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Josué de Castro: Um pequeno pedaço do incomensurável
Josué de Castro: Um pequeno pedaço do incomensurável
Josué de Castro: Um pequeno pedaço do incomensurável
E-book478 páginas5 horas

Josué de Castro: Um pequeno pedaço do incomensurável

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Sobre este e-book

Mais do que nunca, quando as desigualdades sociais emergem com tanta força, homens como Josué de Castro devem ser lembrados. O livro de Helder Remigio não só recupera a trajetória intelectual e política de Josué de Castro, mas baseado numa rigorosa pesquisa de fontes, oferece uma análise aprofundada das suas redes de relações, das opções teóricas que deram suporte a sua produção intelectual e ao seu ativismo político. A atualidade do pensamento de Josué de Castro e a qualidade do trabalho de Helder Remigio são razões mais que relevantes para recomendar esta obra. Boa leitura!
IdiomaPortuguês
Data de lançamento2 de mar. de 2023
ISBN9788546221981
Josué de Castro: Um pequeno pedaço do incomensurável

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    Josué de Castro - Helder Remigio

    PREFÁCIO

    JOSUÉ DE CASTRO: LUTA E ATIVISMO POLÍTICO

    Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele – o

    anjo da história – vê uma catástrofe única, que acumula

    incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés.

    Walter Benjamin

    Nunca esquecerei o encontro que tive no Boulevard Saint Germain, numa fria tarde de outono, por entre folhas caídas e vento áspero, com Josué de Castro, de mãos enterradas nos bolsos laterais do sobretudo, o passo vagaroso, o olhar ensimesmado e distraído. Vinha vindo pela calçada fronteira, como se não soubesse em que se ocupar na tarde cinzenta, longe de sua pátria, longe de seus livros, longe de seus amigos. Para mim, que o conhecera extrovertido e fluente, sua figura alta e triste impressionou. Dir-se-ia que o exílio lhe tinha tocado a fonte da vida. José Montello

    A cena que o escritor maranhense Josué Montello emoldura a aparição de Josué de Castro, em uma cinzenta e fria tarde de outono, tem as cores da tristeza ou da distância dos amigos, dos livros e da pátria. Tal cenário – de um homem exilado pelo golpe militar de 1964 e acolhido pelo governo francês – inspira-nos a pensar com as tragédias shakespearianas, e usar a imagem como metáfora para os dias sombrios da ditadura militar no Brasil. A representação simbólica criada por Montello, profundamente enigmática, corporifica a perda de Josué – da democracia e da liberdade – e preanuncia o que estava por vir com acentuada violência, o AI – 5 e o ápice das torturas. Lembra-nos a narrativa da peça Macbeth, quando o rei Duncan, que em breve seria assassinado, ao olhar o castelo de seu algoz e acompanhado por ele, vê no topo das torres os ninhos das andorinhas e diz que lá o ar é delicado. Contudo, depara-se também com a sinistra figura do corvo negro, em que Lady Macbeth informa, ao anunciar a chegada da comitiva real, que até o corvo enrouquece... A imagem sombria de Josué de Castro, evocada por Montello, descrita pouco tempo antes da sua morte, é simbólica da existência de um homem que, ao buscar o ar delicado das andorinhas, mantinha vivo no mais alto patamar o seu desejo de erradicar a fome no Brasil e mesmo no mundo Ocidental (estava ligado a OEA), ou pelo menos, vista como prioridade das políticas públicas. Morreu de enfarte e de tristeza, talvez por descobrir que seria impossível a vida sem liberdade em seu país!

    O livro de Helder Remigio – Josué de Castro: um pequeno pedaço do incomensurável – que tenho o enorme prazer de apresentar, chega em boa hora, em um momento especial da história política do Brasil e do mundo em que vivemos. É um livro em que o autor centra suas análises na trajetória intelectual e política do homem, verdadeiro ativista, que combate à fome e a explica, desconstruindo os vários discursos das elites dominantes e demais setores da sociedade, de que a fome não é um fenômeno natural. É produto da distribuição desigual da riqueza e das dinâmicas governamentais que representam os interesses de poderosos grupos econômicos. Grupos que trilham a política da miséria em nome do progresso. Como disse Maria Yeda Linhares (citada por Hélder), que conhecia muito bem o trabalho de Josué:

    O dilema pão ou aço a que aludia – Josué de Castro – no final da década de 1950, e o aniquilamento progressivo dos recursos naturais, sem atentar para o equilíbrio ecológico, levariam não ao extermínio da pobreza e, sim, à ampliação da miséria e da desigualdade social.

    Helder com muita competência, em seu livro, pontua o percurso de Josué, seus estudos e análises, relatórios divulgados por ele no Legislativo e no Executivo, no espaço público, enfim, desde o final dos anos 1930, com Getúlio Vargas, até ser nomeado embaixador do Brasil em Genebra, pelo governo Goulart. O golpe militar em 1964 muda não apenas o seu destino, mas o destino da nação, de forma irreversível na cadência dos anos – dos 21 anos – que se seguiriam. Josué, impedido de retornar ao Brasil, comporia o grupo dos exilados brasileiros, junto com outras figuras de grande peso político e, muitos dos quais, homens e mulheres que defendiam políticas sociais comprometidas em defender a igualdade social, a reforma agrária e muitas outras bandeiras de luta democráticas. No entanto, continuará, no exterior, sua luta pelo combate à fome como presidente de um organismo que pretendia criar alternativas de desenvolvimento para os países mais pobres, o Centro Internacional para o Desenvolvimento (CID), como afirma Helder.

    Josué de Castro deixou vários livros, entre os quais, um dos mais expressivos e importantes sobre o Brasil é A geografia da fome, de 1946. A atualidade deste livro é sem igual e paradigmática dos acontecimentos do nosso tempo, relacionados ao que ele chamava de a epidemia da fome, adiantando as condições cada vez mais precárias das vidas de milhares de pessoas que pouco importam. Médico, estudioso de várias áreas do conhecimento, como da geografia, da antropologia, da história mapeou, em A geografia da fome, o fenômeno no Brasil e a classificou como epidemia constituída na estrutura social – miséria – do capitalismo.

    O livro de Helder Remigio, resultado de uma tese de doutorado na UFPE, que tive o prazer de orientar e mais a aprender, tem também a sua história. Enquanto fazia seu doutorado, foi bolsista Capes, frequentava vários cursos na UFPE, obrigatórios ou não, porém importantes para sua formação e estudos. Acompanhou-me em vários cursos. Sua presença atenta às melhores leituras estimulava os bons debates. Era sempre bom tê-lo ali, atento, colaborando com ricas análises. Depois dos cursos na UFPE, foi para o Rio de Janeiro com uma bolsa de mobilidade discente da Facepe, contando com a orientação da brilhante historiadora Marieta de Moraes Ferreira, na UFRJ; em seguida, obteve financiamento para receber a denominada bolsa-sanduiche, da Capes, a fim de continuar seus estudos na França. Em Paris, para dar cabo a sua pesquisa sobre Josué de Castro, contou com a orientação do prestigiado historiador François Dosse. Esta trajetória de Helder é exemplar da formação de um doutor nas universidades públicas do Brasil, onde se investe no ensino e na pesquisa e colhe-se os melhores resultados, como teses e livros dos programas de pós-graduação.

    O autor deste livro não mediu esforços para pesquisar diversos arquivos e ler tudo que caísse em suas mãos, correr atrás de informações que pudessem dar a ele acesso a documentos os mais variados possíveis. Desde os arquivos mais diversos à produção de entrevistas com os familiares de Josué de Castro – sob as regras da operação historiográfica – que lhe deram informações valiosas. O seu trabalho em recolher documentos foi incansável. Entrevistou a filha de Josué, em Paris, Sônia Castro, que relatou parte de um cotidiano doméstico e falou sobre a atuação de Josué na Universidade de Vincennes – universidade que se despontava como vanguarda do ensino e da pesquisa inovadora, a partir dos movimentos de 1968 e após eles – contou, ainda, sobre a admiração dos alunos e do papel de Josué na Universidade. Além disso, entrevistou em Vincennes, o importante intelectual, geógrafo, Alain Bué, que lhe passou informações valiosas sobre o trabalho de Josué de Castro na universidade e na produção intelectual, neste outro momento de sua vida. No Brasil, o filho de Josué, Josué Fernando Castro, colaborou com informações e documentos inéditos. De todo modo, Helder foi beneficiado pelos arquivos que a família de Josué cuidou de manter e depois doar aos arquivos do Instituto Joaquim Nabuco – Fundaj, em Recife.

    É necessário, ainda, enfatizar a postura crítica de Hélder Remígio para com a análise dos documentos e, sobretudo, a lição que deixou ao enfrentar novas historicidades – opostas a tradicional historiografia – que deu ao autor munição para enfrentar o desafio, em seus estudos, para escrever sobre de Josué de Castro. A contribuição historiográfica, social e humana de Helder aparece colada a sua prática: percorre os arquivos, analisa o processo de arquivamento e colhe inúmeros registros das atividades de Josué – pois este se preocupava, para o bem dos historiadores, em anotar e registrar suas atividades e ideias, guardar e preservar a memória (que contou com a ajuda de sua mulher, Glauce Castro). Encontram-se neste universo documental as atividades do homem público, propondo políticas públicas para o desenvolvimento do Brasil em que não se excluísse os pobres, ou melhor, que apontasse soluções para a fome. Por outro lado, Hélder também analisou a produção intelectual de Josué na escrita de seus livros, de grande teor literário, como Geopolítica da fome e Homens carangueijos, além de precisar a sua dedicação acadêmica interdisciplinar.

    Há um trabalho cuidadoso na composição do livro, em que a organização dos capítulos, que apresenta o repertório das referências teóricas e bibliográficas, propicia uma visão de conjunto que nos auxilia a compreender melhor a abordagem feita pelo autor. Difíceis escolhas, que dependem do manuseio contínuo da documentação e das perguntas elaboradas a todo o momento ao tema proposto, operação que atuará na performance da escrita.

    O autor deste livro, assim, depois de lidar com inúmeros quebra-cabeças, narra com rara sensibilidade literária a trajetória individual e social, as escolhas políticas e humanistas de Josué de Castro, sob as quais aparecem os rastros documentais e a composição narrativa que oferecem visibilidade à obra de Josué, como obra de uma vida. E o autor, Helder Remigio, entrega o seu trabalho final, um livro de excelente qualidade, com base nas revisões da tese estimuladas por sua releitura crítica e os ricos diálogos com sua banca de doutorado. Uma quase biografia de um autor, Josué de Castro, que depende agora de nós, do nosso trabalho de rememoração para voltar à cena da luta! Temos este débito – com alegria – para com Josué de Castro, como clama Walter Benjamin: existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. (Sobre as teses da história)

    Nesta configuração é que se insere a narrativa de Helder Remigio: A morte no sentido como emprego aqui, não significa um fim em si mesma, mas a possibilidade de refletir sobre a produção da memória de Josué de Castro e de um momento da história do Brasil em que o país estava sob jugo de um regime autoritário. O nosso encontro com o passado alerta o presente!

    Uma última palavra: se no território dos vivos O sol de amanhã jamais o verá – como dirá Shakespeare sobre o rei Duncan, em Macbeth – diremos nós, sobre Josué de Castro: há nele uma mensagem que lampeja, impregnada na sua vida-memória e, quero acreditar, que nos ajudará a ver melhor, compreender melhor e iluminar o presente e o futuro.

    Nas páginas deste livro!

    Professora Regina Beatriz Guimarães Neto (UFPE)

    Recife, 31 de julho de 2020

    A HISTÓRIA DE UMA PESQUISA

    Este livro é resultado de uma tese de doutoramento que teve como proposta central estudar a trajetória de Josué de Castro, procurando compreender como se construiu como intelectual e político entre as décadas de 1930 e 1970. O interesse pela temática surgiu por meio de leituras sobre a obra de Josué de Castro, realizadas durante o estágio à docência no curso de Mestrado, desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura (UFRPE), quando no curso de Gastronomia lecionei a disciplina de História da Alimentação. Naquele momento de elaboração da ementa da disciplina, notei que a bibliografia aplicada em outros semestres tratava a história da alimentação como uma área técnica, sem inferir na dimensão social dos processos alimentares. Um questionamento surgiu: já que iria trabalhar a alimentação, não poderia deixar de problematizar a ausência dela, em outras palavras, pretendia colocar em pauta o tema da fome na disciplina.

    Alguns meses passaram e o livro Geografia da Fome (1946) se tornou uma importante referência para meus estudos, sobretudo quando tive que problematizar relatos de memória oral na pesquisa que ora realizava para a dissertação de mestrado². A fome era assunto recorrente na elaboração das memórias de comerciantes de alimentos do sertão de Pernambuco. Desde então, passei a me interessar pelas produções e principalmente pelo acervo de Josué de Castro. Em diálogo com interlocutores tive a informação de que o acervo pessoal de Josué de Castro estava em fase de transferência do Centro Josué de Castro³ para a Fundação Joaquim Nabuco - Fundaj, instituição que me proporcionou grandes aprendizados quando fui estagiário ainda nos tempos de graduação. A Fundaj, prontamente viabilizou o desenvolvimento da pesquisa na parcela do acervo que já estava tratada e acondicionada.

    A motivação para desenvolver a pesquisa também foi aguçada quando verifiquei que na área de história poucos trabalhos acadêmicos tinham se dedicado a estudar Josué de Castro considerando a sua dimensão histórica. Por outro lado, uma vasta produção sobre este autor foi desenvolvida em outras áreas do conhecimento, principalmente nas ciências sociais, na geografia e na nutrição. A produção do já dito trouxe uma complexidade maior para a pesquisa, pois era preciso compreender quais os caminhos de escrita e problematizações se aproximavam daquilo que pretendia realizar. O principal questionamento teórico esteve relacionado sobre como operar a dimensão do sujeito histórico em Josué de Castro, pois uma grande parcela das teses e dissertações não trabalhavam com a ideia de multiplicidade do sujeito, tendo, em alguns casos, cristalizado e reproduzido narrativas míticas em torno da figura de Josué de Castro⁴. Nesse sentido, estudar uma trajetória não significa estar preso às amarras do plano individual, mas sim perceber as construções entre a personagem e o período estudado, analisando as tensões, as relações de poder e os horizontes de expectativa.

    Josué Apolônio de Castro nasceu em 5 de setembro de 1908 na cidade do Recife, faleceu em 1973 em Paris, durante o período em que esteve exilado após o golpe civil-militar de 1964. A sua produção intelectual esteve aliada aos cargos públicos que ocupou como médico, professor universitário, presidente do Conselho Consultivo da FAO⁵, deputado federal, embaixador, e presidente do Centro Internacional de Desenvolvimento, em Paris (CID). Em relação à dimensão política e social do seu pensamento, desenvolveu ações para desnaturalizar a fome como atributo dos pobres e resultado das condições climáticas e de solo. Destacam-se, no âmbito dos debates acerca da sociedade brasileira, os estudos de Josué de Castro sobre as condições alimentares da população e as análises referentes à estrutura agrária do país. Para desenvolver esses temas, Castro se situou academicamente no campo de saber da geografia.

    Para esclarecer as minhas proposições se faz necessário apresentar algumas informações sobre a produção de Josué de Castro. A sua obra foi traduzida em 25 idiomas, ganhou repercussão internacional, principalmente quando publicou Geografia da Fome (1946) e Geopolítica da Fome (1951), livros que circularam com destaque tanto nos Estados Unidos da América como na União Soviética, em tempos de Guerra Fria. No início da década de 1960, estima-se que sua obra havia vendido mais de 400.000 exemplares em todo mundo. Assim sendo, suas ideias estiveram voltadas, desde a década de 1930, para a compreensão do fenômeno da fome que considerava ser fruto da exploração do homem pelo homem.

    Nesse sentido, estudar a trajetória⁶ de Josué de Castro significa contribuir para uma melhor compreensão da sua produção intelectual⁷ marcada pelos acontecimentos da experiência democrática brasileira de outrora, mas também se fez presente nos anos 1990 e início dos anos 2000.

    Desde o período de Redemocratização, na década de 1980, os debates em torno das políticas de distribuição de renda, justiça social e cidadania entraram novamente na ordem do dia. Alguns programas sociais como o movimento Ação da Cidadania contra a Fome, idealizado pelo sociólogo Herbert de Souza na década de 1990, assim como o programa Fome Zero criado durante o governo Lula em 2003, representam as principais experiências. Esses programas permeiam não somente o pensamento de muitos intelectuais que discutiram a relação entre o Estado, população, território e alimentação, mas também significam a retomada das ideias de Josué de Castro no que concerne aos programas governamentais de segurança alimentar.

    Durante a década de 1950, Josué de Castro foi deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) de Pernambuco por duas legislaturas. Na sua atuação enquanto deputado defendeu a criação de uma reserva de alimentos no Brasil para os momentos de crise, a desapropriação de terras por interesse social, além de um plano nacional de alimentação e de merenda escolar. Destaca-se ainda a sua preocupação com a reforma agrária e a aproximação com os movimentos de trabalhadores rurais, especialmente com as Ligas Camponesas. Josué de Castro participou dos debates que criaram a Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e combateu enfaticamente o modelo de desenvolvimento adotado pelo governo de Juscelino Kubistchek.

    Em 1962, Josué de Castro renunciou ao mandato de deputado federal por ter sido nomeado, pelo então presidente João Goulart embaixador do Brasil para assuntos ligados à Organização das Nações Unidas (ONU) em Genebra. No entanto, dois anos depois, foi destituído do cargo com o golpe civil-militar de 1964. Assim como muitos intelectuais e políticos, Josué de Castro teve seus direitos políticos cassados. Naquela ocasião, vários países lhe ofereceram asilo político, mas a França foi o país escolhido por ele para viver. Lá Josué de Castro teve destacada atuação intelectual como professor da Universidade de Vincennes e presidente de um organismo que pretendia criar alternativas de desenvolvimento para os países mais pobres, o Centro Internacional para o Desenvolvimento (CID).

    Este livro intitulado Josué de Castro: um pequeno pedaço do incomensurável insere-se em uma discussão historiográfica que pensa as trajetórias e biografias a partir da perspectiva da multiplicidade do sujeito, com o objetivo de produzir uma narrativa que possibilite novos questionamentos e interpretações. Desse modo, analiso Josué de Castro em sua pluralidade, pois como afirmou o historiador François Dosse: a prática do historiador está, pois, por princípio, aberta a novas interpretações, a um diálogo sobre o passado aberto para o futuro⁸.

    Penso em que medida os estudos de Josué de Castro, voltados para a problemática da fome, da miséria, da condição social dos trabalhadores, contribuíram para a formação de imagens de um intelectual e político preocupado com as questões sociais. Desse modo, interessa-me, também, analisar os fios, as redes, as teias que este personagem construiu para ocupar cargos públicos nacionais e internacionais que foram fundamentais para que se projetasse como intelectual e político⁹ em uma dada configuração do Estado nacional brasileiro.

    Entre as décadas de 1930 e 1960, o Estado brasileiro passou por um processo de constituição por meio do nacional-estatismo. Essa cultura política foi marcada por um Estado controlador e intervencionista que produziu políticas públicas desenvolvimentistas e regulou o mercado. A formação de uma aliança entre Estado, empresários e trabalhadores foi a base de sustentação desse modelo. As direitas se opuseram a esse projeto nacionalista, que atraiu setores da esquerda, e passaram a combatê-lo duramente¹⁰.

    A formação desse modelo de Estado no Brasil, propiciou o engajamento de muitos intelectuais que se inseriram em projetos políticos e estatais. Josué de Castro, durante o primeiro e o segundo governo de Getúlio Vargas participou de políticas públicas ligadas ao setor da alimentação e da nutrição. Posteriormente, no governo de Juscelino Kubistchek, como deputado federal, defendeu a reforma agrária, e a criação da Sudene. Durante o governo João Goulart, se tornou Embaixador do Brasil em Genebra. Nesse sentido, acredito que Josué de Castro foi se construindo enquanto intelectual e político, por meio do engajamento aos projetos do Estado nacional-estatista no Brasil. A partir do golpe civil-militar de 1964, o Estado brasileiro rompeu com esse modelo e as ideias e práticas políticas de Josué de Castro não tiveram mais lugar na configuração política que se apresentou. A relação de Josué de Castro com os projetos do nacional-estatismo será abordada no decorrer deste trabalho.

    No momento em que este livro chega às livrarias, a fome está novamente na ordem do dia. Estima-se que aproximadamente 51% dos lares brasileiros encontram-se em situação de insegurança alimentar. As cenas de pessoas em busca de ossos para se alimentar, as mensagens de desolação nos semáforos das grandes cidades denotam a destruição das políticas de distribuição de renda e aumento vertiginoso da pobreza no Brasil. Nesse sentido, se faz urgente (re) visitar o pensamento de Josué de Castro com a intenção de buscar caminhos e lançar luz para o horizonte de expectativa do país.

    Estudar uma vida, uma trajetória, itinerários e percursos biográficos significa pensar as personagens como figuras que estão se constituindo, experimentando-se, influenciadas pelas demandas sociais do seu tempo. No passado, as biografias e trajetórias eram pensadas a partir de uma história exemplar, onde a produção da escrita estava condicionada à construção de mitos e modelos de conduta. Da maneira como penso a escrita biográfica, os autores, os intelectuais, os políticos não são mais objetos de culto, mas sim um campo de pesquisa, de possibilidade da utilização de novos métodos e interpretações¹¹.

    Desse modo, destaco um aspecto que deve ser lembrado na elaboração da escrita de uma trajetória. A relevância das incertezas da vida, do inapreensível, da indefinição do horizonte de expectativa. Desse modo, a possibilidade de uma individualidade fixa, unitária e coerente parece então se perder em meio a uma pluralidade de identidades, referências, locais¹². A dimensão plural de uma vida não permite o enquadramento em uma narrativa linear, pois é dotada de múltiplas representações e sentidos. Cabe ao historiador apontar para o leitor as possibilidades daquilo que poderia ter sido, das bifurcações, dos (des)caminhos, das escolhas.

    No que diz respeito às discussões teóricas, acredito que as concepções de Michel Foucault são importantes para analisar o conceito de intelectual, contribuindo para a compreensão de como as ações de Josué de Castro se legitimaram a partir das relações entre o saber e o poder¹³. Nesse sentido, analiso as dimensões do intelectual e do político, de modo algum os distanciando, mas buscando aproximações e similitudes. Por outro lado, na problematização de Josué de Castro como um polímata, se pretende entender como transitou e buscou ferramentas metodológicas para situar o seu pensamento por meio de uma proposta interdisciplinar, principalmente atrelada à geografia e à nutrição. Nesse sentido, o conceito de campo intelectual de Pierre Bourdieu possibilitou compreender as disputas, limites e escolhas de Josué de Castro na vivência como professor universitário, e escritor, bem como me auxiliou a pensar o seu lugar de fala¹⁴.

    Analisar a problemática relativa aos arquivos e sua importância para a pesquisa histórica tornou-se uma questão necessária para esse trabalho. No arquivo o historiador reúne rastros, fragmentos, pedaços do passado inspirado pelas questões do presente, para realizar a operação historiográfica¹⁵. O arquivo é complexo em sua materialidade, principalmente quando se dimensiona as diversas temporalidades e regimes de historicidade que habitam os documentos. É a partir dessa prática complexa, permeada por regras e estatutos, que o historiador se debruça sobre o mundo dos documentos em busca de questões que norteiem as suas pesquisas.

    Josué de Castro produziu inúmeros registros das suas atividades, abarcando sua produção intelectual, de homem público e da vida pessoal¹⁶. São muitos os fragmentos documentais que se estendem temporalmente, dos primeiros anos do curso de Medicina iniciado na Bahia na década de 1920, até a repercussão da sua morte em Paris, 1973. Um arquivo pessoal é compreendido como um lugar de produção, um dispositivo detentor de uma ação estratégica atrelada às relações de poder. Nesse sentido, um arquivo pessoal possui peculiaridades distintas em relação a um arquivo eminentemente institucional, principalmente nos processos de classificação e seleção do que deve ou não deve ser preservado¹⁷.

    Josué de Castro e seus familiares se preocuparam em guardar documentos ligados as suas atividades profissionais e pessoais. A maioria da documentação foi organizada e catalogada inicialmente por Glauce de Castro, sua esposa¹⁸, porém contou também com o acompanhamento e participação do próprio Josué de Castro, que demonstrava interesse pela atividade de guardar e preservar sua própria memória. A constituição desse arquivo pessoal contou, ainda, com colaborações de amigos, jornalistas que enviavam recortes de jornais, cartas, relatórios, livros e que, ao longo dos anos, foram compondo o acervo¹⁹.

    A partir da pesquisa e da leitura dos documentos do acervo pessoal Josué de Castro, salvaguardado atualmente pela Fundação Joaquim Nabuco²⁰, pude compreender como se deu o processo de autoconstrução de Josué de Castro a partir do trânsito entre campos do saber, bem como a escolha dos objetos das suas pesquisas²¹. A partir do avanço da pesquisa, elegi temas e subtemas que passaram a fazer parte das discussões iniciais sobre a estrutura da tese. Apesar da riqueza e diversidade do acervo pessoal em questão, esses pressupostos foram fundamentais para perceber a necessidade de entrecruzamento com outros acervos de pesquisa.

    Um detalhe importante sobre a composição do acervo pessoal de Josué de Castro é que a documentação está mais concentrada entre as décadas de 1940 e 1970, período em que se tornou escritor de obras que circularam internacionalmente, estabeleceu redes intelectuais em diversos países, e passou a acumular um maior número de documentos. Desse modo, a necessidade de cruzamento de informações com outros acervos documentais, inerente à pesquisa acadêmica, também se faz obrigatória no que concerne ao período em que Josué de Castro se formou em medicina, no Rio de Janeiro em 1929, perpassando por toda a década de 1930, até a publicação de Geografia da Fome em 1946, principalmente pela fragmentação e ausência de documentos desses momentos históricos. Esse foi o caso das pesquisas realizadas em outros estados brasileiros, bem como na França, onde Josué de Castro viveu o exílio.

    No entanto, a diversidade documental, as inúmeras possibilidades de pesquisas, as muitas histórias a serem contadas, não podem se transformar em um culto ao arquivo. O historiador necessita buscar estratégias para não ceder, pois a obediência cega à positividade do arquivo, a seu poder absoluto, leva tanto a uma impossibilidade da história quanto a recusa do arquivo²². Ao mesmo tempo analisar o arquivo como um dispositivo que possibilita a criação de uma autoimagem de Josué de Castro se faz latente, onde se percebe a intencionalidade do titular em demarcar a multiplicidade de sua própria imagem.

    Na tessitura deste trabalho estive atento à dimensão histórica, lembrada principalmente por meio da relação entre o indivíduo e o tempo vivido. Os acontecimentos e as demandas sociais que marcaram uma grande parte do século XX foram preponderantes para constituir o sujeito Josué de Castro. As redes intelectuais e políticas e as experiências em diversos campos do saber surgem como um caleidoscópio e apontam tanto para o acervo como para a dimensão múltipla da personagem em questão. Afinal, cada um de nós deve ser compreendido como um lócus no qual uma incoerente e frequentemente contraditória pluralidade de determinações relacionais que interagem entre si²³.

    ***

    Neste texto que ora apresento, no primeiro capítulo intitulado: A cena da morte e o palco da vida, analiso como acontecimento a morte de Josué de Castro, procurando compreender como o fato foi registrado pelos periódicos nacionais e internacionais. A morte no exílio e a relação com a memória, em um momento de restrição das liberdades individuais na história do Brasil, serão os temas abordados neste capítulo. Nesse primeiro momento, utilizo como fontes documentais, periódicos, fotografias e relatos orais.

    No segundo capítulo, que tem como título Um mundo chamado Josué de Castro, apresento como centro das discussões a formação de Josué de Castro enquanto intelectual. O ponto de partida é a sua formação acadêmica em Medicina, e o trânsito por diversos campos do saber na sua atuação como professor universitário. No que concerne às fontes documentais utilizadas para composição do capítulo, fotografias, periódicos, correspondências e obras se constituem como as ferramentas que possibilitaram tecer a narrativa proposta.

    No terceiro capítulo intitulado Geo(grafias) do tempo, analiso como a passagem de Josué de Castro em instituições de pesquisa, voltadas para a área da alimentação e da nutrição, colaborou para a publicação de uma das suas obras mais conhecidas: Geografia da Fome. As relações de Josué de Castro com os projetos políticos do Estado Novo, a problemática teórica em torno do que é um autor, a circulação da obra de Josué de Castro na imprensa brasileira, bem como a materialidade da primeira edição de Geografia da Fome, são alguns dos temas abordados neste capítulo. Entre os documentos que subsidiaram o capítulo estão: periódicos, correspondências, livros, prefácios e fotografias.

    O quarto capítulo, intitulado Josué de Castro no limiar do labirinto, versa sobre a participação de Josué de Castro na Comissão de Bem-Estar Social, criada no segundo governo Vargas e a relação das políticas públicas alimentares desenvolvidas nesse órgão com a publicação de Geopolítica da Fome (1951). Concomitantemente, problematizo a articulação política que levou Josué de Castro a presidir entre 1952-1956 o Conselho Consultivo da FAO e também a se tornar deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro. No que diz respeito às fontes, além da obra Geopolítica da Fome, utilizo periódicos, correspondências, e documentos do acervo pessoal de Alzira Vargas no CPDOC-FGV.

    No quinto capítulo, denominado O Homem, a Terra e a Luta, proponho estudar a atuação política de Josué de Castro, analisando como se posicionou enquanto deputado federal em relação à reforma agrária e à criação da Sudene. Também problematizo, por meio da obra de autoria de Josué de Castro Sete Palmos de Terra e um Caixão, a sua aproximação com o campo das esquerdas, até ser cassado em 1964. Neste capítulo, utilizei a documentação do acervo pessoal de Josué de Castro, periódicos da Biblioteca Nacional e os anais da Câmara dos Deputados.

    A definição de um tema, a pesquisa, a seleção das fontes e a escrita fazem compreender o conhecimento histórico como uma operação. Desse modo, os procedimentos metodológicos auxiliam a promover um diálogo entre as fontes documentais e os referenciais historiográficos e teóricos adotados. Para entender as tramas que envolvem a trajetória intelectual e política de Josué de Castro, conto com um conjunto de fontes diversificadas que possibilitaram problematizar sua trajetória em momentos históricos distintos. Boa leitura!


    Notas

    2. Amorim, Helder Remigio de. Entre a Mercearia

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