Relações Brasil Bolívia: A Construção de Vínculos
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Sobre este e-book
A Construção de Vínculos entre as duas nações foi, com altos e baixos, um fio condutor além do sucesso ou fracasso de uma ação ou de uma pessoa em particular, especialmente quando as diferenças abriram caminho para a visão de longo prazo, interesse comum e benefícios compartilhados, ou seja, uma visão estratégica.
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Pré-visualização do livro
Relações Brasil Bolívia - Walter Auad Sotomayor
Sumário
CAPA
INTRODUÇÃO
PRIMEIRA PARTE 1903-1940
Fim de um ciclo e início de outro
A guerra do Chaco
A paz do Chaco
Trem e Petróleo
SEGUNDA PARTE 1940-1960
A primeira visita
O Fim da Segunda Guerra Mundial
A revolução boliviana
O Trem
O Petróleo
Roboré
TERCEIRA PARTE 1961-1973
Jânio e Cuba
Os golpes de 1964
Eu não sou um Barrientos
Parêntese (1966-1971)
Uma solução rápida e satisfatória
Bolívia entre Argentina e Brasil
Quarta Parte 1974-1999
Os alemães
Presente de grego
Gás e política
Certificação
A inauguração
Bibliografia
ÍNDICE ONOMÁSTICO
SOBRE O AUTOR
SOBRE A OBRA
CONTRACAPA
Relações Brasil Bolívia
A Construção de Vínculos
Editora Appris Ltda.
1.ª Edição - Copyright© 2023 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.
Catalogação na Fonte
Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
Bibliotecária CRB 9/870
Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT
Editora e Livraria Appris Ltda.
Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês
Curitiba/PR – CEP: 80810-002
Tel. (41) 3156 - 4731
www.editoraappris.com.br
Printed in Brazil
Impresso no Brasil
Walter Auad Sotomayor
Relações Brasil Bolívia
A Construção de Vínculos
Para Tito, Max e Lia
Agradecimentos
Este livrou contou com a colaboração e o apoio de:
Isabel Tamayo Sotomayor
Jorge Fuad Auad Sotomayor
Teresa Auad
Paula Siles Joffré
Fanny Gutierrez
Alvaro Malaguti
Roberto Laserna
Gonzalo Mendieta Romero
Roberto Rosa
Paula Peña
Diego Mondaca
Benicio Schmidt
Mariza Veloso
Paulo dos Santos Motta
Eumano Silva
Manuel E. Contreras
Paulo Roberto Cimó Queiroz
Carlos Conde
Introdução
Este livro é resultado de uma pesquisa sobre as relações entre os governos do Brasil e da Bolívia.
O estudo do tema, por motivos metodológicos, foi dividido em dois processos históricos muito marcados que correspondem a suas características principais: o primeiro (de 1828 a 1903) diz respeito ao estabelecimento de relações diplomáticas e a definição de fronteiras, objeto de um primeiro livro¹ já publicado; e o segundo (de ١٩٠٣ a ١٩٩٩) aborda a construção de vínculos políticos, econômicos e sociais entre os dois países.
O primeiro livro teve como horizonte sócio-político a formação dos estados nacionais e como eixo central a definição de fronteiras e territórios, assim como a construção dos discursos de legitimação sobre os procedimentos adotados. Essa definição territorial teve lugar ao longo do século XIX e formalmente concluída em 1903 com a assinatura do Tratado de Petrópolis.
Esse primeiro período, chamado por um chanceler boliviano como estruturação geográfica², porque estabeleceu definições territoriais a partir da ideia de pátria e soberania, refletiu inúmeras controvérsias entre os países herdeiros dos impérios lusitano e espanhol no que diz respeito aos conceitos de domínio territorial, soberania e fronteira. O Brasil independente havia herdado um amplo território como consequência do avanço lusitano que chegou até os confins das terras ocupadas pelos herdeiros da Espanha no que hoje é a Bolívia.
Este segundo livro destaca a construção de vínculos institucionais entre Brasil e Bolívia em meio a uma conjuntura internacional na qual alguns vizinhos sul-americanos e os Estados Unidos também atuam como atores influentes. Retoma a pesquisa sobre os contatos estabelecidos entre as autoridades dos dois países nas primeiras décadas do século XX a partir das compensações pendentes do Tratado de Petrópolis (1903), instrumento jurídico que pôs fim ao Conflito do Acre.
O avanço brasileiro em territórios que os bolivianos consideravam como seus, herdados do império espanhol, havia provocado ressentimentos e certa desconfiança, e obstáculo adicional não explícito nos contatos oficiais, mas que, de tempos em tempos, atrapalhou as relações. Um sentimento de desconfiança análogo, mas muito mais explícito, marcou as relações entre a Bolívia e o Chile, após a derrota boliviana na Guerra do Pacífico (1879-1883) em que perdeu o acesso ao mar. Ao longo do século XIX, o Brasil e o Chile, em circunstancias históricas diferentes, viveram ciclos de expansionismo territorial.
A pesquisa para este livro exibe movimentos recíprocos de aproximação entre Bolívia e Brasil. Os gestos de amizade na construção de vínculos políticos ao longo do século XX foram entremeados pelo distanciamento causado seja pela desconfiança histórica dos bolivianos em relação à presença estrangeira em geral, seja pelo trauma da espoliação colonial de suas riquezas minerais, ou, ainda, por certo isolacionismo que caracterizou o Brasil, sempre temeroso da aliança das ex-colônias espanholas.
Esta é uma história inédita em sua abrangência, embora diferentes aspectos da relação brasileiro-boliviana já tenham sido abordados por historiadores e estudiosos dos dois países. É também nas suas intenções, uma vez que tem como fio condutor os entendimentos bilaterais e um fio condutor: o futuro comum inexorável definido pela própria localização geográfica.
Esta é uma história com intencionalidade ao apresentar uma sucessão de fatos e condutas orientadas que os diplomatas chamam de estreitamento de relações
, algo que não tem metas ou limites, mas pode ser claramente perceptível em escalas maiores de tempo.
Por isso mesmo, a criação de vínculos de todos os tipos entre dois governos obedece a outra ordem, não cronológica, mas de sentido ou tendência com a característica primordial de adensamento de contatos e de interesses recíprocos.
Um dos precursores brasileiros da reorientação do olhar para países vizinhos no século XX foi o chanceler Octavio Mangabeira, que se reuniu no Rio de Janeiro com seu colega boliviano Fabián Vaca Chávez para assinar o Tratado de Natal, um instrumento destinado a atualizar compromissos e perspectivas na relação bilateral.
Posteriormente, Getúlio Vargas foi protagonista da primeira ordem e não apenas pela longa permanência à frente do governo. Suas iniciativas foram bem recebidas por vários governantes bolivianos durante seu primeiro período de 1930 e 1945.
Quando chegou ao governo como líder da revolução de 1930, Vargas estava determinado a avançar no vasto território nacional, descrito como sertão ou deserto, pois o país havia se consolidado na costa e só existiam pequenos núcleos de povoamento a oeste cuja ocupação era preciso consolidar.
Essa determinação expressou a necessidade de desenvolver o interior e reduzir o desequilíbrio demográfico, ao mesmo tempo que tentava eliminar as desconfianças históricas geradas tanto pelo expansionismo territorial do passado lusitano e brasileiro, quanto pelas distâncias culturais herdadas do período colonial.
A Marcha para o Oeste proposta por Vargas, no início da década de 1940, com estímulos à migração interna para os estados de Goiás, Mato Grosso e Paraná, encontrou eco principalmente em uma Bolívia que via a possibilidade de respirar os ares do Atlântico.
Este relato inclui a Guerra do Chaco (1932-1935) entre a Bolívia e o Paraguai, porque foi um ponto de inflexão nas relações Brasil-Bolívia, exigindo uma participação mais ativa do Itamaraty, então sediado no Rio de Janeiro, na busca pela paz. Durante as negociações de paz, as tentações hegemônicas do então chanceler argentino, Carlos Saavedra Lamas, que presidiu o processo de negociação, foram confrontadas pelos Estados Unidos, Brasil e Chile.
Foi nessa conjuntura, que um grupo de diplomatas bolivianos operou com criatividade para tentar superar o que havia se tornado uma condição sufocante pela falta de alternativas.
O embaixador boliviano, Alberto Ostria Gutiérrez, ao apresentar suas credenciais no Rio de Janeiro em novembro de 1936, explicou objetivamente a Vargas o significado de sua missão: a construção de uma ferrovia entre os dois países, a venda de petróleo boliviano e, por último, a obtenção da garantia brasileira de preservação da integridade territorial boliviana, considerada à época ameaçada. Antes da assinatura do acordo de Paz do Chaco com Paraguai, o Brasil chegou a um entendimento com a Bolívia que foi a base da integração física e uma opção estratégica que mudou a história boliviana.
Germán Busch foi o homem-chave na decisão tanto de aprofundar a relação com o Brasil quanto de assinar um acordo de paz com o Paraguai em 1939, contrariando os militares em seu gabinete que insistiam em continuar o conflito.
Os bolivianos enfrentaram o desafio de ampliar as possibilidades em direção ao Atlântico e ao mesmo tempo integrar seu próprio território ao incorporar, com vias de comunicação, a região fronteiriça com o Brasil, que estava isolada por falta de estradas e pela auto identificação como país exclusivamente andino. A Bolívia, ao prometer amortizar o custo da construção da ferrovia com a venda de petróleo, tentava ao mesmo tempo diversificar uma economia sustentada até então, quase exclusivamente com a produção e a exportação de minérios.
A inauguração da ferrovia entre Santa Cruz de la Sierra e Corumbá, em 1955, marcou a abertura da Bolívia para novas possibilidades e a esperada aproximação com o Brasil. Essa estrada, além da capacidade de transportar pessoas e mercadorias, tinha o significado simbólico de conectar os dois países e começar a mudar o imaginário dos povos brasileiro e boliviano.
Os generais Ernesto Geisel e Hugo Banzer, ambos no comando de governos ditatoriais, deram mais um passo importante, em 1974, para a consolidação dos laços econômicos ao assinar um acordo de venda de gás natural, após verificar que a Bolívia tinha excedentes significativos.
Esse acordo se tornaria um objetivo permanente para muitos presidentes brasileiros e bolivianos que os sucederam, até ser finalizado em 1999, quando Fernando Henrique Cardoso e Hugo Banzer, já como presidente constitucional, inauguraram o gasoduto, dando início ao fornecimento de gás natural.
O percurso pelos fatos que compõem a aproximação entre Brasil e Bolívia é resultado de uma pesquisa em documentos de arquivo, diários, depoimentos, imagens, bibliografia específica e geral, além de trabalhos acadêmicos sobre os diversos aspectos relacionados à construção de vínculos ao longo do século XX.
O estreitamento crescente da relação política, a ponto de se considerar mutuamente estratégica, no final do século passado, permitiu o trabalho dos dirigentes brasileiros e bolivianos com visão de longo prazo em projetos de maior magnitude, cuja realização seria inviável em um ambiente de desconfiança.
Esse fato, no contexto regional, coincidiu também com o fim das divergências políticas entre Brasil e Argentina e com o nascimento de um projeto de integração regional no final do século XX, além da atuação política conjunta em organismos e negociações de caráter multilateral.
Essa perspectiva de futuro nas relações é observada com lucidez pelo ex-chanceler boliviano Gustavo Fernández Saavedra.
O Brasil é – e provavelmente será, no futuro próximo – o polo magnético das relações políticas, econômicas e comerciais bolivianas e pesará fortemente, por ação ou omissão, no caráter da inserção da Bolívia no sistema econômico e político internacional.
Na definição clássica, esta realidade incontornável é para a Bolívia um desafio e uma oportunidade. Traz consigo, é claro, a ameaça das tensões típicas de uma relação assimétrica, desigual e conflitiva com a potência continental emergente. Mas também tem um enorme potencial de cooperação econômica e política com uma democracia consolidada e com um dos mais importantes polos de desenvolvimento mundial do século XXI.³
A Bolívia se comprometeu, em 1938, a vender petróleo ao Brasil, para suprir as necessidades energéticas de seu vizinho e, assim, pagar as dívidas assumidas com a construção de uma ferrovia. Apenas seis décadas depois passou a vender gás como parte desse propósito, embora a dívida já tivesse sido canalizada de forma diferente. Tentar entender esse compromisso no curto prazo sempre nos dava a impressão de que se tratava de uma série de iniciativas fracassadas e de um relacionamento sem perspectivas. A análise desse processo no longo prazo parece mostrar uma tendência de superação dos entraves no relacionamento bilateral.
¹ Auad Sotomayor, Walter (2021). Relações Brasil-Bolívia. A definição das fronteiras. E-book de Amazon books.
² Discurso de posse de Alberto Ostria Gutiérrez, em 10 de julho de 1939, Ministerio de Relaciones Exteriores y Culto. La Paz, 2005, p. 61-62.
³ Fernández Saavedra, Gustavo (2014). Ensayos sobre política exterior. La Paz: Plural Editores. p. 96.
Primeira parte 1903-1940
Fim de um ciclo e início de outro
Um dos aspectos mais importantes da construção nacional nos países sul-americanos que se tornaram independentes da Espanha e de Portugal foi a definição territorial, tarefa enfrentada ao longo do século XIX, embora muitas diferenças tenham persistido até o século XX. Além disso, a relação diplomática entre as novas nações expôs uma disputa pela hegemonia regional entre grandes países, como Argentina e Brasil, com reflexos políticos em países menores como Bolívia, Paraguai e Uruguai.
Entre dezembro de 1902 e fevereiro de 1912, o chanceler brasileiro, barão do Rio Branco, realizou uma obra notável: completou o desenho do território que seus predecessores ocuparam até a independência do país, em 1822. Ao chegar ao governo enfrentou o conflito do Acre, que incorporou uma importante extensão territorial ao seu já bastante extenso país. Nas negociações com a Bolívia, o diplomata brasileiro combinou pressão militar com oferta de indenização em uma rápida negociação que levou à assinatura do Tratado de Petrópolis.
Antes de ocupar a chancelaria, Rio Branco foi chefe de duas missões de negociação em processos de arbitragem sobre disputas fronteiriças com Argentina e França. Durante a década que comandou o Itamaraty, nos primeiros anos de um Brasil republicano, passou incólume por períodos de instabilidade e mudanças presidenciais, seguindo o roteiro que lhe fora sugerido por Alexandre de Gusmão, diplomata nascido na cidade de Santos, no litoral paulista, quando o Brasil ainda era colônia, a serviço da coroa portuguesa, delineou a doutrina seguida posteriormente por outros negociadores do Brasil independente, como Duarte da Ponte Ribeiro, nas tratativas sobre limites fronteiriços. Essa doutrina, chamada de uti possidetis de facto, tratou de formalizar direitos sobre territórios já ocupados, tornando o Brasil quase um continente em si mesmo.
Rio Branco se esforçou também para ampliar as relações exteriores de seu país, operando uma guinada muito suave ao buscar a aproximação com uma potência emergente da época, os Estados Unidos, transformando a legação em Washington em embaixada, em um gesto que teve a reciprocidade esperada além do forte impacto em Buenos Aires. A ideia de elevar o prestígio do Brasil, promovida por Rio Branco, teve o sentido de diferenciar seu país das nações vizinhas em uma disputa internacional de prestígio que incomodou e preocupou particularmente a Argentina.
As discrepâncias políticas e rivalidades entre Argentina e Brasil interferiram frequentemente nas relações externas da Bolívia, como também nas dos demais países sul-americanos afetados por essa disputa.
Grande parte do território daqueles países (Uruguai, Paraguai e Bolívia) havia sido incluída no vice-reinado espanhol do Prata, com sede em Buenos Aires, fato que aos olhos dos brasileiros, dava à política argentina, de pós-independência, um caráter irredentista⁴ alarmante⁵.
A Argentina, reconhecidamente potência naval sul-americana na primeira década do século XX, havia manifestado preocupação com o plano brasileiro de equipar sua Marinha, objetivo que, segundo o barão, daria mais consistência aos seus objetivos de política externa. A defesa de um extenso litoral no Atlântico e o entendimento de que qualquer negociação seria mais bem defendida com o apoio de uma força naval compatível com aqueles objetivos, foi uma doutrina consolidada por Rio Branco. As esquadras do Peru e do Chile, além da argentina, eram superiores à brasileira e em 1904 começou um plano de modernização que só se concretizou em 1913.
A hostilidade portenha atingiu tal proporção que o governo em Buenos Aires parecia estar a ponto de uma ação armada. No início de 1907, Rio Branco advertiu o embaixador em Washington, Joaquim Nabuco, sobre informações fidedignas
recebidas no sentido de que o governo argentino estava pensando em intimar
o Brasil a reduzir o vulto do programa naval e, caso o Rio de Janeiro recusasse, recorrer às armas.⁶
A ameaça não se concretizou, mas o chanceler argentino, Estanislao Zeballos, que havia chefiado a missão de seu país no processo de arbitragem ocorrido em Washington, entre 1893 e 1895, pela posse do território meridional de Palmas, de aproximadamente 23.000 km², enfrentou dura derrota após o anúncio do veredicto final, pelo árbitro, o presidente dos Estados Unidos, Grover Cleveland, que acatou os argumentos de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o barão do Rio Branco. O território submetido à arbitragem hoje faz parte dos estados brasileiros de Paraná e Santa Catarina. O brasileiro conhecia muito bem o tema, pois havia acompanhado um entendimento anterior a esse respeito, em 1857, quando trabalhava como secretário de seu pai, o então Ministro dos Negócios Estrangeiros do império, Visconde do Rio Branco.
Como chanceleres de seus respectivos países, Zeballos e Rio Branco, disputavam prestígio milímetro a milímetro. Zeballos havia proposto em junho de 1908 ao seu governo, em reunião interna, que o Brasil fosse obrigado a dividir com Argentina os navios encomendados⁷, evitando assim o que ele considerava uma ruptura no equilíbrio das forças navais.
A preocupação argentina surgiu quando o Chile também estava adquirindo material militar. A publicação dos detalhes da reunião no jornal La Nación de Buenos Aires provocou uma crise e a consequente renúncia de Zeballos.
Em sua carta de renúncia ao presidente José Figueroa Alcorta (1906-1910), que encerraria o caso, o ex-chanceler incluiu detalhes que alimentaram a polêmica e deram continuidade à crise diplomática. Ele reiterou a advertência sobre a existência de perigos que pairavam sobre a Argentina e como prova do que alegou citou um telegrama misterioso arquivado no Itamaraty. O telegrama publicado nos jornais argentinos era a suposta tradução para o espanhol de uma mensagem enviada por Rio Branco às representações diplomáticas brasileiras em Buenos Aires, Montevidéu, Assunção, Santiago, La Paz, Lima e Washington.
O telegrama número 9, segundo a versão decifrada por Zeballos, continha instruções para supostamente isolar a Argentina no processo de negociações fronteiriças entre o Paraguai e a Bolívia⁸. Mas na versão publicada por Rio Branco, ou seja, após revelar as chaves para decifrar os telegramas brasileiros, acusou o chanceler argentino de tentar justamente excluir o Brasil dessas negociações.
Zeballos ficou em pior situação perante a opinião pública, o Governo e o Congresso do seu país, já que havia violado a correspondência de um país amigo e havia adulterado seu conteúdo⁹.
O incidente é lembrado pela historiografia brasileira como prova das dificuldades, mas também da ousadia de Rio Branco, que não hesitou em revelar as chaves secretas brasileiras para exibir os métodos de seu adversário.
A partir de Rio Branco, foi estabelecida uma política específica em relação à Argentina: a contenção. Tratava-se de buscar, por meio da cordialidade oficial, desarmar o que se percebia como ânimo guerreiro. Essa estratégia foi adotada pelo governo brasileiro após a morte de Rio Branco, bem como na missão que o presidente Venceslau Brás (1914-1918) confiou ao jurista e deputado Afrânio de Melo Franco à inacessível Bolívia, em julho de 1917.
Chegar a La Paz no início do século XX era uma façanha, tanto pelos transtornos causados à saúde pela altitude, quanto pela falta de vias de comunicação. O acesso por trem (com transbordo) de Buenos Aires era mais direto do que a rota marítima para o norte do Chile (Arica), que também tinha uma conexão ferroviária com La Paz.
A cidade situada a quase 4.000 metros acima do nível do mar, transformada na capital de fato da Bolívia, vivia, em agosto de 1917, os preparativos para a sucessão presidencial em clima de festa. A posse do novo presidente, José Gutiérrez Guerra, banqueiro eleito pelo Partido Liberal, foi cercada de expectativas inesperadas pela presença de numerosos representantes de países estrangeiros especialmente convidados para a ocasião.
O presidente brasileiro havia nomeado Melo Franco para representá-lo na posse de seu colega boliviano porque considerava positivo o gesto com um país vizinho, mas também porque queria confiar-lhe uma missão especial em La Paz, aproveitando a presença de diplomatas de outros países americanos na capital boliviana. A situação no hemisfério naquela época era tensa devido ao conflito europeu.
Desde o início do ano, os Estados Unidos, com a colaboração do Brasil, tentavam enfrentar forte oposição da Argentina e do México, para mobilizar o apoio latino-americano na guerra contra a Alemanha.¹⁰
Melo Franco, segundo o seu filho e biógrafo, Afonso Arinos de Melo Franco¹¹, organizou rapidamente a delegação que era composta por mais dois militares, três secretários, a sua mulher e três filhos. O grupo embarcou no Rio de Janeiro no vapor Amazon com destino a Buenos Aires. Na capital argentina foi recebido com todas as honras de uma missão oficial e em declarações ao Jornal La Razón disse que seu país se sentia moralmente solidário com a causa dos aliados e que compartilhava com eles anseios, esperanças e reivindicações.¹²
No dia 7 de agosto, a missão especial comandada por Melo Franco deu início à longa viagem de trem a partir de Buenos Aires para o norte, que só chegaria ao destino seis dias depois. Em Tucumán teve uma ótima recepção e Melo Franco aproveitou para visitar a casa em que se reuniu o Congresso da Independência um século atrás. De Tucumán, a comitiva seguiu pela região montanhosa até La Quiaca, a última cidade argentina, e dali continuaram sua viagem em automóveis até a vizinha Villazón, na fronteira com a Bolívia. A comitiva acompanhada pelas autoridades bolivianas pernoitou nessa pequena cidade fronteiriça, seguindo no dia seguinte para Tupiza, mais ao norte.
Melo Franco, que tinha um temperamento nervoso e saúde delicada, começou a sentir os efeitos da altitude quando chegou ao altiplano andino. Em Tupiza, um médico enviado pelo governo já o esperava e o acompanhou até La Paz. Em Escoriani (4.300 metros), o carro do embaixador quebrou, devido à altitude, e Melo Franco teve sintomas inconfundíveis do conhecido sorojchi, o mal de altura. Auxiliado com fornecimento de oxigênio, seguiu para Atocha, ponto de partida da ferrovia que o transportaria até La Paz.¹³
José Gutiérrez Guerra (sentado ao centro) e o delegado Afrânio de Melo Franco (sentado primeiro de esquerda para direita). Palácio Quemado, 15 de agosto de 1917. Presidência da Bolívia.
A viagem de trem foi mais rápida para Oruro e La Paz, onde já se encontravam os representantes dos Estados Unidos, México, Venezuela, Peru, Chile, Argentina, Uruguai e Paraguai.
Melo Franco retomou o diálogo bilateral com a Bolívia, limitando os efeitos das pressões que a Argentina exercia sobre aquele país. Os laços históricos e culturais entre a Bolívia e a Argentina naturalmente abriam um grande espaço para a influência política de Buenos Aires e uma evidência da importância desses vínculos era certamente a ferrovia em construção que em breve ligaria La Paz a Buenos Aires.
As diferenças entre Buenos Aires e Rio de Janeiro foram notórias no início da Primeira Guerra Mundial, apesar de Argentina e Brasil se terem declarado neutros no conflito, até então limitado à Europa, mas três anos depois a situação mudou. Os Estados Unidos declararam guerra depois que um submarino alemão torpedeou e afundou o navio de passageiros britânicos Lusitânia em 7 de maio de 1915, matando 1.202 pessoas, incluindo 125 cidadãos estadunidenses.
A situação piorou com a declaração alemã de bloqueio aos portos dos países aliados. A declaração foi rejeitada pelo governo brasileiro, que não pôde evitar, porém, que a Alemanha começasse a afundar navios mercantes brasileiros em águas europeias. O naufrágio do vapor Paraná por submarinos alemães levou o governo brasileiro a romper relações com a Alemanha em 11 de abril e a reconhecer o estado de guerra em outubro¹⁴. A Argentina manteve-se firme em sua neutralidade, considerando que o conflito não afetaria seus interesses.
Acreditando que os laços comerciais argentinos com o mercado europeu continuariam apesar da guerra, os principais jornais argentinos mantiveram posição consistente com a do presidente, pensando que os britânicos permitiriam o comércio com a Alemanha, porque não fazia parte dos interesses britânicos prejudicar o comércio exterior argentino. Na verdade, foi assim por quase um ano, até o final de 1915, quando a chancelaria britânica e a Câmara de Comércio concordaram que as pressões da guerra obrigavam a impor restrições, mesmo que isso afetasse o comércio argentino.¹⁵
Argentina expulsou o embaixador alemão após a divulgação de telegramas que aconselhavam o afundamento de navios argentinos, mas o presidente Hipólito Yrigoyen se recusou a romper relações, apesar de uma resolução do Congresso nesse sentido. Com uma economia sustentada pela exportação de alimentos, a Argentina passou a enfrentar os efeitos da guerra, como observa o historiador argentino Luis Alberto Romero.
A guerra desenterrou de forma aguda um velho mal: a vulnerabilidade da economia argentina, cujas engrenagens eram as exportações, a entrada de capitais, de mão-de-obra e a expansão da fronteira agrícola. A guerra afetou tanto as quantidades, quanto os preços das exportações, e iniciou uma tendência ao declínio das condições de intercâmbio.¹⁶
Somaram-se a esse problema o excesso de oferta de alimentos após a guerra, além da hostilidade econômica dos Estados Unidos. No entanto, a recuperação da economia foi uma realidade até a Segunda Guerra Mundial.¹⁷
Em 1915, debatia-se sobre possíveis efeitos da guerra, especialmente para o Brasil. Por isso, o processo informal de consultas sobre os rumos da política do continente tornou-se importante, uma vez que muitos governos latino-americanos consideraram possível demonstrar a unidade do hemisfério e a confiança no fim do conflito. Embora os esforços de Melo Franco não tenham alcançado a unidade desejada, ajudaram a estabelecer a doutrina da política externa de seu país.
Hilton credita a Melo Franco sua consolidação, especialmente após sua nomeação como ministro das Relações Exteriores do governo instaurado após a vitória da revolução de 1930 que levou Getúlio Vargas ao poder. Segundo o autor americano, a estratégia brasileira consolidada por Melo Franco contemplava, entre outras linhas de ação, a contenção argentina mediante o uso da cordialidade oficial e a intensificação do comércio bilateral, além da ampliação da influência do Brasil na Bolívia e Paraguai. Era tarefa difícil, já que o Brasil praticamente havia arrasado o Paraguai na Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) e os bolivianos enfrentavam qualquer iniciativa brasileira com a desconfiança de quem teve que ceder grandes extensões de seu território de origem à expansão territorial de seu gigantesco vizinho.
A relação da Bolívia com a Argentina parecia menos conflituosa, embora certas atitudes tenham despertado desconfiança e decepção, como a sentença arbitral do presidente José Figueroa Alcorta, sobre a delimitação da fronteira peruano-boliviana. A Bolívia ignorou a sentença em 1909 por considerar que o árbitro havia excedido seu mandato por ter ignorado as alegações apresentadas pelos dois países em favor de um critério ambíguo de equidade, e mesmo o Tratado de Petrópolis já firmado com o Brasil. A decisão boliviana levou ao rompimento das