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Narrativas da ancestralidade: o mito feminino das águas em mia couto
Narrativas da ancestralidade: o mito feminino das águas em mia couto
Narrativas da ancestralidade: o mito feminino das águas em mia couto
E-book314 páginas3 horas

Narrativas da ancestralidade: o mito feminino das águas em mia couto

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NARRATIVAS DA ANCESTRALIDADE: o mito feminino das águas em Mia Couto, de Silvania Capua Carvalho, reúne inscrituras literárias que tencionam dar a conhecer, principalmente ao público leitor brasileiro contemporâneo, algumas interpretações do chamado universo literário lusófono, tendo como plataforma privilegiada o recorte moçambicano perspectivado por Mia Couto e seu esforço de encontrar "um outro chão para o pensamento". Reunidas em livro, tais considerações vêm se somar à já expressiva fortuna crítica desenvolvida em torno da obra coutiana no Brasil, e certamente contribuem, desta forma, para o estabelecimento de uma possível "Sociologia do Encantamento"
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de jan. de 2015
ISBN9788581928388
Narrativas da ancestralidade: o mito feminino das águas em mia couto

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    Narrativas da ancestralidade - SILVANIA CAPUA CARVALHO

    Referências

    CAPÍTULO 1

    INTRODUÇÃO

    O estudo da literatura é uma viagem se, conforme a epígrafe, ela conduzir ao percurso de distâncias e a adquirir um novo olhar e uma nova maneira de perceber a vida. Pelas linhas do texto literário é possível descortinar as fronteiras culturais e do imaginário humano, o que leva a refletir sobre as próprias fronteiras interiores. A viagem apaixona e intriga, leva a (re) pensar sobre o mundo e sobre si mesmo.

    Este livro tem como propósito de encarar a dinâmica do texto literário do ficcionista moçambicano Antônio Emílio Leite Couto, conhecido internacionalmente e pelos meios acadêmicos por Mia Couto. É um escritor que, na infância, sentava e ficava a contemplar o mar na sua cidade natal, Beira, no horizonte e na sua imaginação, realizando viagens além das terras africanas. Contando suas estórias e escrevendo seus poemas ele conquistou mundos, abordando questões como identidade, sentido de pertencimento, pós-colonialismo e choques entre as culturas, temas presentes no romance OPS. Mia Couto é considerado pela crítica como possuidor de um olhar que valoriza a memória da ancestralidade de seu país.

    O interesse em estudar o mito feminino das águas surgiu a partir do conhecimento teórico da qualidade de sua pro dução literária com relação ao gênero feminino. Tal narrativa se desenrola em torno de um discurso mítico sobre as aventuras dos personagens. Ao lado disso, prevalece a influência do mito das águas, a sereia, que, na cultura baiana, simboliza a representação de ancestralidade.

    O tema do romance veio atender aos anseios de conhecimento do então Programa de Pós-graduação em Literatura e Diversidade Cultural (atual Programa de Pós-graduação em Estudos Literários), pela linha de pesquisa Literatura, Memória e Representações Identitárias, que se ocupa do estudo dos discursos e manifestações do texto literário. Articulando as configurações da ancestralidade em OPS do escritor Mia Couto, o estudo mergulhou nas narrativas moçambicanas com relação ao que se expressa das questões culturais na contemporaneidade. A narrativa de OPS revela semelhanças entre a história da Santa encontrada no continente africano e a ancestralidade presente nas origens de matriz africana. Quanto ao título, Narrativas da Ancestralidade: o mito feminino das Águas em Mia Couto⁶, vale a pena salientar que ele representa uma atração da pesquisadora pelo misticismo, que desvela traços culturais provenientes da África e que se identifica com a cultura brasileira.

    Este livro compõe-se de quatro capítulos, sendo o primeiro a introdução. O segundo capítulo tem como objetivo estudar o percurso do vocábulo Mito, além dos traços do ficcionista e poeta Mia Couto, sua obra e o lugar do romance no contexto de sua produção literária; apresenta, ainda, informações sobre o país Moçambique. O terceiro capítulo se constitui de um diálogo do romance OPS de Mia Couto com as representações de ancestralidade. Ocorre a exploração do romance, trazendo a antropologia e a filosofia para aprofundar o percurso teórico e metodológico de explorar o objeto de estudo. No quarto capítulo, tomando por base teórica a produção acadêmica comprometida com a origem das narrativas moçambicanas, a proposta de transitar na cultura de matriz africana é apresentada. Tem-se como objetivo mergulhar definitivamente na família dos ancestrais, compreender as raízes da formação cultural africana, que estruturalmente é de orientação ética, sensível, sutil e causal. Com a finalidade também de sensibilizar novos leitores sobre a importância desses estudos culturais, são abordadas noções da ancestralidade como uma ferramenta de análise do romance OPS, que religa territórios, sentimentos, sensações, pensamentos, mitos e fábulas. Além de experiências e sínteses decorrentes de contatos e trocas teóricas no decorrer das leituras, utiliza-se da filosofia da ancestralidade como práxis de libertação da escrita e de considerações acerca do papel desta categoria, a ancestralidade, para percorrer as estruturas do romance.

    O percurso metodológico do livro sustenta-se em pesquisa bibliográfica. De acordo com Gil⁷ e Lakatos⁸, ele indica a busca da problematização da pesquisa a partir de leituras, análises e discussões das contribuições culturais e científicas. No caso específico desta, o ponto de partida é o romance OPS acrescido da fortuna crítica do autor Mia Couto, tendo como contribuição teórica conceitos relativos aos Estudos Culturais. Este romance serve de base para fundamentar as considerações sobre o conceito de ancestralidade na cultura africana. Paralelamente, são investigados trabalhos acadêmicos que formaram o aporte teórico da análise: a tese da Ancestralidade é a arte de tecer teias teóricas permeadas da arte de experimentar. Oliveira, em Filosofia da Ancestralidade: Corpo e Mito na Filosofia da Educação Brasileira⁹, busca a construção de sua Pedagogia do Encantamento.

    Como relevância acadêmica, este estudo pode contribuir com a fundamentação do curso de Letras quanto aos aspectos das literaturas africanas de língua portuguesa, com um olhar mais específico, relacionado com as questões das representações identitárias. Consequentemente, poderá ser fonte de investigações e motivar novos pesquisadores na UEFS a trilhar os caminhos da pesquisa da literatura de expressão portuguesa em terras dos ancestrais da mãe África.

    A tendência do ensino de cultura e literatura africanas tem sido discutida no Brasil. O ensino tornou-se oficial no ano de 2003, com a aprovação da lei 10.639/2003, que estabelece uma nova política educacional do nosso país ao resgatar a memória dos povos de matriz africana, de forma a valorizar essas origens. A lei propicia também, aos professores do Ensino Fundamental e Médio, um novo olhar sobre a herança que a ancestralidade africana oferece no convívio com a cultura brasileira, principalmente no estado da Bahia, cujas raízes são eminentemente de matriz afrodescendente.

    O escritor moçambicano Mia Couto tem referendado suas obras como fonte de estudos acadêmicos, dado o grau de importância dos estudos culturais sugeridos pelo teor das narrativas. No romance OPS, Mia Couto, aborda as principais questões do mundo moderno: a identidade, o sentido de pertencimento, o pós-colonialismo e o choque entre as culturas, nas quais apresenta um olhar absolutamente contemporâneo. Sabe-se que o imaginário vai sendo constituído em função das práticas coletivas, a partir das visões pessoais de um determinado grupo social. Podemos encontrar exemplos nas próprias lendas e na nossa literatura, em que prevalece a representação da materialidade simbólica, instituindo como real a organização de fatos resultantes da memória do dizer.

    Na segunda metade do século XIX, a História passou a buscar a sua autenticidade, tendendo a uma postura diferenciada da Literatura perante o pensamento científico vigente. Nesse momento, as obras literárias tentavam se distanciar das investigações históricas. Havia a perspectiva comum entre a História e a Literatura, a partir da necessidade de reproduzir os fatos do cotidiano e direcionar a interpretação dos acontecimentos com maior fidelidade. Propiciava-se de tal modo o chamado realismo literário para se afinar com o positivismo histórico. Nesse sentido, é incontestável a contribuição que a História tem proporcionado à Literatura, tendo em vista a utilização de documentos históricos para servirem de referenciais temporais à textura de romances de ficção, tornando-se, portanto, reconhecivelmente fonte fecunda de informações, pois o romance possui potencialidades de sentidos pouco exploradas pelos historiadores.

    Mia Couto apropria-se dos fatos históricos de Moçambique e faz de seu texto literário uma voz de denúncia sobre as perdas sociais que o país vem sofrendo. Foi-se o tempo do paradigma de que somente o historiador trabalha com a realidade e o escritor com a ficção. Ambos estão inseridos numa limitação temporal, espacial e cultural.

    Segundo Hunt¹⁰, em busca de novas formas, abordar o passado levou os historiadores à antropologia, economia, psicologia e sociologia. Mais recentemente, essa busca está conduzindo esses historiadores para a crítica literária. Esta tem despertado, nos escritores, o reconhecimento do papel ativo da linguagem, dos textos e das estruturas narrativas na criação e descrição da realidade histórica.

    Assim, as dimensões literárias da experiência social e estrutura literária da escrita histórica assumem novos rumos, expandindo o conhecimento da literatura africana de língua portuguesa com a produção de escritores como Mia Couto (moçambicano), José Eduardo, Germano de Almeida (cabo-verdiano), Agualusa e Pepetela (angolanos). Tais romancistas utilizam as questões ideológicas de seus países na sua escrita, constituindo um repertório ficcional cujo posicionamento pessoal refere-se às vozes africanas que foram silenciadas por guerras civis e conflitos entre as várias nações que compõem o continente Africano.

    A linguagem e o sujeito se constituem num mesmo ato. Ela é o efeito dos processos histórico-sociais. A História, então, de que estamos falando, não é a da sucessão diacrônica do fazer humano, apresentada por recortes feitos pelos historiadores, mas é a história como define Chauí:

    [...] A história não é a sucessão de fatos no tempo, não é o progresso das ideias, mas do modo como homens determinados, em condições determinadas criam os meios e as formas de sua existência social, reproduzem ou transformam essa existência social, que é econômica, política e cultural.¹¹

    Sabemos que a História se expressa pela linguagem, no processo de construção de sentidos, assim como a linguagem está na História, tomada como recorte do fazer humano, constituidor do objeto dos historiadores. O historiador faz escolhas, como sujeito que dá sentido ao mundo e busca autossignificação tendo a linguagem como materialidade, lembrando as palavras de Veyne: [...] Como o romance, a história seleciona, simplifica, organiza, faz com que um século caiba numa página, e essa síntese da narrativa é tão espontânea quanto o da nossa memória quando evocamos os dez últimos anos que vivemos.¹²

    A linguagem contém a língua, os movimentos, as formas, as cores, os traços, os sons. É simbólica. Não é um efeito ou manifestação da própria língua ou do sujeito, mas é constitutiva, pois nela a língua e o sujeito se materializam. Numa direção inversa: a linguagem é social, porque se constitui no movimento histórico, no espaço das práticas sociais.

    Inevitavelmente, o sujeito não se apropria da linguagem num movimento solitário, individual; pelo contrário, há uma forma social de apropriação da linguagem em que está refletindo o modo como ele o fez. Esse momento de apropriação é espaço social de conflito, um conflito que se estabelece entre o que já está dado, construído, o que tem sentido já garantido, e o novo, o diferente, aquilo que vem para deslocar o já construído. É no movimento parafrásico (retorno constante ao mesmo dizer) e polissêmico (força que desloca o garantido) que está presente o social como força contraditória constitutiva da linguagem.

    A presença constante dessa força contraditória revela-nos que a ideologia e a linguagem são inseparáveis. A relevância da linguagem, na perspectiva em que estamos evidenciando, não é a sua função comunicacional, mas o funcionamento da relação imaginária que os homens estabelecem com suas condições reais de existência, da intervenção da ideologia e dos processos histórico-sociais, elementos que a literatura toma para si como pano de fundo de sua constituição temporal.

    A relação existente entre a História e a linguagem faz com que a língua possa ter significado. Essa relação se faz perceptível, por exemplo: na memória que constitui o interdiscurso; na seleção que o sujeito faz ao usar uma forma linguística e não outra; no caráter de não estabilidade do sentido, na determinação do sentido literal.

    Para Deleuze e Guattari¹³, as obras de arte têm ressonância em todo o social. São capazes de produzir sentidos e significados. Elas colaboram como proliferadoras do real, ultrapassando sua naturalização. São máquinas históricas de saber, por isso são produtoras de uma dada sensibilidade e instauradoras de determinada forma de ver e dizer a realidade. Os estudos de discurso e de manifestações do texto literário articulam as configurações do lugar ideológico das representações de identidade, tais como nacionalidade, território, classe, poder, gênero e etnia. A narrativa coutiana e os estudos culturais, visando a presença do fantástico, têm como base a análise das estruturas narrativas valorizando a literatura, a memória e as representações identitárias.

    A narrativa do escritor moçambicano revela uma linguagem em busca de um registro próprio, na qual cria neologismos, altera com maestria a sintaxe e, por meio de ferramentas semânticas, utiliza frases do imaginário popular e da tradição oral, o que se faz presente nas falas dos personagens. Ele utiliza ainda figuras de linguagem como metáforas e metonímias, bem como usa e abusa do uso de provérbios a fim de evidenciar a sabedoria de pessoas simples e dos papéis sociais destas, dado o fato do engajamento político que o autor, desde jovem, vivencia na realidade moçambicana. As metáforas nos fazem captar as mudanças de sentido na linguagem e as diferenças em detrimento das identidades. Além disso, possibilitam compreender a trama histórica que está sendo tecida, não apenas uma questão de representação, ou analogia de um real que servirá de referente, mas que também gera a história produtora de sentido, de realidade.

    Certamente, a análise textual revela, sobretudo, a evidência de elementos textuais/linguísticos que comprovam a busca da identidade cultural e linguística com o advento da globalização. O objetivo primordial é compreender a existência de mitos femininos das águas em literaturas da África lusófona, e sua diáspora, nomeadamente, nas experiências de Moçambique e do Brasil.

    Teóricos como Jacques Le Goff¹⁴, Carlo Ginzburg¹⁵ e Homi Bhabha¹⁶ contribuem para o alargamento dos conceitos veiculados nesta pesquisa sobre a interface Literatura/História, analisando criticamente os textos e suas narrativas, assim como o percurso metodológico. Assim, compreende-se a literatura como discurso crítico, como um modelo historiográfico, com a tese implícita.

    Chartier¹⁷ enfatiza que historiadores não devem substituir uma teoria redutiva da cultura, enquanto reflexo da realidade social, por um pressuposto igualmente redutivo, cujos rituais e outras formas de ação simbólica, simplesmente, expressam um significado central, coerente e comunal. Ele ainda recomenda que os historiadores criem suas próprias estratégias para ler os documentos, cuja compreensão depende de uma grande diversidade de fatores, por exemplo, a idade dos leitores e as inovações tipográficas que surgem. A contemporaneidade tem feito com que os historiadores revisem as posturas diante da crise de tantos paradigmas ora por eles seguidos ou preconizados, obrigando-os a reduzir inevitavelmente a manipulação dos símbolos a algumas afirmações mais ou menos fixas sobre as realidades históricas, quase sempre redutivas ou metafísicas.

    Os problemas de interpretação dos textos literários e as múltiplas visões da realidade poética ocorrem não só porque a história os produz, mas porque a literatura é dotada de tamanha grandeza que demonstra relação enorme com as demais experiências humanas. É inquestionável que as línguas e as culturas, que os lugares e as épocas se diferem amplamente; mas a história literária sempre será capaz de encontrar certo ceticismo sobre a maneira como ela pode penetrar nos segredos da linguagem dos documentos.

    Este livro tem como objetivo fazer um estudo sobre questões contemporâneas no mencionado romance de Mia Couto. A proposta é buscar uma comprovação de quais são os limites do conceito de representação feminina e a história dos mitos femininos, pondo em paralelo a realidade das populações de Moçambique na perda de ligação com sua ancestralidade. Trata-se de um escritor cuja obra tem despertado o interesse dos pesquisadores em função dos temas abordados e pela própria riqueza das histórias do continente africano, cujas influências em nossa cultura são incontestáveis.


    ⁶ O título da dissertação que deu origem a este livro é Narrativas da Ancestralidade Moçambicana: o Mito Feminino das Águas em O Outro Pé da Sereia de Mia Couto.

    ⁷ GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas, 1991.

    ⁸ LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Técnicas de pesquisa: planejamento e execução de pesquisa, amostragens e técnicas de pesquisas, elaboração, análise e interpretação de dados. São Paulo: Atlas, 1996.

    ⁹ OLIVEIRA, Eduardo David de. Filosofia da ancestralidade: corpo e mito na filosofia da educação brasileira. Curitiba: Editora Gráfica Popular, 2007. Designaremos o livro, ao longo do texto, como Filosofia da Ancestralidade.

    ¹⁰ HUNT, Lynn. A nova história cultural. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

    ¹¹ CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 34. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 20.

    ¹² VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Tradução Alda Baltar e Maria Auxiadora Kneipp. 3. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1995, p. 11.

    ¹³ DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Tradução Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

    ¹⁴ E GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão et al. Campinas, SP: UNICAMP, 2003.

    ¹⁵ GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição. Tradução Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

    ¹⁶ BHABHA, Homi. K. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

    ¹⁷ CHARTIER, Roger. Textos, Impressão, Leituras. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 211-238.

    CAPÍTULO 2

    MOÇAMBIQUE: DO MITO À CULTURA

    Este capítulo aborda o mito feminino das águas a partir do romance na perspectiva teórica de Eliade¹⁸, Durand¹⁹, Rocha²⁰, Barthes²¹. Para tanto, historiamos o conceito de mito verificando a influência da divindade Kianda, uma sereia, personagem central do romance, a fim de compreender a expressão e a dinâmica dos espaços culturais e como a comunidade moçambicana cultua este mito das águas. Propomos, com o capítulo, investigar: a existência do culto à deusa Kianda na experiência contemporânea a partir do lugar e da paisagem da savana africana, nomeadamente Moçambique; a valorização, na literatura africana de língua portuguesa, de divindades religiosas nas narrativas pós-coloniais; a compreensão da influência dos colonizadores na religiosidade dos povos do continente africano. As marcas características do colonizado são frequentes na construção dos personagens, sendo a anulação de identidade a mais frequente, como se observa neste trecho do escravo angolano Nimi Nsundi: – A minha língua é o português, nunca mais terei outra.²²

    O romance OPS é a força motriz para a análise da temática da ancestralidade na medida em que se apresenta como um viés de discussão sobre a realidade mítica da tradição africana, que muito influencia a sociedade brasileira. Percebe-se a crescente valorização e o resgate da origem de nossas manifestações religiosas dos cultos de matriz africana, sejam eles de qualquer nação: Angola, Jeje, Nagô, Banto ou Caboclo. Na opinião de Oliveira:

    [...] A cosmovisão africana redefine as concepções filosóficas a partir de sua própria dinâmica civilizatória, de acordo com o escopo de sua forma cultural. Assim, o universo é pensado como um todo integrado; a concepção de tempo privilegia o tempo passado, o tempo dos ancestrais, e sustenta toda a noção histórica da cosmovisão africana; já a noção de pessoa é vista de modo muito singular, cada qual possuindo seu destino e procurando aumentar a sua Força Vital, o seu axé; a Força Vital que é a energia mais importante dentre esses povos, insufla vitalidade ao universo africano. A palavra, por sua vez, é tida como um atributo do preexistente, e por isso mesmo, promovedora de realizações e transformações no mundo, veículo primordial do conhecimento. A morte, por seu turno, não significa fim da vida, mas parte do processo cíclico da existência que tem como referência maior os ancestrais. A morte é restituição à fonte primordial da vida, a lama que está situada no orun. A família é a base da organização social. Os processos de socialização forjam coletivamente o indivíduo, fundamentando o objetivo a ser atingido socialmente: o bem-estar da comunidade. Por fim, o poder, que é vivido coletivamente, tem o objetivo de promover a comunidade e garantir a ética africana. ²³

    2.1 Mito em Busca de uma Definição

    Antes de fazermos uso do conceito de mito, é necessário estudar o percurso do vocábulo sereia²⁴ como parte da História, considerando sua importância como chave para compreender o romance OPS, objeto de estudo, bem como estudar o suporte teórico sobre a narrativa mítica e o realismo fantástico que abordam o mito de modo geral e os mitos femininos das águas, dos rios e dos mares, fazendo relação com as orientações religiosas nas civilizações do continente africano, nas experiências culturais das ex-colônias portuguesas, como Moçambique. Por isso, definimos pelo sincretismo da divindade das águas, Kianda, e pelo confronto

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