa e filhos eram considerados bens. Caso fosse identificado o receptador, este ver-se-ia obrigado a devolver cem cabeças para cada cabeça de animal do templo que fosse encontrada em sua posse. O tesouro da Igreja do Egito era muitíssimo protegido. Confira o texto legal a esse respeito:

    E quanto a qualquer mantenedor de gado, qualquer mantenedor de cães de caça, qualquer pastor pertencente à Casa que venha a dar qualquer cabeça dos animais pertencentes à Casa a alguém mediante desfalque; semelhantemente àquele que dê causa a que os animais sejam ofertados noutra direção, e não ofertados a Osíris, seu Senhor na Casa; uma punição ser-lhe-á dada de modo que seja aviltado e posto sobre a ponta de uma estaca, confiscando-se sua esposa e filhos e todos os seus bens em proveito da Casa, retomando-se as cabeças de animais daquele a quem ele tenha dado mediante subtração da Casa, à proporção de cem para uma³⁶. (Grifo nosso).

    (Faraó Seti I, Decreto de Nauri , linhas 74-80).

    As palavras ‘estaca’ (empalação ou estaqueamento) e ‘mutilação’ (excisão de nariz e orelhas) eram muito comuns no processo criminal egípcio, no século XI a.C. Antes de serem interrogados (torturados) mediante golpes de bastão na sola dos pés, os suspeitos juravam pelo faraó nos seguintes termos: Se eu falar a mentira, que eu seja mutilado e posto na estaca ³⁷ (Papiro 10052, VII.2-3, do Museu Britânico). Noutro lugar, um alto funcionário do faraó reclama por ser injustamente acusado de não impedir que as tumbas da necrópole (cidade dos mortos) fossem violadas. Ao reclamar, ele cita as penas a que estava sujeito:

    E Pebes, o escriba da necrópole, fez a mim duas acusações adicionais, no total de cinco, as quais ele registrou igualmente, sendo impossível suprimi-las, pois são acusações sérias, envolvendo mutilação ou empalação ou penas mais severas ³⁸.

    (Papiro Abbot , VI. 11-13).

    O papiro Mayer A (13 B.I), elaborado na Dinastia XX (séculos XII e XI a.C.), relata que sete homens foram levados à morte na estaca. O texto não escreve na ponta da estaca³⁹. Deve-se presumir, portanto, que foram estaqueados.

    Se, no Egito, a pena de morte pela estaca era algo trivial, o que dizer, então, de Roma? O Direito romano previa a morte pela estaca como uma das penas aplicadas pela Justiça criminal. A Lei das XII Tábuas (450 a.C.) impunha a pena capital àquele que apascentasse seu gado em pasto alheio e àquele que, secretamente e à noite, furtasse a seara de outrem de modo que o delinquente "seja suspenso [suspensum] e morto [como um sacrifício] a Ceres" ⁴⁰ (Lei das XII Tábuas , tábua VIII, artigo 9.º). O termo ‘suspenso’ é abrangente, pois a empalação e o estaqueamento podem ser nele compreendidos. Mas a obra do jurista romano Júlio Paulo, que floresceu entre 150 d.C. e 250 d.C. , é bem explícita na determinação das penas.

    Júlio Paulo Prudentíssimo foi contemporâneo de outros dois grandes juristas romanos, Ulpiano e Papiniano. Seus pareceres eram tão importantes que foram incluídos no Digesto ou Pandectas, uma das partes do Corpus Juris Civilis, um compêndio de leis romanas, elaborado ao tempo do imperador Justiniano I, em cerca de 531 d.C. A obra Pareceres (Sententiarum), de Júlio Paulo, fazia parte do sistema legal romano anterior ao Corpus Juris Civilis . Se consultarmos os pareceres de Paulo, no livro Coleção de Livros de Direito anteriores a Justiniano (1878), veremos que o crime de magia negra era punido com a empalação caso seu autor pertencesse à classe social baixa. Observe:

    15. Aquele que faz ou manda fazer algum ritual ímpio e noturno a fim de enfeitiçar, amaldiçoar ao cravar espetos num molde, ou amarrar alguém, ser-lhe-á inserida uma crux por baixo [cruci suffiguntur]⁴¹ ou será lançado às feras.

    16. Aquele que imolar um homem, obter presságio ao extrair seu sangue, profanar santuário ou templo, será lançado às feras ou, se for um nobre [honestior], punir-se-á com a [pena] capital⁴².

    17. Resolveu-se que se infligirá o sumo suplício aos cúmplices de artes mágicas, isto é, que serão lançados às feras ou ser-lhes-á enfiada uma crux pelo fundo [cruci suffigi]⁴³. (Grifo nosso).

    (Júlio Paulo, Pareceres, V.23).

    O crime de sedição e tumulto também merece nossa atenção. Cristo e seus apóstolos foram grandes perturbadores da ordem política e religiosa. Eles causavam tumulto na sociedade. Na mesma linha do profeta Elias, que foi tachado de perturbador de Israel (I Rs 18.17) pelo rei Acabe, o senado (sinédrio) israelita, diante de Pôncio Pilatos, acusou a Cristo de ser agitador do povo (Lc 23.5, 14). Como o Direito Romano apenava o crime de revolta e agitação do povo? Mais uma vez, o jurista romano Júlio Paulo pode definir a posição da Justiça Penal de Roma quanto a esse assunto. Confira o parecer de Júlio Paulo sobre esses crimes:

    Os autores de sedição e tumulto ou os agitadores do povo, de acordo com a qualidade do status social, ou serão levantados [tolluntur] na crux ou serão lançados às feras ou serão exilados em uma ilha⁴⁴.

    (Júlio Paulo, Pareceres, V.22).

    Essa norma faz-nos lembrar do apóstolo João, quem, conduzido ao tribunal e lá declarado criminoso pelas leis romanas, recebeu a pena de exílio, sendo deportado para a ilha de Patmos (Ap 1.9).

    De todo modo, no que respeita ao suplício da crux em Roma, a pena para o crime de sedição e tumulto não era específica como era a pena para o crime de magia negra. Os agitadores do povo "serão levantados na crux ", mas levantados como? Pela empalação ou pelo estaqueamento? Nesse caso, a lei romana deixava o tipo de punição ao arbítrio do juiz.

    Figura 1. Prometeu, empalado, é liberto por Hércules. Motivo recorrente na decoração de vasos gregos do século VI a.C. Prometeu, empalado,⁴⁵ ergue as mãos atadas num gesto de defesa contra a águia que avança para lhe comer o fígado. Nesse instante, disparando duas flechas em direção à ave de rapina, Hércules arqueiro aproxima-se para resgatá-lo. A cena é assistida por Zeus, que segura um báculo. Essa imagem retrata o suplício de Prometeu conforme registrado em Teogonia (522), de Hesíodo: e Zeus enfiou [ἐλάσσας] um pilar através do meio [dele] ⁴⁶. Cratera (κρατήρ) de coluna com figuras negras, fabricada em Atenas (Grécia), descoberta em Chiusi (Itália), datada de c. 550 a.C. , e adquirida em 1842 pelo Museu Antigo, de Berlim (item F 1722). Peça danificada e restaurada⁴⁷. Ilustração de Pablo Vinícius Nascimento. Essa figura encontra-se ampliada nas últimas páginas desse livro.

    Pondo de parte o Direito Romano, as referências à empalação continuam na literatura greco-romana. Lúcio Plutarco (c. 46 – 120 d.C.), magistrado e embaixador romano e sacerdote nos Mistérios de Dioniso

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