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História e Diplomacia Monetária
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E-book784 páginas9 horas

História e Diplomacia Monetária

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Sobre este e-book

Este livro procura analisar as disputas interestatais relacionadas aos processos históricos e contemporâneos de determinação de uma moeda como a de referência internacional. Interessam-nos tanto as lutas atuais de desdolarização, quanto as trajetórias de internacionalização das moedas que conseguiram se expandir para além de seus espaços político-territoriais de origem, cujos casos mais importantes foram: a libra esterlina inglesa e o dólar estadunidense. Não estaria errado afirmar que a presente pesquisa retoma a discussão iniciada no livro "Poder, Riqueza e Moeda na Europa Medieval", publicado em 2014. Se, naquele livro, o mergulho nas dinâmicas sociais próprias do Medievo permitiu entender tanto a centralidade da moeda na sociogênese dos estados territoriais europeus, quanto a natureza dos primeiros processos de alargamento de territórios monetários, retoma-se neste livro o tema do poder e da moeda, porém com foco nos processos mais bem-sucedidos de globalização de moedas nacionais, antes de chegar às disputas monetárias contemporâneas. O livro também se debruça sobre as recentes iniciativas brasileiras no campo da diplomacia monetária, sobretudo ao longo dos anos em que o Brasil foi governado pelo Partido dos Trabalhadores. Trata-se de uma agenda de pesquisa cujo escopo se situa na interface entre história, geopolítica, política externa e economia monetária, exigindo um olhar interdisciplinar não muito usual e, decerto, desafiador.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de nov. de 2023
ISBN9786527003816
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    História e Diplomacia Monetária - Mauricio Metri

    PARTE I

    INSPIRAÇÕES RENASCENTISTAS

    (...) quem observou as mutações dos reinos, as ruínas das províncias e das cidades não as viu causadas por outra coisa senão pela falta das armas ou do dinheiro. Dado que vós concedais que isto possa ser verdade, como é, segue-se, necessariamente, que deveis querer, na vossa cidade, uma e outra destas duas coisas; e procurar bem, se elas existem, conservá-las; e se não existem, consegui-las.

    (Nicolau Maquiavel,

    Discurso sobre a maneira de prover-se de dinheiro, 1503).

    1 UMA FORMA DE VER E PENSAR: A VIRTÙ MONETÁRIA¹⁶

    OS IMPERATIVOS GEOGRÁFICO E TERRITORIAL

    Em seu artigo História e Ciências Sociais: a Longa Duração, publicado na Revista dos Annales em 1958,¹⁷ o historiador Fernand Braudel cunhou o termo coerção geográfica ao pensar uma das estruturas que balizam os movimentos dos seres humanos no tempo, atuando sobre estes como prisões de longa duração (Braudel, 1990, p. 50).

    O termo exprime a opção por refletir as dinâmicas sociais a partir dos elementos naturais da paisagem – como, por exemplo, montanhas, vales, desertos, climas, biomas, rios, mares etc. –, de modo a encontrar na geografia física uma realidade perene que se impõe, e diante da qual os fluxos humanos e o próprio curso da história são obstados ou facilitados, pois seus elementos naturais podem funcionar ou como entraves e barreiras ou como escoadouros e suportes.¹⁸

    Não por outra razão, Braudel incorporou o espaço físico como ponto de partida de algumas de suas principais obras, como, por exemplo, no livro O Mediterrâneo e o Mundo mediterrâneo na época de Felipe II de 1949, cuja primeira parte se chama O meio, e o primeiro capítulo, As penínsulas: montanhas, planaltos e planícies.

    A preocupação do historiador com a ideia de coerção geográfica está ligada ao seu conceito de longa duração, de modo que o exercício de estruturação de um tempo histórico hiperdilatado possa encontrar na geografia uma referência e um apoio à observação e à análise das ponderosidades associadas às dinâmicas sociais. Capturar as permanências, as regularidades históricas, considerando também as transformações por que passam as sociedades, constituía o cerne dos interesses de Braudel.

    A ampliação do tempo, como janela de entrada para pensar determinados processos históricos, é uma prática analítica capaz de, por si só, ressignificar os objetos, assim como identificar novas perguntas e problemas, uma vez que permite refletir um mesmo evento dentro de um quadro de dinâmicas mais amplas, possibilitando o reexame de suas acepções e, no limite, das próprias questões relevantes. E a estratégia de Braudel para fazer isso não só envolve a geografia, mas, na verdade, se estrutura a partir dela.

    Além das releituras que tal exercício instiga e permite, definir o espaço natural como ponto de partida de uma forma de ver e pensar também abre uma oportunidade para se desenvolver um raciocínio efetivamente geograficizado dos processos sociais em privilégio. Em outras palavras, pensar com suporte no espaço geográfico permite estabelecê-lo como elemento integrador de uma reflexão interdisciplinar que, de acordo com os interesses deste livro, vai desde a geopolítica, passa pela geoeconomia, antes de se chegar a uma visão geomonetária.

    Não por outro motivo, sob inspiração do termo coerção geográfica, propõe-se como princípio teórico (axiomático) a ideia de imperativo geográfico, no sentido de que o espaço físico constitui uma dimensão da vida, presente em todo fenômeno social, uma vez que as vivências humanas ocorrem necessariamente a partir de algum espaço concreto. Não há agrupamento social em qualquer momento da História que tenha se desenvolvido fora de um espaço natural e acessível, e cujos movimentos não tenham sofrido influência do meio físico de onde se encontravam. Trata-se de uma proposição diretiva a partir da qual toda argumentação posterior está subordinada. Constitui-se, tomando emprestada uma expressão cara a Maquiavel, uma verdade efetiva¹⁹ das experiências humanas.

    Com efeito, define-se o espaço natural como categoria analítica elementar, base para reflexão das dinâmicas sociais, aprisionando-as a um raciocínio com referência geográfica. Eis, portanto, a primeira camada da perspectiva teórica em sugestão ou, parafraseando a Geologia, seu estrato rochoso mais profundo e estruturante.

    Outro aspecto importante e que nos interessa da geografia braudeliana, presente em suas análises históricas, diz respeito ao tipo de reflexão geográfica empregado aos fenômenos humanos. Como disse o geógrafo Yves Lacoste, seria um erro reduzir a análise do historiador francês a uma geografia de molduras estáticas, escrava da história, (...) essa geografia imóvel de que o historiador se serve para evocar os ‘tempos longos’. (Lacoste, 1988, p. 176). Em suas principais obras, Braudel desenvolveu também aquilo que alguns geógrafos definiram como geografia fundamental, uma geografia da ação, do movimento (Lacoste, 1988, p. 176).

    Trata-se de uma concepção ampla, e mesmo contraditória, do exercício de reflexão geográfica na qual a dimensão física das configurações espaciais aparece não apenas como uma moldura rígida ou um elemento coercitivo das análises históricas, mas também como uma estrutura cujos significados sofrem modificações quando analisados a partir das dinâmicas sociais. Em outras palavras, as configurações espaciais podem ser pensadas simultânea e dialeticamente a partir de seus elementos tanto físicos, quanto humanos. Nesse caso, a geografia torna-se impregnada por fenômenos sociais com capacidade de alterar os entendimentos sobre seus recortes físicos, por um lado, sem deixar de ser impregnadora de elementos coercitivos, por outro. Evita-se, com efeito, uma análise do espaço geográfico restrita às características dos aspectos naturais do meio, incorporando-lhe fatores relativos às ações do humano, de modo que, no limite, realizam-se ressignificações da própria geografia física.

    A interpretação de Braudel sobre a derrota da Inglaterra na Guerra de Cem Anos é um bom exemplo disso. Em suas palavras,

    Entre 1453 e 1558, (...) a Inglaterra, sem ter consciência disso na época, tornou-se uma ilha (perdoem-me a expressão), isto é, um espaço autônomo, distinto do continente. Até esse período decisivo, a despeito da Mancha, a despeito do mar do Norte, a despeito do estreito de Calais, a Inglaterra estava corporalmente ligada à França, aos Países Baixos, à Europa. (Braudel, 1986, p. 326).

    Ou seja, a insularidade da Inglaterra, um elemento próprio e constitutivo de todas as ilhas, adquiriu seu sentido geográfico estrito quando os ingleses foram expulsos do continente europeu no ano de 1453, por conta de uma derrota militar. Antes de sua expulsão, a percepção era distinta. A insularidade não continha o mesmo significado quando pensada a partir das lutas de poder. O que mudou daquele ano em diante foram as dinâmicas sociais características das relações entre ingleses e os povos do Continente. Aqueles assumiram, desde então, a insularidade como pilar de sua geoestratégia diante das ameaças provenientes do outro lado do Canal da Mancha.²⁰

    Um outro exemplo, em sentido contrário, mostra o extraordinário peso que a geografia física pode ter sobre determinados processos históricos, beirando o determinismo geográfico. Acerca das lutas seculares entre irlandeses e ingleses, Braudel afirmou, citando Vidal de la Blache, que: (...) a Irlanda, próxima demais da Inglaterra para lhe escapar, grande demais para ser assimilada, foi sempre vítima da sua localização geográfica. (Braudel, 1986, p. 346-347).²¹ O historiador acentuou, com efeito, a ponderosidade dos aspectos geográficos na relação entre os povos das ilhas da Irlanda e da Grã-Bretanha. Uma fratura resistente ao tempo, descrita pelo próprio Michael Collins, principal líder da Guerra de Independência da Irlanda de 1919-21, no livro The Path to Freedom. De acordo com o herói irlandês, "For 700 years the united effort has been to get the English out of Ireland." (Collins, 1922, p. 19). Algo até hoje ainda não concluído dada a divisão da Ilha em duas Irlandas, uma delas, a da região do Ulster, subordinada diretamente aos interesses de Londres.

    Há, em resumo, uma prática dialética de reflexão geográfica sobre dinâmicas sociais, marcada pela tensão entre o espaço físico e os fenômenos humanos. Isso porque se considera, no limite, a possibilidade de aquele ser ressignificado por conta, por exemplo, do sentido geoestratégico presente em determinados processos sociais que ocorrem sobre ele, ao mesmo tempo que tais processos se estruturam e operam sob forte constrangimento das especificidades geográficas desse mesmo espaço.

    Os leitores mais atentos perceberão algumas semelhanças entre os tratamentos conferidos por Braudel ao espaço e ao tempo enquanto categorias conceitual-analíticas, cujo ponto central é a harmonização de elementos dissonantes por meio de um raciocínio dialético. Se, no caso do espaço, ele considerou uma relação de dupla determinação entre a geografia física e a humana, no caso do tempo, empreendeu a articulação entre a estruturação do evento e a mobilização da estrutura, através de seu método da multiplicidade de tempos históricos. Considerou que, para diferentes dinâmicas sociais, existem diferentes ritmos de passagem do tempo,²² onde implícita está a ideia de tempos de conceituação, ou seja, sobre um mesmo evento histórico incidem distintos processos sociais, cada qual exigindo específicos cortes temporais sem necessariamente haver relações harmônicas ou, mesmo, diretas entre elas. O mais correto a dizer é que tanto pela dimensão do espaço quanto do tempo, Braudel estruturou para ambas uma dialética e interdisciplinar forma de ver e pensar.

    O autor chegou a explorar alguns desses elementos de modo embrionário ao formular uma proposta historiográfica entre os anos 1940-45, denominada de geo-história,²³ quando buscou considerar não apenas os obstáculos do meio sobre as dinâmicas sociais em geral, como também a possibilidade de estas empreenderem alterações no espaço acessível, em razão da superação de barreiras geográficas. Esses são os casos, por exemplo, das chamadas revoluções geográficas, quando se amplia o alcance de algumas sociedades, articulando-as a outros espaços concretos antes dispersos. Ao fim e ao cabo, ressignifica-se o conjunto de tabuleiros geográficos por conta das transformações que a ultrapassagem de entraves ocasiona sobre os movimentos humanos.²⁴

    Se os trabalhos de Fernand Braudel ajudam a delimitar um princípio teórico, o de imperativo geográfico (inspirado na ideia de coerção geográfica), associado a um raciocínio dinâmico (geografia fundamental) e a uma prática historiográfica imbricada de modo contraditório com a geografia (geo-história), são as pesquisas de Jean Gottmann que contribuem para a reflexão de um segundo passo teórico: o de transformação de espaços geográficos em territórios.

    Para ele, há uma dificuldade de se definir conceitualmente território. Isto porque, em geral, supõe-se ser um atributo por si só evidente das instituições governamentais estabelecidas. (Gottmann, 1975, p. 524). Porém, como para o autor isso é insuficiente e, portanto, não resolve, propôs a concepção de que todo território constitui uma porção do espaço concreto, acessível às atividades dos seres humanos e por eles delimitado, repartido e diversificado, cuja organização, uso e exploração, inclusive econômica, se dão necessariamente por regulares intervenções políticas. Em suas palavras, Território é um conceito político e geográfico, porque o espaço geográfico é tanto compartimento quanto organizado através de processos políticos. (Gottmann, 1975, p. 526).

    Existe, portanto, uma dimensão arbitrária, não espontânea, tampouco natural, ao se recortar de alguma forma um espaço e estabelecer ali um modo específico de vida para determinado agrupamento social, inclusive do ponto de vista econômico.

    De acordo com os interesses deste livro, observam-se alguns aspectos daí decorrentes. Em primeiro lugar, a forma como Gottmann definiu seu conceito de território tornou-o flexível o suficiente para sua utilização em diferentes tempos históricos, uma vez que o condicionou aos espaços acessíveis ao ser humano. Como essa acessibilidade muda, em geral se amplia por conta do desenvolvimento técnico, os espaços passíveis de intervenção regular tendem a aumentar com o tempo. De tal modo, não fazia sentido falar, por exemplo, de espaço aéreo nacional antes da Primeira Guerra Mundial. Porém, com o advento dos aviões e seu desenvolvimento para uso militar, esse espaço se articulou ao conceito de território dos Estados nacionais característicos do século XX.

    Não é difícil perceber também que há aqui um diálogo entre o conceito de território de Gottmann e a geo-história de Braudel, uma vez que ambos trabalham direta ou indiretamente com a ideia de acessibilidade, de ampliação da fronteira da ação humana no espaço.

    Em segundo lugar, o conceito de território de Gottmann sugere implicitamente algo de extraordinária importância aos interesses deste livro: a precedência lógica da dimensão política em relação à vida econômica dentro de um território. Isto porque não há atividade econômica que ocorra à revelia de um espaço geográfico organizado e que não seja estruturada a partir dele por meio de processos políticos regulares. Isso fica evidente quando se pensa na relação entre os diferentes tipos de atividades econômicas e suas relações com o espaço geográfico. No caso das atividades ligadas à produção de bens em geral, sua localização se dá em algum espaço concreto; as atividades de comércio, por sua vez, implicam o deslocamento de produtos e serviços, envolvendo rotas, passagens e, no limite, fronteiras; e por fim, no caso das atividades monetário-financeiras, suas instituições, operadores e mercados precisam se localizar em algum espaço, e suas transações dependem de alguma moeda de conta criada por uma autoridade central estabelecida territorialmente, como será visto adiante.

    Assim, se toda atividade econômica estabelece necessariamente uma relação com o espaço físico, este requer primeiro a intervenção política regular para sua ocupação, defesa, organização e uso, inclusive econômico. Eis aqui a noção de imperativo territorial, que define a precedência lógica do político sobre o econômico e o monetário, uma espécie de segundo estrato da proposta analítica em sugestão.

    A respeito dessa segunda camada, cabe uma observação importante. Apesar de tratar de outras questões e abordar outros temas relacionados à economia e seu lugar na sociedade, Karl Polanyi já havia realizado um movimento analítico semelhante: partiu do espaço concreto e de suas relações com as experiências humanas para desenvolver uma crítica, com base no seu conceito de economia substantiva, ao tratamento convencional do que chamou de economia formal e, mesmo, à própria maneira como o campo disciplinar da economia se organiza.

    Para o autor, a questão da subsistência passa pelo fato de que as sociedades não podem existir sem um meio físico que as sustente, em razão da própria dependência do ser humano em relação à natureza, algo muito similar ao que denominamos de imperativo geográfico, sendo função da economia substantiva o suprimento de recursos materiais para as sociedades em geral. Com base nisso, o autor analisou algumas formas de interação institucionalizada dos seres humanos com o meio natural, levando em consideração sociedades tribais, arcaicas e modernas.²⁵

    Desse modo, para repensar a economia e reinseri-la na sociedade, Polanyi pôs ao centro de sua reflexão o meio físico (o espaço geográfico concreto), o que o permitiu pensar a questão da subsistência a partir de lentes mais interdisciplinares, quando comparada com a da ciência econômica tradicional, sem cometer as mesmas simplificações e inconsistências comuns a esta. Apontou como erro principal o que chamou de falácia economicista, ao afirmar:

    Reduzir o âmbito do econômico especificamente aos fenômenos de mercado é eliminar a maior parte da história humana. Em contrapartida, ampliar o conceito de mercado para fazê-lo abarcar todos os fenômenos econômicos é atribuir a todas as questões econômicas as características peculiares que acompanham um fenômeno específico. (Polanyi, 2012, p. 48).

    Voltando a Jean Gottmann, há ainda um terceiro e último aspecto relativo ao seu conceito de território, digno de nota. De um ponto de vista histórico, o autor se perguntou quais teriam sido os motivos que levaram a constituição e desenvolvimento de territórios. Considerou, por um lado, as necessidades de defesa de um agrupamento social em face das ameaças externas e, por outro, o aproveitamento de oportunidades econômicas.²⁶

    No entanto, o que o autor deixou de explorar foi o fato de que, se (i) ameaça externa é a razão principal para a criação de territórios e se (ii) estes se expandiram de modo contínuo, a ponto de formar uma geografia política global marcada pela contiguidade entre as unidades político-territoriais sobre praticamente toda a superfície terrestre do planeta, poderia deduzir a partir daí a força e a centralidade que a pressão competitiva ou o estado permanente de tensão e preparação contra ameaças externas detém sobre a vida humana. Algo percebido há tempos, por exemplo, por Maquiavel no início do século XVI.

    Antes de abrir um diálogo direto com algumas proposições do famoso pensador florentino, estruturantes para a pesquisa deste livro, cabe observar que não foram poucos os autores que, de um modo ou de outro, em diferentes tempos e espaços, e com importantes distinções entre si, consideraram como elemento basilar de suas análises as lutas de poder e a pressão competitiva entre unidades político-territoriais. Em outras palavras, autores que partiram, de um modo ou de outro, do problema da ameaça externa e da guerra para pensar o sistema internacional, embora possa haver diferenças não desprezíveis entre eles e com a que está em proposição neste livro.

    Sem nenhuma pretensão exaustiva, apenas para ilustrar de algum modo a diversidade de aproximações, menciona-se, primeiramente, Thomas Hobbes. Em seu clássico livro Leviatã, de 1651, o autor empreendeu uma espécie de individualismo metodológico, identificando na natureza do ser humano uma insegurança estrutural, ligada a uma percepção de ameaça recíproca entre indivíduos, cujo resultado natural, movido pelo objetivo de preservação da própria vida, é uma racionalidade em que nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação. (Hobbes, 1651, p. 75). Partindo dessa condição natural e não havendo um poder maior e comum capaz de manter os indivíduos em respeito, o resultado é um contexto, no limite, de guerra de todos contra todos. A passagem analítica do nível do indivíduo para a esfera internacional, o autor a fez de modo direto, alcançando, com efeito, o mesmo entendimento sobre o papel decisivo da percepção de ameaça recíproca num sistema formado por pessoas dotadas de autoridade soberana. (Ibid., p. 77). Logo, a guerra aparece como resultado natural do sistema interestatal, caracterizado sobretudo por sua dimensão anárquica.

    No quadro das interpretações históricas acerca do sistema internacional, muitos foram os autores que partiram das lutas de poder e da pressão competitiva entre autoridades centrais para compreender as origens dos Estados e do sistema internacional, como também sua dinâmica ao longo dos séculos. Por exemplo, Norbert Elias, em seu livro O processo civilizador, de 1939, interpretou a sociogênese do Estados europeus, no contexto do Medievo, a partir do que denominou de guerras de eliminação entre autoridades centrais, estruturada justamente com base numa visão hobbesiana, em que a mera preservação da existência social exige (...) uma expansão constante. (Elias, 1939, p. 134).

    Paul Kennedy, em seu livro A ascensão e queda das grandes potências, de 1989, empreendeu uma análise histórica sobre as lutas de poder no núcleo central das grandes potências do século XVI até o final do século XX. Introduziu a dimensão econômica por meio do desafio relativo ao financiamento da guerra, alcançando ao final um olhar interdisciplinar da dinâmica do sistema ao longo do tempo.

    Henry Kissinger, por sua vez, em seu livro Diplomacia, publicado em 1994, embora, por vezes, com um excessivo e problemático viés anglo-saxão, desenvolveu uma pesquisa histórica baseada em ricas fontes primárias, que lhe permitiram ressignificações, estruturadas nas rivalidades entre as principais potências. Procurou recortar o tempo a partir de conjunturas marcadas por fortes alterações nas correlações de forças para analisar, a partir daí, os impulsos dinâmicos do sistema internacional ao longo da história.

    Por fim, menciona-se José Luís Fiori (2004, 2007 e 2014), que empreendeu uma argumentação distinta e original ao propor, como ponto de partida, (...) uma teoria do poder e da acumulação de poder (…) (Fiori, 2014, p. 16), buscando uma reflexão mais abstrata e conceitual. Sua passagem do campo teórico para o histórico deu-se em bases temporais ainda mais expandidas, ao não restringir suas reflexões ao quadro temporal do sistema internacional e de suas origens medievais, mas, sim, aos parâmetros da história humana, mais precisamente da passagem do nomadismo para o sedentarismo, até o presente. De seu movimento analítico de uma teoria do poder para a reflexão histórica derivou também uma proposta de articulação com a dimensão econômica, ou seja, do poder com o capital e a acumulação de capital. (Ibid., p. 16).

    Enfim, seria possível continuar mencionando uma diversidade de outros autores que, de algum modo, desenvolveram reflexões e estudos estruturados com base na ameaça externa, nas lutas de poder e no desafio da guerra como elementos para pensar o sistema internacional e sua dinâmica histórica. No entanto, para não seguirmos nos arriscando em fugas excessivas em relação à construção teórica em proposição, voltemos a Maquiavel, cujo conceito de virtù nos permite avançar sobre temas econômico-monetários a partir de uma reflexão geoestratégica relativa às lutas de poder.

    GEOPOLÍTICA E TERRITÓRIOS ECONÔMICOS

    Como discutido em outra oportunidade,²⁷ Nicolau Maquiavel, em O Príncipe, estruturou sua análise a partir do problema da conquista, estabelecendo-a como critério para inclusive organizar os principados de seu tempo. Algo exposto no próprio título do primeiro capítulo: De quantas espécies são os principados e dos modos de conquistá-los.²⁸ Refletiu sobre suas vulnerabilidades em face das ameaças externas e, dadas as diferenças entre principados, afirmou que não seria possível haver proporcionalidade entre eles, não existindo, com efeito, harmonia razoável que garantisse a paz.²⁹ Assim, tratou a questão da guerra de modo cético, como uma verdade efetiva da vida, como uma perene preocupação de todo principado sob risco de devastação ou servidão³⁰ e, dessa forma, concluiu que as lutas de poder são um resultado crônico na história humana.

    No entanto, o mais importante é perceber que, embora todos os príncipes respondam ao mesmo problema, este se coloca de modo distinto para cada um. Com efeito, as respostas a ele não são evidentemente semelhantes. Como se trata de uma dinâmica que se repõe de tempos em tempos, as ações de uma mesma autoridade central diante das ameaças externas também sofrem adequações e mudanças com o passar dos anos e das guerras. Ademais, além de diferentes, as respostas tendem a ser antagônicas, já que envolvem um mesmo tabuleiro geográfico percebido a partir de distintas posições relativas num contexto de rivalidades e ameaças recíprocas.

    Como resultado, o que se produz é uma permanente necessidade de reflexão geoestratégica, ou seja: diante dos desafios relacionados às ameaças externas ou às conspirações contra a ordem interna, tudo o que tem relevância ao enfrentamento dessa situação ganha conotação estratégica enquanto saber, conhecimento e prática do príncipe. De nosso ponto de vista, esta é a essência do conceito de virtù de Maquiavel.³¹

    Interessante notar que, para precisar tal conceito, o autor falou também daquilo que está fora, que é externo, ao campo da virtù, o que não está ao alcance da ação do príncipe, embora também incida sobre as lutas de poder. Dessa maneira, em oposição à virtù, definiu o conceito de fortuna.

    Nesse contexto, a geografia aparece simultaneamente no campo da fortuna enquanto uma geografia física, e também no da virtù, efetivamente como uma geografia fundamental, uma geografia da ação, como uma geopolítica de outrora, pois foi inserida como objeto da própria virtù. Não por outra razão, o conhecimento geográfico adquire caráter estratégico, transformando-se num exercício contínuo e necessário ao príncipe.³² No que diz respeito à articulação entre a geografia física e a humana, pode soar estranho, mas não estaria errado identificar alguns diálogos entre as abordagens geográficas de Maquiavel e a de Braudel.

    Portanto, o conhecimento dos mais diversos aspectos que caracterizam o espaço geográfico é imprescindível à prática da defesa, da segurança e da conquista.³³ Algo intensificado sobremaneira num sistema internacional cuja geografia política é marcada pela contiguidade, sobre todo o globo. Neste caso, tende a haver um aumento da pressão competitiva e, também, a formação de antagonismos geoestratégicos de difícil conciliação, permeada por uma dinâmica relativa, no limite, de soma zero.

    Está correto Camille Vallaux ao concluir que não se registra transformação tão profunda nem tão rica em consequências, na história do globo, como o advento da contiguidade sem interrupção dos Estados (apud Arroyo, 2004, p. 56). E, como discutido em outra oportunidade,³⁴ a consolidação de uma geografia política marcada pela contiguidade na península italiana no século XV esteve na origem do processo de formação do sistema de equilíbrio de poder inventado pelos italianos, que depois se europeizou, e ao qual estiveram associados tanto a criação da diplomacia moderna como a conhecemos hoje, quanto o exercício crescente do pragmatismo como princípio de orientação estratégica.

    Em resumo, eis aqui o terceiro estrato do esquema analítico em proposição, o da geopolítica, relativo aos conceitos de virtù e fortuna de Maquiavel, que define uma permanente pressão competitiva entre as unidades político-territoriais e a necessidade de uma contínua reflexão e ação geoestratégica por parte de suas autoridades centrais.

    Porém, dentro desse quadro, a agenda de desafios dos príncipes é um pouco mais complexa. Diante de tais reptos, há ainda um outro problema de natureza distinta: a capacidade de defesa e conquista ou de preservação da ordem interna que convém, diante de ameaças em geral, depende do provimento regular de recursos materiais e humanos ligados direta e indiretamente ao exercício do poder, envolvendo, estruturalmente, o desenvolvimento de forças produtivas e militares necessárias a tais desafios. Sem isso, não é possível defender um território e, no limite, garantir a existência social de determinada coletividade. Algo percebido já na origem do sistema internacional pelos mercantilistas, formuladores de políticas estratégicas voltadas ao aumento dos recursos materiais e da riqueza de uma autoridade central em face ao problema da ameaça externa.³⁵

    Como destacado na epígrafe da primeira parte deste livro, o próprio Maquiavel estivera em consonância com os primeiros rascunhos mercantilistas de seu tempo, quando escreveu, em 1503, o Discurso sobre a maneira de prover-se de dinheiro.³⁶

    Em sentido mais geral, trata-se efetivamente de situar o econômico no campo da virtù, enquanto saber estratégico em relação ao problema da guerra, onde o segredo é tornar-se capaz de desenvolver e prover, de forma mais acelerada do que seus adversários, os recursos materiais, técnicos e humanos necessários ao exercício da preservação e defesa. Nessa perspectiva, a reflexão acaba por envolver diferentes formas violentas ou não, que vão desde a pilhagem, o saqueio, a exploração de outras áreas e atores, ao desenvolvimento de forças produtivas em setores estratégicos, o domínio de rotas e passagens à circulação, a garantia de acesso a fontes de recursos naturais e a mercados, como também a criação de mecanismos monetário-financeiros de alavancagem do grau de endividamento e gasto da autoridade central. No limite, busca-se a montagem de sistemas econômicos internacionais assimétricos e hierarquizados, estruturados em uma divisão do trabalho que permita uma apropriação distorcida da riqueza e dos recursos produzidos em âmbito internacional. Isso se relaciona também com as ordens monetárias e financeiras internacionais, nas quais a diplomacia monetária é a iniciativa estratégica por excelência, conforme será discutido.

    Portanto, não se trata de um pensar econômico que se desenvolve à revelia das lutas de poder, mas de um econômico que deriva diretamente da agenda de prioridades dessas lutas e que, portanto, responde às suas demandas e necessidades. Vale dizer, um saber que não é externo tampouco estranho às guerras, mas constitutivo e, no limite, subordinado a elas.

    Atenção porque, como tal dinâmica ocorre num contexto de competição entre diferentes rivais, a lógica econômica não se restringe apenas a se expandir, industrializar e modernizar, mas, ao longo desse processo, monopolizar as tecnologias sensíveis e as oportunidades para uma acumulação mais acelerada de riqueza e capital. Há um sentido relativo e sistêmico. Em outras palavras, o segredo da expansão de riqueza nacional está em dominar, por meio dos mais diversos instrumentos, as zonas de acumulação acelerada de riqueza em escala nacional e internacional, vetar ali a participação de seus rivais, desenvolver internamente forças produtivas próprias e buscar mitigar as vulnerabilidades ligadas às garantias de acesso e abastecimento de recursos e mercados em geral.³⁷

    Uma ressignificação do conceito de território econômico, de Rudolph Hilferding, ajuda a encaminhar o argumento aqui em proposição. No livro O Capital Financeiro, de 1910, o autor partiu da anatomia da grande corporação do início do século XX, sobretudo no que se refere à sua organização enquanto sociedade anônima. Buscava mostrar como se articulam suas dimensões produtiva e financeira, associadas aos processos de concentração e centralização do capital sob auspícios das altas finanças. E para compreender a força expansiva da grande corporação característica da segunda revolução industrial, sua capacidade de acumulação acelerada de capital, Hilferding desenvolveu um raro raciocínio efetivamente geográfico, uma reflexão de fato geoeconômica. Percebeu que as disputas intercapitalistas não ocorrem por meio do mercado, mas, sim, pela superação da livre concorrência a partir da construção, defesa e expansão permanente de territórios econômicos, ou seja, espaços geográficos os mais amplos possíveis, cuja organização, uso e exploração econômica se estruturam com base em posições privilegiadas, no limite, monopolizadas. Isso porque, além da eliminação da concorrência, extensos territórios privilegiados permitem ganhos em termos de complementaridade e eficiência, em decorrência do aumento da escala de produção, do maior controle sobre fontes de matérias-primas, acesso mais fácil aos centros consumidores e aos recursos naturais, e o aprofundamento da divisão do trabalho nas indústrias e na economia.

    Não é difícil perceber, com a ajuda de Gottmann, que a construção de territórios econômicos depende de intervenções políticas regulares, ou melhor, do exercício do poder do estado, que conquiste, recorte, organize, defenda e expanda um território econômico. Por isso, para o autor, Quanto maior o território econômico e maior o poder do Estado, tanto mais privilegiada a posição do capital nacional no mercado internacional. (Hilferding, 1910, p. 311).

    Assim, ao pensar a lógica da acumulação acelerada de capital com base numa perspectiva geográfica e num conceito territorializado, Hilferding conseguiu algo muito raro: articular de forma dinâmica tanto a competição intercapitalista global, de um lado, quanto as disputas interestatais, de outro. Isso porque, em seu esquema, o raciocínio espacializado (geográfico) possibilitou ao autor identificar uma contradição crônica derivada das leis de movimento dos capitais. Em suas palavras,

    Enquanto, por um lado, a generalização do sistema protecionista aspira desmembrar progressivamente o mercado mundial em territórios econômicos individuais separados por Estados, a evolução para o capital financeiro eleva a importância da magnitude do espaço econômico. (Hilferding, 1910, p. 17).

    Ou seja, para o autor, a expansão do capital depende da ampliação permanente de seu território econômico, o que implica necessariamente sua projeção sobre outros territórios econômicos, já que o espaço geográfico mundial é finito, conformando, no limite, a dinâmica de um jogo de soma zero. Ainda segundo o próprio Hilferding, como os territórios econômicos são construções políticas de posições privilegiadas que dependem fundamentalmente de um Estado forte, a lógica da acumulação de capital produz uma necessidade contínua de expansão relativa do poder do seu respectivo Estado, de modo a que este possa criar, defender e ampliar seu próprio território econômico, contra outros Estados e territórios econômicos.

    Com efeito, Hilferding conseguiu evitar cair na armadilha do raciocínio estruturado em molduras políticas estáticas dentro das quais se analisam as leis de reprodução ampliada do capital. Nesses casos, não por outra razão, as lutas de poder e as guerras aparecem como elementos externos à própria perspectiva analítica, utilizados conforme a conveniência da argumentação, procedimento metodológico comum em parte da heterodoxia econômica que, embora se preocupe em incorporar a dimensão geopolítica, o faz de modo ad hoc.

    Portanto, o que se tem, de um ponto de vista sistêmico e a partir do argumento de Hilferding, é uma perene dinâmica de acumulação de capital e poder que, de tempos em tempos, impele a uma saída interestatal violenta. Com efeito, as lutas entre Estados nacionais não são provenientes das obsessões irracionais daqueles que comandam as máquinas de guerra. O ideal [do Estado nacional] agora é assegurar para a própria nação o domínio do mundo, uma ambição tão ilimitada quanto a ambição do capital por conseguir lucro, que lhe dá origem. (Hilferding, 1985, p. 314).

    Trata-se de uma das poucas formulações dentro do campo marxista com possibilidades de incorporar reflexões genuinamente geopolíticas, sem se valer de hipóteses ad hoc e/ou fracas para mediar as relações entre os universos da acumulação de capital, de um lado, e das lutas de poder no âmbito das grandes potências, de outro. Também uma das raras formulações no campo da Economia Política Internacional capaz de pensar de modo articulado e dinâmico ambas as dimensões do sistema internacional em privilégio, a do poder e a da riqueza. E isso só foi possível na estrutura analítica de Hilferding porque este empreendeu um raciocínio geograficizado.

    É interessante notar que há uma forte convergência entre o conceito de território econômico, de Hilferding, e o de capitalismo, de Braudel. Isto porque este se define exatamente como o antimercado, como o bloqueio permanente da concorrência, por meio da criação, defesa e expansão de posições privilegiadas, no limite, monopolistas. Para tanto, são válidos os mais diversos meios e instrumentos de poder, fundamento último do arbítrio e, com efeito, do capitalismo braudeliano. Trata-se de uma abordagem que não se enquadra na ideia de falhas de mercado como tratado em geral pela literatura econômica, pois a acumulação acelerada de riqueza e capital se constitui em algo mais perene e com mais ponderosidade do que geralmente se supõe, sobretudo dentro do quadro de uma perspectiva temporal de mais longa duração.³⁸

    Em síntese, as formulações hilferdinianas ajudam a introduzir a lógica da acumulação de capital dentro de uma raciocínio geográfico, portanto, em uma prática efetivamente geoeconômica. No entanto, do nosso ponto de vista, ao contrário do autor, esta lógica deve partir das lutas de poder, e não da morfologia da grande corporação, de modo a se recolocar o problema como formulado pelos mercantilistas, relativo às estratégias e às práticas voltadas ao provimento dos recursos materiais e humanos, como também ao aperfeiçoamento permanente da arte e das condições materiais objetivas, necessários às lutas de poder.

    Nesse sentido, define-se o quarto estrato da perspectiva analítica em proposição, o da geoeconomia, associado, de um lado, ao conceito de virtù, em que o econômico é ressignificado e pensado como saber estratégico ligados às lutas de poder, como fizeram os mercantilista e neomercantilistas de outrora; e de outro, a uma releitura do conceito de território econômico de Hilferding, não mais a partir da morfologia da grande corporação, mas do problema da guerra.

    Portanto, a perspectiva geográfica subjacente aos conceitos de território de Gottmann e território econômico de Hilferding ajudam a entender o porquê dessa dependência contínua da lógica de acumulação de riqueza às lutas de poder. Por um lado, não há atividade econômica que ocorra à revelia de um espaço geográfico organizado por processos políticos regulares, assim como não há acumulação acelerada de riqueza sem a conquista, a construção, a defesa e a expansão de posições privilegiadas territoriais por meio de ações do poder. Por outro lado, as autoridades centrais respondem a uma verdade efetiva relativa à pressão competitiva entre unidades político-territoriais, nas quais o econômico é ressignificado enquanto saber, tornando-se impregnado de raciocínio geográfico e estratégico. E ao situá-lo no campo da virtù, percebe-se que, embora os desafios em si sejam os mesmos para diversas das autoridades centrais, as iniciativas geoeconômicas são distintas entre autoridades centrais. E isso se deve, dentre outras razões, por causa das características geográficas de cada unidade político-territorial e de seus respectivos territórios econômicos, do nível de desenvolvimento das forças produtivas nacionais, do tipo de inserção no sistema internacional etc. Com efeito, a geoestratégia econômica de cada unidade político-territorial deve levar em conta as caraterísticas próprias de modo a lidar com os mais diversos desafios relativos à segurança energética, segurança alimentar, garantia de acesso a recursos naturais, a mercados consumidores, desenvolvimento tecnológico sensível e de ponta, tipo de inserção na divisão internacional do trabalho, tendência estrutural ou não ao endividamento externo, dentre tantos outros.

    VIRTÙ E TERRITÓRIO MONETÁRIO³⁹

    Se, de fato, é correto pensar a partir de uma perspectiva geopolítica, o esforço regular de preparação para a guerra requer a organização de um sistema tributário de pagamentos monetários que viabilize, num espaço concreto e acessível, a estruturação da vida econômica, o provimento regular de recursos materiais e humanos à autoridade central, a alavancagem de sua capacidade de financiamento e gasto e, no limite, o próprio desenvolvimento de forças produtivas e militares associadas a tal esforço. É nesse contexto que devem ser pensados o mecanismo da tributação e sua monetização.⁴⁰

    Assim, a moeda nada mais é do que a contrapartida da tributação, ou seja, o instrumento utilizado pela autoridade central para realizar seus gastos e aceito por ela para liquidação de dívidas tributárias, como definido em Knapp (1905, p. 95). A capacidade de declarar (impor) a condição de devedor (de tributo) à coletividade sobre a qual exerce dominação é o que garante à autoridade central o privilégio exclusivo de anunciar como tais obrigações devem ser liquidadas. Apenas a autoridade central, cuja legitimidade dentro de um espaço geográfico se assenta no domínio dos mecanismos de violência, tem a faculdade de criar uma unidade de conta (noção mais elementar de qualquer moeda), definir o meio de troca e garantir o reconhecimento social de ambos.⁴¹ Com efeito, toda unidade monetária é uma denominação abstrata e arbitrária – depende de um poder que a escreva e a proclame.⁴²

    Como resultado, para pesquisa sobre temas monetários, redefine-se a informação histórica relevante. Atribui-se centralidade à unidade monetária (moeda de conta) utilizada para expressar valores em acordos internacionais dos mais diversos; para registro de relações de dívida entre países; e para precificar mercadorias estratégicas. Este é um dos ingredientes que percorrem todas as análises históricas e contemporâneas do livro e, decerto, o aspecto mais importante do ponto de vista do método de pesquisa em proposição. De tal modo, as informações históricas relativas ao meio de troca (se moeda metálica, papel moeda etc. etc.) adquirem importância secundária em detrimento da moeda de conta.⁴³

    Cabe notar que, para a maior parte da literatura especializada, a moeda surgiu como um instrumento facilitador das trocas, em detrimento das relações de escambo. Interpreta-se a criação da moeda como diretamente associada ao próprio desenvolvimento dos mercados, mormente quando da escolha de uma mercadoria como meio de troca geral. Sua figura física teria passado a ser a própria expressão de valor de todos os demais bens e serviços. Por isso, na perspectiva convencional, o conceito de moeda é definido em torno de algo que tem existência material. Por essa razão, de acordo com tal interpretação, as moedas-mercadorias tornaram-se a evidência relevante e o principal objeto de investigação e pesquisa histórica (a fonte primária por excelência).⁴⁴ Trata-se de uma abordagem muito diferente da que está em proposição neste livro.

    Voltando à perspectiva em privilégio, algumas das vantagens elementares em se monetizar a vida econômica dentro de um território são: como contrapartida da tributação, a moeda torna mais eficiente o processo de extorsão dos recursos materiais e humanos; alavanca a capacidade de financiamento e gasto da autoridade central; dá o elemento integrador das mais diferentes atividades econômicas – a moeda de conta; permite o surgimento dos mercados, o aprofundamento da divisão do trabalho e, com efeito, ganhos de produtividade em escala bastante significativa quando comparada a contextos em que não há moeda; viabiliza o desenvolvimento de diferentes outros instrumentos de crédito e, no limite, de mercados financeiros, assentados forçosamente no sistema tributário de pagamentos, em cujo centro está a moeda de conta proclamada pela autoridade central; dentre outras vantagens.⁴⁵

    De acordo com os propósitos deste livro, é importante notar que se trata de um conceito de moeda associado diretamente à dimensão do poder, por um lado, e com referência geográfica e territorial, por outro. Isto porque os limites territoriais de validade e circulação de uma moeda estão ligados diretamente ao alcance dos mecanismos de tributação ou, mais adequadamente, ao espaço de efetivo exercício da violência da autoridade central. Portanto, como não há tributação sem poder de punição, não existe moeda sem a monopolização dos instrumentos de coerção.

    Pode-se falar, então, de território monetário derivado de processos sociais relacionados ao fortalecimento e à expansão de uma autoridade central. De tal modo, se supusermos que essas autoridades centrais atuam a partir de desafios geopolíticos e/ou geoeconômicos, a forma que assume a organização monetária de seus territórios responderá às características desses desafios e das geoestratégias envolvidas. Esta, decerto, é uma das proposições estruturantes da pesquisa deste livro.

    Não são poucas nem pequenas as vantagens em se expandir o território monetário, ou seja, o espaço de validade e circulação de uma moeda para além das fronteiras político-nacionais de origem. Primeiro, à medida que mais unidades político-territoriais passam a operar com base em uma outra moeda específica em suas transações com o exterior, a autoridade central emissora dessa moeda expansiva alavanca sua capacidade de financiamento e gasto, uma vez que os demais são obrigados a acumular ativos líquidos denominados na referida moeda (sobretudo papel moeda e títulos de dívida pública) em proporção suficiente para lidar com suas obrigações com o exterior. Havendo mercados de câmbio, o próprio grau de autonomia da política cambial dos países dependerá diretamente de seus respectivos estoques de reservas acumuladas na moeda expansiva.

    Segundo, havendo fluxos financeiros internacionais, parte desses saldos acumulados tende a ser drenada aos sistemas financeiros dos países que operam internamente com base na moeda expansiva – destaque para o sistema do país emissor da moeda internacional. Assim, quanto mais agentes operarem em um território monetário específico, maiores tendem a ser a escala, profundidade e liquidez do sistema financeiro desse espaço nacional. Daí decorrem hierarquias e assimetrias favoráveis às instituições financeiras do país cuja moeda se impõe como a de referência internacional.

    Nesse sentido, não são as inovações de uma praça financeira que estimulam a captação de recursos e, com efeito, o maior uso de sua moeda em transações internacionais, como em geral se supõe. Ao contrário, seria a internacionalização bem-sucedida da moeda, pelos mecanismos descritos a seguir, que garante o influxo de recursos para o sistema financeiro localizado no interior do território político de origem da autoridade central cuja moeda se internacionalizou, alavancando, por conseguinte, seu grau de profundidade, escala e sofisticação.

    Terceiro, a consolidação de um território monetário global implica logicamente a imposição do problema da restrição externa aos países em geral. Isso porque suas capacidades de importação passam a estar condicionadas às possibilidades de se auferir a moeda de referência internacional. Para esses países, a liquidação de suas necessidades e obrigações com o exterior não pode ocorrer com base em suas moedas. Não por outra razão, o volume das reservas internacionais em seus respectivos bancos centrais adquire importância estratégica. O mais grave, no caso, é que toda iniciativa de desenvolvimento econômico, modernização e transformação das forças produtivas e/ou militares acarreta o crescimento significativo da pauta e do seu volume de importações, mesmo quando os objetivos estão voltados à própria substituição de importações. Por isso, o principal desafio passa a ser dinamizar as exportações de bens e serviços, para não depender do endividamento externo como forma de contornar a escassez de divisas, via investimento direto estrangeiro, investimento em carteira ou empréstimos e financiamentos internacionais.

    Tudo isso coloca o emissor da moeda de referência internacional numa posição bastante confortável e privilegiada, não só porque não padece do problema da restrição externa, como também porque pode influenciar a capacidade de importação dos demais países por meio do controle de importantes canais de administração da liquidez internacional, moldando, no limite, os próprios padrões de desenvolvimento e as trajetórias econômicas nacionais.

    Assim, se a agenda geopolítica se impuser, a diplomacia monetária será utilizada aos propósitos da política externa, buscando restringir as oportunidades de seus inimigos estratégicos do momento pelos mais diversos tipos de sanções econômicas e, simultaneamente, aliviar as dos aliados da ocasião. Há, portanto, uma conexão direta entre geopolítica, política externa e diplomacia monetária.

    Atenção porque, como nos ensinou Maria da Conceição Tavares, a moeda internacional é, ao mesmo tempo, um instrumento de violência, pelas vantagens descritas, como também uma posição em disputa entre as principais unidades político-territoriais do sistema. Por essa razão, as disputas monetárias adquirem importante status na competição entre as grandes potências, sobretudo pelo fato de que a projeção bem-sucedida de determinada moeda significa tanto um veto a outras iniciativas semelhantes, quanto a imposição e a generalização do problema da restrição externa aos demais. Portanto, assim como nas lutas de poder, as disputas monetárias assumem a forma de um jogo sistêmico de posições relativas, no limite, de soma zero, em que a ascensão de um representa a queda de outros.

    É evidente que, no território político de determinada autoridade central, o controle sobre os instrumentos de coerção e violência – e, também, de tributação – é o meio através do qual se proclama e impõe tanto uma moeda de conta quanto um meio de pagamento socialmente reconhecidos. No entanto, para além das fronteiras desse território, como não há a presença de uma única autoridade central que se estabeleça sobre todo o sistema, como uma espécie de leviatã global, não se observa o mesmo mecanismo de instituição de uma específica moeda via os clássicos mecanismos de tributação. De todo modo, o que alguns autores insistem em não perceber é que a inexistência de um leviatã global não elimina o fato de o sistema internacional ser profundamente hierarquizado e desigual. E essas assimetrias, querendo ou não, moldam as feições da economia internacional, inclusive as monetárias e financeiras.

    Portanto, a ideia em proposição é que a internacionalização de uma moeda nacional também constitui um processo de natureza política, derivado das disputas entre as unidades que compõem o sistema, principalmente entre as que estão no núcleo central das grandes potências, unidades político-territoriais com maior capacidade de iniciativa estratégica em temas sensíveis das relações internacionais – dentre eles, o monetário.

    Assim, se moeda é uma criação do poder e um instrumento de suas lutas, sua internacionalização, por sua vez, depende diretamente da capacidade de projeção internacional da autoridade central que a criou. O conceito de moeda expansiva, como dito em outra oportunidade, trata justamente deste anseio de alcançar tal posição.⁴⁶

    Em resumo, se por um lado, não há dúvidas quanto ao caráter anárquico e hierarquizado do sistema internacional, por outro, a expansão do espaço de circulação de uma moeda para além de suas fronteiras nacionais não deixa de ser o resultado de correlações de forças e lutas de poder entre as mais poderosas unidades político-territoriais que compõem tal sistema. O que muda são os instrumentos e estratégias através das quais tal processo se efetiva, quando se compara ao processo de formação de um espaço monetário nacional específico.

    Avançando no argumento, a análise dos meios através dos quais uma moeda nacional se expande determina grande parte da investigação e pesquisa histórica deste livro, mais precisamente as relativas: à experiência inglesa de internacionalização de sua moeda nacional e de seu esforço em defesa da posição da libra na hierarquia monetária internacional; ao caso estadunidense de projeção do dólar e sua diplomacia monetária até o presente; e por fim, ao atual esforço de alguns países, China e Rússia principalmente, para a desdolarização do sistema internacional.

    Em primeiro lugar, têm-se as conquistas territoriais, rotas comerciais, construções de sistemas coloniais e outras formas de expansão do espaço de dominação direta. Nesse caso, ocorre uma ampliação do alcance da tributação, assim como a possibilidade de (re)estruturação da vida econômica dos espaços tomados de modo a se instituir ali necessidades de importação e financiamento na moeda expansiva, associadas muitas vezes à imposição do exclusivismo comercial metropolitano.⁴⁷

    Em segundo lugar, há a construção de relações econômicas hierarquizadas e assimétricas entre diferentes autoridades centrais, provenientes de negociações de acordos desiguais de natureza comercial, financeira ou de investimento, ligados muitas vezes, mas não apenas, a contextos de guerras. Não por outra razão, esse processo está relacionado, em muitos casos, à imposição de algum tipo de inserção periférica na divisão internacional do trabalho às autoridades centrais derrotadas nas guerras ou com desvantagens nas lutas de poder. Em algumas situações, há a definição de uma moeda específica como a de referência, cuja escolha reflete justamente as relações de forças e poder entre as autoridades centrais envolvidas. Em outras, ocorre o acúmulo de desequilíbrios estruturais nas contas externas das autoridades centrais desfavorecidas nas negociações, derivadas do tipo de inserção econômica na divisão internacional do trabalho à qual foi submetida, cuja solução envolve o recurso ao endividamento na moeda expansiva.⁴⁸

    Em terceiro lugar, pode-se falar da dominação dos espaços estratégicos e das zonas de acumulação acelerada de riqueza, característicos de cada período histórico, como, por exemplo, rotas comerciais, mercados consumidores, fontes de matérias-primas etc. Dominados tais espaços e zonas, os demais atores tornam-se compelidos a operar com base na moeda arbitrada pelo poder expansivo, pois, do contrário, estariam deles excluídos. Dependendo da importância estratégica de tais espaços e zonas, seu domínio significa um veto às iniciativas de projeção de poder e riqueza dos demais.⁴⁹

    Em síntese, para pesquisa em assuntos monetários, redefine-se a informação histórica relevante. Atribui-se centralidade à moeda de conta nacional utilizada para: (i) monetizar tributos; (ii) expressar valores em acordos internacionais dos mais diversos; (iii) registrar relações de dívida entre países; e (iv) precificar mercadorias. Trata-se, com efeito, de um exercício de reinterpretação histórica, decorrente, em resumo, de uma redefinição do conceito de moeda. Por se colocar o poder ao seu centro, inclusive para determinação de seu espaço de validade e circulação, torna-se necessário interpretar os dilemas, desafios e dinâmicas a que estão submetidas as unidades de poder que formam o sistema internacional (os Estados nacionais) para, assim, entender a racionalidade de suas ações e, com efeito, os acontecimentos relativos ao sistema monetário internacional.

    Este é o quinto e último estrato da perspectiva analítica em proposição, o geomonetário, também concebido no campo da virtù e conectado aos conceitos de moeda expansiva e território monetário, a partir dos quais se estrutura a ideia de diplomacia monetária, ou seja, ações e estratégias de natureza política, implementadas pelas autoridades centrais, baseadas na utilização da moeda nacional como instrumento de defesa e projeção de seus interesses no âmbito das disputas e rivalidades interestatais que caracterizam o sistema internacional.

    RECAPITULAÇÃO E SÍNTESE

    À busca de uma amarração geral, apresentam-se alguns parágrafos que resumem o modo de ver e pensar aqui em sugestão. A égide da perspectiva em privilégio está no fato de se assumir a dimensão do espaço geográfico como categoria estruturante, que permeia toda a construção conceitual em proposição. Ela está presente no âmago do que se denomina de imperativo geográfico, fundamento do qual partem e de onde se deduzem as demais formulações, como o imperativo territorial e os conceitos de território econômico e território monetário.

    Essas formulações, abstratas e passíveis de generalização (imperativos geográfico e territorial, assim como territórios econômico e monetário), conectam-se entre si para formar o arcabouço analítico, pois foram construídas uma a partir da outra, por meio de uma hipótese analítica mediadora, assentada na ideia de virtù. Em outras palavras, tais formulações formam o que chamamos de estratos de conceituação, respectivamente, o geográfico, o geopolítico, o geoeconômico e o geomonetário. Todos constituindo um nível de análise específico e com correspondência a uma dinâmica social própria, vale dizer: desde as experiências humanas em geral (no caso do geográfico), passando pelas lutas de poder (nos casos do geopolítico), pela acumulação de capital (geoeconômico) e alcançando, por fim, de acordo com os interesses deste trabalho, a diplomacia monetária (geomonetário).⁵⁰

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