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O caso Morel
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E-book223 páginas2 horas

O caso Morel

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Sobre este e-book

Romance policial, investigação sobre os limites do desejo, experimento narrativo, o primeiro romance de Fonseca parece um jogo de espelhos, em que os personagens se desdobram em dois, e também a história e o próprio narrador se dividem, sem que saibamos quais são os originais e quais são os reflexos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento30 de mar. de 2023
ISBN9788522012671
O caso Morel

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    O caso Morel - Rubem Fonseca

    Copyright © 1973 by Rubem Fonseca

    Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela Editora Nova Fronteira Participações S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite.

    Editora Nova Fronteira Participações S.A.

    Rua Candelária, 60 — 7.º andar — Centro — 20091-020

    Rio de Janeiro — RJ — Brasil

    Tel.: (21) 3882-8200

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    F676c Fonseca, Rubem

    O caso Morel / Rubem Fonseca. – 6.ed. – Rio de Janeiro : Agir, 2023.

    Formato: epub com 1,1 MB

    ISBN: 978-85-2201-267-1

    1. Literatura brasileira. I. Título.

    CDD: B869

    CDU: 821.134.3(81)

    André Queiroz – CRB-4/2242

    Índices para catálogo sistemático:

    1. Ficção: Literatura brasileira B869.3

    Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427

    Conheça outros livros do autor:

    Sumário

    Capa

    Folha de rosto

    Créditos

    Nada a temer

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    Fim

    Atrás das grades

    O autor

    Colofão

    NADA A TEMER

    MATEUS BALDI

    Assim como muitos colegas escritores, conheci Rubem Fonseca na adolescência. À época, no final dos anos 2000, ele já era o consagrado autor de Agosto, Feliz Ano Novo, A grande arte, O Cobrador e tantos livros que forneceram a diversas gerações as armas para ingressar no mundo da literatura. Havia naquela prosa algo de cortante, mas não só: um caráter explícito de denúncia trazia para o centro do palco tudo que ocorria diante de nossos olhos. Em Rubem Fonseca, logo entendi, a matéria da realidade transformava-se em força literária, desenho fiel de um país que era por si só carregado de brutalismo, como o crítico Alfredo Bosi definiu sua literatura.

    O livro que você tem em mãos, O caso Morel, é o primeiro romance do escritor mineiro e foi publicado em 1973, quando o Brasil atravessava a pior fase da ditadura militar. A partir da promulgação do AI-5, em 1968, direitos civis foram suprimidos e a violência tornava-se escancarada. Em Lúcia McCartney, coletânea de contos imediatamente anterior a Morel, Zé Rubem, como era chamado pelos amigos, ainda ensaiava algum otimismo diante do país — ou melhor, apesar da melancolia da protagonista do conto-título e do humor corrosivo de Mandrake, em O caso F.A., havia possibilidade pairando nas histórias. Algo que apontava para um país menos inflamado, cujos habitantes pudessem voltar para dentro.

    Essa operação é implodida aqui. Quando Rubem Fonseca nos fornece as regras do jogo, estamos em um cubículo pequeno. Cama estreita com cobertor cinzento. Mesa cheia de livros; rádio portátil; pia; latrina; mais livros empilhados no chão. Dentro há Morel, artista e fotógrafo ocasional, um homem magro, pálido, cabelos escuros, grisalhos nas têmporas. A ele se juntam Matos, delegado, e Vilela, ex-policial surgido em A coleira do cão. O primeiro deseja saber quem matou uma das namoradas de Morel, encontrada em estado de putrefação numa praia, e este deseja que Vilela lhe auxilie na escrita de um manuscrito que não fica muito claro se é romance ou autobiografia.

    Partindo dessa tríade, tem início uma história de alta voltagem carregada de erotismo e tensão. Se este é um livro que debate autoria em suas múltiplas possibilidades, e os eternos jogos duplos das narrativas — não seria estranho lembrar de A invenção de Morel, do argentino Bioy Casares —, aqui há uma pista que não deve passar batido: o livro que Vilela pega em cima da mesa, no primeiro capítulo, chama-se Visão e invenção. Trata-se de um jogo duplamente metalinguístico: o título original de Lúcia McCartney era Ficção e não.

    Jogar com os espelhos é uma das características da obra fonsequiana. Em um artigo sobre a enunciação peregrina do autor, a professora Vera Lúcia Follain aponta que em O caso Morel a autoria se desdobrava nas figuras do criminoso e do escritor — e ambas remetiam para a figura do ‘autor empírico’, que não precede o texto, não lhe é exterior, mas é fabricado por ele. Através do par Morel/Vilela, punha-se em fábula a posição fronteiriça atribuída ao escritor, que lhe permitiria ocupar diferentes lugares sem se fixar em nenhum deles, deslizar, em sua ficção, através das diferentes divisões sociais.

    Esse aspecto camaleônico no flanar social permite que Rubem formule uma crítica contundente a uma sociedade sem otimismos, algo que seria trabalhado de forma arrasadora nos seus dois livros seguintes: Feliz Ano Novo, de 1975, censurado sob acusação de atentado à moral e aos bons costumes, e O Cobrador, de 1979, escrito com uma fúria ainda maior.

    Vejamos: o protagonista visita o pai no hospital, que está nas últimas, mas se recusa a morrer — como diz Morel, ninguém tem coragem de morrer, as pessoas duram enquanto podem. O mundo acabou, o velho vaticina. Antes de Veneza afundar, a petroquímica fez as estátuas explodirem podres. Essa fala encontra eco em Intestino grosso, último conto de Feliz Ano Novo, quando o escritor entrevistado menciona nossas Manchesteres tropicais com suas sementes mortíferas e diz que até ontem o símbolo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo eram três chaminés soltando grossos rolos negros de fumaça no ar. Estamos matando todos os bichos, nem tatu aguenta, várias raças já foram extintas, um milhão de árvores são derrubadas por dia, daqui a pouco todas as jaguatiricas viraram tapetinho de banheiro, os jacarés do pantanal viraram bolsa e as antas foram comidas nos restaurantes típicos, aqueles em que o sujeito vai, pede capivara à Thermidor, prova um pedacinho, só para contar depois para os amigos, e joga o resto fora. Não dá mais para Diadorim.

    A negação do sertão, transpondo para a cidade e seus dramas o grande nervo do existencialismo fonsequiano, tem em O caso Morel sua primeira formulação grandiosa, consciente de seu papel. A superfície de contato que separa os personagens da realidade é constantemente devassada. Trata-se de um mundo inóspito, que Morel apreende do jeito que pode — em uma passagem diz a Vilela que todas as suas profissões, polícia, advogado e escritor, são escrotas, deixando suas mãos sempre sujas; noutra, de sua casa em Santa Teresa, afirma que a cidade é uma massa de blocos de cimento armado. Ismênia, pintora cortejada por ele desde a adolescência, acredita que o mundo deve ser sempre cheio de pessoas vivendo, como no quadro na parede do seu quarto, porém os automóveis não deixam. Em outras palavras, num tipo muito bem arranjado de empreitada contra o tecnicismo, Rubem Fonseca deixa claro que o sexo e a vida urbana, e por extensão os humanos da segunda metade do Século XX, estão condenados à desumanização. Não à toa os planos de Morel revelam um paradoxo. Se há humanidade em querer viver o amor e as artes numa seita à la Charles Manson, ela é impossível a partir do momento que as relações substituem a base sexual pela violência. Chutes, socos, pontapés, xingamentos apenas confirmam que um ladrão é considerado um pouco mais perigoso do que um artista. A relação de Morel com as mulheres, para além de toda a misoginia, traz um contraponto a Vilela e suas agruras. Esses escapes no romance, quando Rubem Fonseca oferece um falso respiro ao deslocar a atenção para seu atormentado duplo, evidenciam o caráter doentio de uma espécie que tem em Paul Morel um de seus nomes mais fortes. Nesse sentido, é emblemática — e bela — a cena em que ele anda pela noite da Ilha do Governador, amedrontado, gritando o novo nome para se acostumar.

    Nada temos a temer. Exceto as palavras, proclama o dístico que percorre boa parte do livro. Ao fim do percurso, tomara que seja isso que você, leitor, encontre. Esqueça as respostas. Atente para a fabricação literária, o processo, as artimanhas, as narrativas — devore o relatório de autópsia, deixe-se contaminar pelos duplos, pelos diários, registros, livros contidos dentro do livro. Que não é livro. Nem quebra-cabeças. Talvez alguma coisa no meio disso tudo, um experimento híbrido que potencializa a literatura nas suas mais diversas formas enquanto tenta desvendar o signo de uma época. Que continua.

    Bom mergulho — e cuidado com os urubus.

    Mateus Baldi é escritor e jornalista. Mestrando em literatura, criou a Resenha de Bolso, voltada para a crítica de literatura contemporânea. Colaborou com diversos veículos da imprensa, como piauí e O Estado de S. Paulo, e foi colunista da revista Época.

    1

    Matos e Vilela se encontram na porta da penitenciária. Sozinho Vilela teria dificuldade para entrar, mas com Matos as portas são aber­tas. Chegam à cela de Morel.

    Cubículo pequeno. Cama estreita com cobertor cinzento. Mesa cheia de livros; rádio portátil; pia; latrina; mais livros empilhados no chão.

    Morel é um homem magro, pálido, cabelos escuros, grisalhos nas têmporas. Rugas fundas cortam seu rosto. Veste uma camisa branca e calça cinza, amassadas. Possivelmente dorme com aquela roupa.

    Tenho dois dos seus livros aqui.

    Procura os livros, acha apenas um deles. O outro sumiu. Você não quer sentar? Morel indica a Vilela a única cadeira da cela.

    Vou deixar vocês sozinhos. Tenho ainda muita coisa para fa­zer, diz Matos.

    Obrigado. Morel aperta a mão de Matos.

    Vocês vão se dar bem. Quando quiser sair, bate na porta e manda chamar o inspetor Rangel.

    Matos sai.

    Nem sei como começar, diz Morel. O Rei disse para Alice ‘co­meça no princípio, depois continua, chega ao fim e para’. Mas onde é o princípio?

    Vilela: Você também pode começar do fim e terminar no prin­cípio, ou no meio.

    Preciso da sua ajuda.

    Diga como.

    Eu preciso escrever um livro. Matos não lhe falou?

    Disse que você queria falar com um escritor.

    Quero ajuda para escrever um livro.

    Quanto menos ajuda dos outros, melhor.

    Morel reflete por instantes.

    Estou muito arrasado.

    É assim mesmo que se escreve.

    Eu quero ter certeza de que vou ser publicado.

    Essa certeza você não pode ter.

    Morel sentado na cama. Deita lentamente, com os braços cru­zados sobre os olhos. Vilela pega um livro sobre a mesa. Visão e invenção.

    Adianta escrever, se ninguém vai ler?

    Adianta, sempre.

    Passo as noites sonhando com a minha carreira literária, a ironia na voz é forçada. Você quer um biscoito?

    Uma lata de biscoitos debaixo da cama.

    Comem biscoitos.

    Onde você arranjou esse monte de livros?

    São meus.

    Quem traz?

    O doutor Matos. Dei a ele a chave da minha casa. Eu peço os livros, ele vai na minha estante e apanha. Às vezes ele me compra um livro, mas o gosto dele não combina muito com o meu.

    Você já escreveu alguma coisa?, pergunta Vilela.

    2

    AVERTISSEMENT

    Ce livre n’est pas fait pour les enfants, ni même pour les jeunes gens, encore moins pour les jeunes filles. Il s’adres­se exclusivement aux gens mariés, aux pères et mères de famille, aux personnes sérieuses et mûres qui se préoccu­pent des questions sociales et cherchent à enrayer le mou­vement de décadence qui nous entraîne aux abîmes.

    Son but n’est pas d’amuser, mais d’instruire et de moraliser.

    Dr. Surbled, 1913.

    Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência.

    Lembro-me de que quando entrei no cabaré, em São Paulo, a ve­lha Doroteia foi logo pedindo que eu tocasse guitarra para ela. Infelizmente não era possível, eu não sabia tocar o instrumento.

    Em Belo Horizonte o céu era limpo. Eu saía com os bolsos cheios de tangerinas e andava pelas ruas tentando chutar todos os caroços. Em BH eu não era músico.

    Vi logo pela sua cara que você era um homem do mar, disse Marlene Lima, que passou a vida tentando ser artista de cinema e agora era uma trintona jogada fora. Estávamos na Zona. Eu descrevia para Marlene as minhas aventuras pelos países da Ásia.

    No Rio voltei à minha impostura de músico de orquestra. O porteiro do hotel me olhava respeitoso, ele queria ser músico, ten­tava o sax, o trombone, mas era fraco do peito.

    Boîtes da cidade.

    Posso oferecer-lhe uma bebida?

    Quem é você? Um industrial rico ou um vagabundo?

    Industrial rico.

    De onde?

    São Paulo.

    Ah, São Paulo... É longe de Porto Alegre?

    Ela tinha um sotaque de gringa europeia. Grande, loura, olhos azuis. Havia conhecido um sujeito em Porto Alegre.

    Você conhece ele? Carlos Rocha?

    Não.

    Segurou no meu pau, perguntou: Quer que eu lhe faça feliz?

    Queria me fazer feliz ali no cantinho do bar. Rápido e sem dor.

    Aqui não, vamos para outro lugar, eu disse.

    As pessoas pagam duzentos para ficar comigo.

    Está bem.

    Mas só se você tiver camisinha.

    Saí e fui à farmácia.

    Voltei para onde ela estava. Mostrei o pacotinho.

    Eram três horas da manhã.

    Saímos para pegar um táxi.

    Ilha do Governador.

    O motorista não queria ir. Violento bate-boca entre nós. Eu e a mulher vencemos.

    Uma pobre casa, incrivelmente quente. Dezembro. As paredes cheias de fotografias. Ela aos seis anos, aos sete. Aos quinze, aos de­zoito. Sempre só. Nem pai, nem mãe. Só. Nem amigos.

    Você sabe, nós os trapezistas temos os pés muito afiados, ela disse. Foi então que eu soube que ela tinha sido trapezista, quando menina. Viera com os pais, que trabalhavam no Circo Sarrazani.

    Pedi um uísque. Ela só tinha coca ou guaraná.

    Meu amigo de Porto Alegre é um intelectual. Eu não confio em intelectuais.

    Nem eu.

    Durante quinze minutos ficou tirando grampos da cabeça.

    Era bonita. Abri o fecho da minha calça e me exibi para ela.

    "Calma, rapaz, onde é que

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