Figurações de uma narradora-viajante: estudo de Caderno Afegão e Vai, Brasil, de Alexandra Lucas Coelho
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Sobre este e-book
Coelho, Caderno Afegão (2009) e Vai, Brasil (2013). As duas obras foram selecionadas por
apresentarem experiências distintas da autora, em dois locais geográfica e culturalmente
distantes. A primeira obra analisada, Caderno Afegão, resulta de uma viagem de quase dois
meses que Alexandra Lucas Coelho empreendeu ao país do Oriente Médio, como repórter do
jornal O Público e da Rádio RTP – Antena I. No percurso, a autora narra suas experiências em
Cabul, capital do país, e em diversos outros lugares no interior do Afeganistão, como Herat,
Jalalabad, Kandahar, Mazar-i-Sharif, Band-e-Amir. Em Vai, Brasil, segundo relato de viagem em
análise, a experiência da escritora portuguesa é mais prolongada, já que ela viveu por três anos
na cidade do Rio de Janeiro. Um mapa mostra, em destaque, Amazonas, Pará, Maranhão,
Brasília, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Rio Grande do Sul, lugares por onde
ela passou como repórter e viajante. Além das obras de Alexandra Lucas Coelho, diversas
entrevistas que ela concedeu a importantes veículos de comunicação brasileiros e portugueses
foram utilizadas para problematizarmos o gênero."
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Figurações de uma narradora-viajante - Letícia Myrrha
FIGURAÇÕES DE UMA NARRADORA-VIAJANTE
Estudo de Caderno Afegão e Vai, Brasil, de Alexandra Lucas Coelho
Letícia Myrrha
FIGURAÇÕES DE UMA NARRADORA-VIAJANTE
Estudo de Caderno Afegão e Vai, Brasil, de Alexandra Lucas Coelho
Belo Horizonte
Editora PUC Minas
2023
© 2023 – As organizadoras
Todos os direitos reservados pela Editora PUC Minas. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida sem a autorização prévia da Editora.
Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Grão-Chanceler: Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Reitor: Prof. Dr. Pe. Luís Henrique Eloy e Silva
Pró-reitor de Pesquisa e de Pós-graduação: Sérgio de Morais Hanriot
Editora PUC Minas
Direção e coordenação editorial: Mariana Teixeira de Carvalho Moura
Comercial: Daniela Figueiredo Andrade Albergaria
Revisão: Ana Paula Paiva, Thúllio Salgado
Diagramação de e-book: Luiza Seidel
Conselho editorial: Alberico Alves da Silva Filho, Conrado Moreira Mendes, Édil Carvalho Guedes Filho, Eliane Scheid Gazire, Ester Eliane Jeunon, Flávio de Jesus Resende, Javier Alberto Vadell, Leonardo César Souza Ramos, Lucas de Alvarenga Gontijo, Márcia Stengel, Pedro Paiva Brito, Rodrigo Coppe Caldeira, Rodrigo Villamarim Soares, Sérgio de Morais Hanriot.
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Ficha catalográfica elaborada por Fabiana Marques de Souza e Silva - CRB 6/2086
AGRADECIMENTOS
Certamente este livro não foi uma viagem solitária. Por isso, meus agradecimentos à escritora Alexandra Lucas Coelho, pelo riquíssimo material de pesquisa que Caderno Afegão e Vai, Brasil proporcionaram.
Obrigada ao Luis Eduardo, minha mãe, Marise, Leoni e aos meus filhos, Lis e Pedro, pelo apoio.
Agradeço ao Professor Mozahir Salomão e à Professora Monica Martinez, pelas contribuições teóricas.
Em especial, um agradecimento a meu professor e orientador Marcio de Vasconcellos Serelle, pela gentileza com a qual me conduziu pelos caminhos da pesquisa acadêmica.
SUMÁRIO
PREFÁCIO
INTRODUÇÃO
1. NARRATIVAS DE VIAGEM: A DESCOBERTA DE NOVOS MUNDOS
1.1 O gênero Relato de viagens
2. A VIAGEM E SEUS DESLOCAMENTOS
2.1 Multiculturalidade e relações entre diferentes culturas
2.2 Mediações culturais e visibilidade
2.3 Paisagens internas de um narrador em trânsito
2.3.1 Deslocamentos identitários
3. O NARRADOR LITERÁRIO
3.1 Aderência autor-narrador
4. FIGURAÇÕES DE UMA NARARDORA-VIAJANTE
4.1 Caderno Afegão: entre o relato pessoal e a reportagem
4.1.1 Uma aldeia na borda do mundo
4.1.2 Uma narradora mulher, em um país de homens
4.2 Vai, Brasil: fragmentos de uma crônica de viagens
4.3 Brasil: um espelho que se quebra diante da Europa
4.3.1 Brasil: uma alegria saída da tristeza
5. ALÉM DO NARRADOR
6. REFERÊNCIAS
SOBRE A AUTORA
PREFÁCIO
Este livro teve como original uma dissertação de mestrado que eu tive a felicidade de ter sido convidada para a defesa. Eu me lembro bem do dia em que li o trabalho para preparar minha arguição e do sorriso que me veio espontâneo ao rosto quando li o título da obra: Figurações de uma narradora-viajante: estudo de Caderno Afegão e Vai, Brasil, de Alexandra Lucas Coelho.
Vivemos num mundo em que, felizmente, aborda-se a necessária equidade de gêneros. Mas, da forma como entendo o momento atual, às vezes a erudição dos discursos teóricos não se manifesta no plano prático. E ali estava um exemplo da união de teoria e prática que saltava aos olhos no título.
A autora soube, com a ajuda de seu orientador, expressar bem o dilema, dizendo que o termo feminino narradora
havia sido adotado no título e nas análises feitas tanto de Caderno Afegão quanto de Vai, Brasil. Mas havia sido decidido adotar o substantivo masculino narrador
sempre que era feita referência, de forma geral, à voz de enunciação da narrativa, da mesma forma como o termo é utilizado nos estudos da teoria literária.
A meu ver, tínhamos ali uma forma exploratória de testar uma proposição que seria investigada junto à comunidade acadêmica não apenas na banca que se seguiria, mas também nas apresentações em congressos, nas revistas científicas e, claro, nos livros.
Aprecio muito essa forma de avanço científico, em que se tem a coragem de propor algo novo, mas a gentileza de incluir a comunidade numa consulta arejada que permita o diálogo inovador que faz o campo avançar como um todo – sempre ciente de que consensos dificilmente são encontrados pelo caminho. E está tudo bem.
Lembro-me também dos agradecimentos, em geral tido como uma formalidade pré-textual. Eu me recordo de uma frase: Na viagem, é preciso que o narrador-viajante retorne para contar o que viu, o que aprendeu, para relatar o movimento interno e expansivo que a experiência lhe trouxe.
Ou seria narradora-viajante?
Acho que este livro registra bem esse momento. A agora mestra Letícia Myrrha teve o tempo necessário após a defesa para deixar a obra debaixo do travesseiro, pois, como diz o ditado francês, la nuit porte conseil, a noite traz conselhos. Fez as alterações sugeridas pela banca e as indicadas pelo seu inconsciente, que é sabido que ela tem um pé na psicanálise. O resultado é esta obra com avanços trazidos pela academia, mas também pela experiência de vida.
Como resultados do estudo, o resumo apontava que
foi possível identificar que a narradora adotou, em Caderno Afegão, uma identidade feminina e ocidental, enquanto o Afeganistão foi retratado como um lugar isolado, no fim do mundo. No Brasil, a narradora assumiu uma voz predominantemente portuguesa e europeia, sendo o país descrito como abundante, criativo, alegre e desigual, ainda profundamente impactado pelo passado colonial.
A meu ver, a pesquisa de Letícia Myrrha foi muito além desses achados, que por si só são importantes. Nessa viagem, ela começou a desbravar uma rota ainda a ser estabelecida, que é a dos estudos comparativos em jornalismo literário no Brasil e em Portugal. Como diz outro ditado, este estadunidense, duas nações divididas pelo mesmo idioma
, que possuem experiências na abordagem, história, autores e autoras diferentes desse campo de estudos. Um mar vasto que começa a ser singrado pela obra da autora.
O livro conta que, em um evento acadêmico em uma Universidade de Portugal, uma das falas da jornalista Alexandra Lucas Coelho havia gerado uma reação peculiar de um professor emérito da Sorbonne, para quem a energia do Brasil e o cansaço da Europa poderiam ser considerados lugares-comuns. Numa perspectiva que remete à prevenção do etarismo, Coelho havia respondido que o problema não era a Europa ser velha, mas estar velha. No mesmo encontro, acadêmicos europeus teriam acusado Coelho de ter a sua percepção de mundo alterada pela culpa colonial, com a visão de um Brasil idílico. Como ela apontou, era difícil ter uma idílica viajando por estradas de terra até o Vale do Jequitinhonha, ponto mais pobre do país.
Esse, de fato, é um pequeno exemplo de quão rica é a seara aberta por Letícia Myrrha. Fica a esperança de que o caminho será percorrido, quiçá, num doutoramento. Aqui, no Brasil, talvez no exterior. Ou em ambos.
Monica Martinez
Professora pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba.
INTRODUÇÃO
Figurações de uma narradora-viajante: estudo de Caderno Afegão e Vai, Brasil, de Alexandra Lucas Coelho não é apenas o resultado de dois anos de estudos no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUC Minas. Os encontros do grupo de Pesquisa Mídia e Narrativa, da PUC Minas, articulado à Rede Metacrítica, foram essenciais para dar suporte às produções teóricas desenvolvidas neste livro. Além disso, muitas das temáticas aqui abordadas fazem parte do meu cotidiano desde o ano de 2016, quando saí do Brasil para morar na província de Aichi-Nagoya, no Japão. Em setembro de 2021, me mudei para a cidade de Bristol, no Reino Unido, onde moro desde então. Das minhas experiências com a cultura japonesa, escrevi Ichi go Ichi e: crônicas de uma brasileira no Japão, uma narrativa de viagem publicada pela Editora Patuá, em maio de 2021. Na obra, conto a história de um Japão que "não pode ser encontrado nos livros de História, não se vê nos guias de Turismo, nas páginas dos jornais, documentários de TV ou sites de notícias, mas um Japão que só existe dentro de mim, que
foi sendo desenhado, vivido e sentido dia a dia, nos meus 1185 dias de exílio" (Myrrha, 2021, p. 22). Das minhas experiências vivendo como estrangeira em terras distantes, emergiu a vontade de trabalhar, também teoricamente, com esse gênero tão fascinante que é o relato de viagem. A ideia inicial de abordar as narrativas de viagem sob o prisma das relações interculturais foi se transformando, conforme fui percebendo a riqueza de temáticas que o gênero evoca.
O ponto de partida deste livro foram dois relatos de viagem produzidos por Alexandra Lucas Coelho, Caderno Afegão (2009) e Vai, Brasil (2013). Não foi uma escolha fácil, já que, além dos livros citados, a escritora e repórter portuguesa tem outros relatos de viagem publicados que narram suas experiências no Brasil, no México e em Israel: Cinco voltas na Bahia e um beijo para Caetano Veloso (2019), Viva México (2010) e Oriente Próximo (2007). No entanto, as duas obras foram selecionadas por apresentarem experiências distintas da autora, em dois locais geográfica e culturalmente distantes. Nascida em Lisboa, no ano de 1967, a repórter e correspondente internacional do jornal O Público escreveu, ainda, Tahrir! (2011), livro-reportagem sobre a revolução no Egito, e Líbano, labirinto (2021), vencedor do prêmio Oceanos de Literatura do ano de 2022. Também é autora de quatro romances: E a noite roda (2012), O meu amante de domingo (2014), Deus-dará (2016) e Nossa alegria chegou (2018).
A primeira obra analisada, Caderno Afegão, resulta de uma viagem de quase dois meses que Alexandra Lucas Coelho empreendeu ao país do Oriente Médio, como repórter do jornal O Público e da Rádio RTP – Antena I. No percurso, a autora narra suas experiências em Cabul, capital do país, e em diversos outros lugares no interior do Afeganistão, como Herat, Jalalabad, Kandahar, Mazar-i-Sharif, Band-e-Amir. Em Vai, Brasil, segundo relato de viagem em análise, a experiência da escritora portuguesa é mais prolongada, já que ela viveu por três anos na cidade do Rio de Janeiro. Um mapa mostra, em destaque, Amazonas, Pará, Maranhão, Brasília, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Rio Grande do Sul, lugares por onde ela passou como repórter e viajante. Além das obras de Alexandra Lucas Coelho, diversas entrevistas que ela concedeu a importantes veículos de comunicação brasileiros e portugueses foram utilizadas para problematizarmos o gênero.
A viagem exige a reconstrução de nós mesmos em mundos distantes, por isso também eu me reconheço outra, agora que me reinvento aqui na Inglaterra. Já nas primeiras leituras de Caderno Afegão e Vai, Brasil, tornou-se evidente que, quando impactadas por diferentes contextos culturais, as narradoras-viajantes de Alexandra Lucas Coelho descreviam a si mesmas de maneira distinta. Além disso, foi possível captar diferenças nas imagens criadas pelas narradoras para representarem as culturas afegã e brasileira. A partir dessas percepções seminais, debrucei-me sobre temáticas que pudessem ajudar a compreender como se dá a construção da identidade do narrador-viajante.
O nosso percurso pelo universo das narrativas em trânsito está dividido em quatro capítulos. No Capítulo 1, passeamos pelas questões gerais relativas ao gênero, em especial a dificuldade de delimitá-lo, já que ele contém aproximações com a reportagem e, ao mesmo tempo, com formas mais literárias de escrita. Apresenta-se como um relato de subjetividade expressiva, por vezes memorialístico, do mesmo modo em que, muitas vezes, se assume como um texto objetivo e direto, sendo abordado por Edvaldo Pereira Lima (1993) como um subtipo do livro-reportagem. Aproxima-se, ainda, do relato etnográfico, na medida em que convoca técnicas semelhantes na captação e interpretação do entorno (Souza, 2010). A questão da estética do gênero é trabalhada diante da perspectiva de um texto que busca reproduzir o movimento da viagem.
No Capítulo 2, a viagem é abordada tendo como referência os inúmeros deslocamentos que ela opera, sejam eles espaciais, temporais, simbólicos, da linguagem, culturais e sociais. Nas páginas das narrativas de viagem, é possível captar as tensões, os diálogos e as acomodações entre diferentes povos. Foram trazidas questões que abarcam as temáticas da interculturalidade, representações culturais, visibilidade, estereótipos, identidade, diferença, colonialismo, comunicação intercultural, multiculturalidade e a perspectiva de mediação entre diferentes modos de vida. Pensando na viagem como uma jornada, que é empreendida no interior do indivíduo, trabalhamos com os deslocamentos psíquicos e identitários.
A experiência da viagem é recriada, na narrativa, por meio da subjetividade de um narrador-viajante. Pensados à luz das teorias literárias clássicas, visitamos os aspectos do narrador no Capítulo 3. Foram abordadas as funções do narrador; sua identidade, apreendida por meio da análise de seu ponto de vista, do tom da narrativa, do campo de visão; as dimensões éticas, estéticas e ideológicas do texto; os tipos de personagem; o grau de intervenção do narrador e a figura do narratário. Por último, a perspectiva autoral e as relações entre o real e ficcional foram retomadas na parte final do capítulo, com a contribuição de importantes autores da literatura e da filosofia, como Paul Ricoeur (1991), Paul De Man (1984), Philippe Lejeune (2008) e Jacques Rancière (2005). Assim, foi possível trabalharmos com a ideia de uma aderência provisória entre o autor e o narrador-viajante nos relatos não ficcionais.
No Capítulo 4, mergulhamos em Caderno Afegão e Vai, Brasil, apresentando as características gerais das obras e três categorias de análise: os elementos que sugerem distância ou proximidade do narrador em relação ao país narrado; a mediação que narrador opera entre diferentes culturas, evidente nos contrastes entre as culturas narradas e a sua cultura de origem, o que inclui as imagens que a narradora cria para descrever o Afeganistão e o Brasil; a forma como a voz enunciadora descreve a si mesma, ou seja, os atributos do narrador que se encontram mais destacados no encontro com as culturas. Essas categorias de análise foram fundamentadas por questões teóricas e de ordem metodológicas trazidas por autores como Luiz Gonzaga Motta (2007), em Análise pragmática da narrativa jornalística, e Gérard Genette (1972) e Roland Barthes (1972), nos ensaios que compõem a obra - Análise estrutural da narrativa. O objetivo era conseguir captar as figurações das narradoras-viajantes criadas por Alexandra Lucas Coelho a partir da apreensão do ponto de vista do sujeito da enunciação, sua identidade narrativa, o lugar de onde ele fala, sua atitude intelectual e emocional diante dos acontecimentos e espaços, sua disposição para imersão cultural, a maneira como ele se enxerga, se modifica e se descreve, no contato com o Outro. Além disso, tornou-se evidente a forma como a outra cultura é representada dentro da obra e a quem o narrador-viajante fala quando traduz as culturas estrangeiras, ou seja, o narratário. A título de simplificação, o termo feminino narradora
foi adotado no título e nas duas análises, enquanto o uso do substantivo masculino narrador
, adotado tradicionalmente pela teoria literária, foi reservado às situações em que nos referimos, de forma geral, à voz de enunciação da narrativa.
A análise crítica dos relatos de viagem convoca teorias, ideias e autores de diversas áreas de estudo que compõem as Ciências Sociais e Humanas, como a Literatura, a Comunicação, a Antropologia, a Sociologia, a Psicologia, a Filosofia e a História. Como nas viagens, em que culturas diferentes são chamadas ao diálogo, convidamos autores das mais variadas formações, clássicos e modernos, para discorremos sobre o tema. Além dos autores já citados, compõem o nosso corpo teórico Candice Vidal e Souza (2010), Ricardo Piglia (2004), Tzvetan Todorov (2010), George Herbert Mead (1972), Walter Benjamin (1994), Roger Silverstone (2002), Roy Wagner (2010), Peter Sloterdijk (2006), Flora Süssekind (1987, 1990) e Néstor Garcia Canclini (2004, 2020). Essa amplitude teórica que a narrativa de viagens demanda foi um desafio não só pelo compromisso de se fazer dialogar distintos campos do saber, ainda que complementares, mas também pelo volume de temáticas trabalhadas neste livro transdisciplinar.
Vivemos em um mundo cada vez mais interligado, de intensos fluxos de ideias, mercadorias e pessoas. Como gênero multicultural, o relato de viagem torna-se um produto importante para pensarmos a maneira como a sociedade atual se constitui. As narrativas que relatam as experiências de um indivíduo no encontro com diferentes culturas evocam, ainda, importantes discussões sobre as relações interculturais, identidade, diferença, representações culturais, estereótipos ou outras discussões que possam emergir no contato com o outro. No entanto, é importante que se diga, este livro não esgota as temáticas sobre as narrativas de viagem, seus narradores e as mediações culturais que elas representam. Apontamos, apenas, algumas possíveis reflexões quando pensamos nessa figura complexa que é o narrador em trânsito. Ficcional e, ao mesmo tempo, muito próximo do autor real; que demarca sua cultura de origem, ao mesmo tempo que internaliza, questiona e reproduz elementos das culturas com as quais se relaciona; que faz uso de técnicas de natureza diversa (antropológicas, etnográficas, literárias e jornalísticas) na aproximação com a experiência e na reprodução do conteúdo; que constrói personalidades narrativas diversas, de acordo com as experiências vividas no corpo do viajante.
Capítulo 1
NARRATIVAS DE VIAGEM
A descoberta de novos mundos
Musa, reconta-me os feitos do herói astucioso que muito peregrinou, dês que esfez as muralhas sagradas de Tróia; muitas cidades dos homens viajou, conheceu seus costumes, como no mar padeceu sofrimentos inúmeros na alma, para que a vida salvasse e de seus companheiros a volta.
Homero¹
A narrativa de viagem teria se originado na Grécia Antiga, com o livro Odisseia, de Homero, escrito no fim do século VIII a. C (Martinez, 2012). A obra épica descreve a jornada de Odisseu (também conhecido como Ulisses) na Guerra de Tróia, em seu retorno para casa, a ilha de Ítaca. É marcante no texto a jornada de superação de um herói astucioso
, dotado de atributos e habilidades consideradas superiores às de um