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O Inferno de Outro Mundo
O Inferno de Outro Mundo
O Inferno de Outro Mundo
E-book224 páginas3 horas

O Inferno de Outro Mundo

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Sobre este e-book

O Inferno de Outro Mundo (Edições Bicho de Sete Cabeças, 2016), uma antologia de contos, é o primeiro livro do autor e conta com um prefácio de João Marques Lopes. A presente antologia conhece agora a sua edição digital e portuguesa, após uma edição impressa brasileira.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento18 de dez. de 2016
ISBN9781370748747
O Inferno de Outro Mundo
Autor

Luis Leiria

Luis Leiria (Lisboa, 1957) é jornalista desde os vinte anos. Começou a sua carreira em Lisboa, na imprensa do pós-25 de Abril, e prosseguiu-a no Brasil, para onde foi viver em 1981. Lá trabalhou nalguns dos principais jornais diários – Jornal do Brasil e O Globo – e na editora Abril. De volta a Portugal, em 1998, trabalhou nas revistas Vida Mundial e História, tendo feito uma incursão no documentário – foi coautor de António Alçada Batista e da série documental Périplo. Fez ainda parte da equipa que fundou o portal de informação alternativa Esquerda.net, na qual permaneceu durante quase dez anos.

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    O Inferno de Outro Mundo - Luis Leiria

    O barbeiro da carecada

    Ó Gomes! Senta-te aqui, pá! Hoje o restaurante está mesmo cheio. E olha que não há turistas, com este frio! Pois é, até parece que estamos no verão e a Baixa está cheia de camones... Mas não, sabes como é: o Natal está à porta, vem toda a gente fazer compras! O Grandella e os Armazéns do Chiado estão a abarrotar, passei por lá agora, também queria comprar uma lembrança para a minha Maricota. Olhei para aquele maralhal todo a fazer bicha nas caixas, e pensei cá c'os meus botões: só se fala do tal do choque do petróleo, dizem que vem aí uma crise do camandro, mas a malta sem Pai Natal não pode passar.

    Então, está tudo a correr bem? Estava mesmo a ver se aparecias, pá! Preciso de desabafar, nem sabes o que me aconteceu! Não, não estou doente, lagarto, lagarto, lagarto! As olheiras são porque há duas noites que não durmo como deve ser. Numa nem dormi nada.

    Eu conto: estava em casa muito descansadinho a ver a televisão, já eram mais de onze horas e eu a dormitar no sofá de pijama. A Maricota já se tinha ido deitar, tocam-me à porta. Mas não foi um toquezinho, assim, trim, foi um triiiiim que não parava, um chavascal dos demónios que de certezinha acordou a velhota do esquerdo. Dei um salto e carreguei logo no botão para abrir. E enquanto esperava que subissem só dizia cá p'ra comigo: Isto boa coisa não é! Ninguém bate à porta de um cidadão cumpridor dos seus deveres e bom português, como eu, a essas horas da noite.

    Só a Pide é que faz isso, ora aí está o que eu pensei logo. Mas o que é que eu tenho a ver com a Pide? Ó pá, tu conheces-me. Pensei: Quem não deve, não teme! Mas depois comecei a tremer.

    Tremer porquê?? Ainda perguntas? Olha, e se alguém me tivesse denunciado? Denúncia falsa, pois claro, invencionices, mas achas que não acontece? Ah pois é! De repente, juro-te que me passou pela cabeça que o vizinho do 2º andar tinha inventado alguma. Tenho um pó ao gajo! E ele a mim! Então, podia perfeitamente ter bufado alguma história, sabes como é a inveja. Sei lá o que é que ele podia arranjar pra me lixar, sempre se podem inventar coisas. Logo que ouvi vozes no corredor, fiz das tripas coração, abri a porta e vi dois gajos de gabardine com cara de poucos amigos.

    Devo ter ter ficado branco com'a cal. Um, nunca tinha visto mais gordo, mas o outro já lhe cortei o cabelo várias vezes lá no Governo Civil, sei perfeitamente que é da Pide. Um gajo muita calado, sempre a ler o jornal, eu a tentar meter conversa e ele nada. Topas o estilo do mangas? Pois é.

    O outro deve ter visto a minha cara de cagaço e resolveu gozar comigo. Olhou para mim e disse: Adérito Gonçalves? O senhor vá-se vestir imediatamente, que tem de vir connosco. Assim com uma voz de ameaço. Quase me mijei ali mesmo. A minha sorte foi o outro que deve ter ficado com pena de mim e disse: Calma, homem! Parece que viu o demo em pessoa! Não é nada consigo, só viemos buscá-lo porque tem lá muito trabalho na barbearia do Governo Civil e é preciso começar já. Vá-se lá vestir depressa, homem! Não diga nada, ande, ande!

    Eu entrei no quarto e a Maricota já estava de robe, com cara de choro, sentada ao psiché a dar um jeito no cabelo e só me disse, com a voz a tremer: Adérito, o que é que tu fizeste? E eu: Não fiz nada, vieram-me buscar porque tenho que ir trabalhar. E ela arregalou os olhos e disse assim: Mas a quem é que tu vais cortar o cabelo ou fazer a barba a estas horas? Estás maluco, ou quê? E eu: Se há alguém maluco nesta história não sou eu! E ela começou a chorar: Ai que me levam o meu rico marido! Ai ai! E eu: Não é nada disso, sabes perfeitamente que sou um bom português, que não me meto em nada, que sou todo ajuizadinho. Fica aqui quietinha, que isto não deve demorar.

    Comecei a vestir-me, e já estava quase pronto quando decidi meter uma gravata. Sabia lá a quem é que ia cortar o cabelo? Podia ser, sei lá, a algum daqueles da alta, e não ia aparecer todo andrajoso. Mas com os nervos não conseguia dar o nó, veio a Maricota ajudar-me e foi pior, ficou todo torto e de repente ouço os gajos a bater à porta: Embora! A andar!, gritavam. E quando abri e eles me viram, aquele que eu não conhecia começou às gargalhadas e disse: Olha-me para este! Deves achar que vais para um baile de gala! Onde já se viu um barbeiro trabalhar de gravata? Mas o outro pôs logo água na fervura: Se todos andassem sempre assim bem postos, o País estava melhor. Estás catita, Adérito! Tens é de te pôr a mexer! Deu-me uma palmada nas costas e empurrou-me para a porta.

    A Maricota viu aquilo e voltou à carga: Ai minha Nossa Senhora de Fátima que me levam o meu rico marido! E dá-lhe de chorar. Mas o Pide ouviu e voltou para trás: Não é nada disso, minha senhora, o seu marido está a ser requisitado para fazer um alto serviço à Nação! Fique descansada que depois a gente trá-lo de volta são e salvo. E lembre-se que a Nação nunca se esquece dos seus filhos! Disse mesmo assim. É pá! Saí no meio dos dois todo inchado. Cheio das peneiras, o que é que pensas? Nunca ninguém me tinha falado assim!

    Olhei para trás e ainda vi a Maricota abraçada ao Samuel, que tinha acabado de acordar. O puto tem cá um sono pesado! Fiquei a pensar que aquela noite ia ser para não esquecer e que depois ia contar tudo ao puto e ele ia ficar todo orgulhoso do pai que tem.

    Começou a passar-me pela cabeça que ia fazer a barba ao sr. Presidente do Conselho. Se calhar ele ia nalguma viagem diplomática de madrugada e não tinha tempo para a fazer ele, sei lá! Eu gostava era de ter tido a oportunidade de cortar o cabelo ao dr. Salazar. Sempre sonhei com isso, topa-me só: poder pegar um jornal qualquer, apontar para a foto e dizer aquele cabelo fui eu que cortei! Mas, já que agora é impossível, Deus tenha a sua alma, o professor Marcello Caetano também servia.

    Calma, pá, não me apresses! Eu já te digo afinal por que me foram buscar. Mas deixa-me contar a história por ordem, senão já sabes que me embaralho todo. Olha, pede o bacalhau com couves que está uma maravilha!

    Bem, mas então: puseram-me no banco da frente do carro e o mangas mais gozão foi a conduzir, o outro sentou-se atrás. Da Damaia até à Baixa ainda é um esticão, eu chego a demorar uma hora de autocarro, mas de automóvel, e ainda por cima à noite, foi num instante. Quando chegámos aqui à rua Capelo, estava uma grande fila de ramonas estacionada. É pá, sem exagero, eram umas seis, metade em cima do passeio, uma confusão.

    Saímos do carro, eu mais o da Pide, o outro foi estacionar porque ali na rua não havia lugar, e eu começo a ouvir umas cantorias, à medida que nos aproximávamos da porta do Governo Civil. Ó soutor, então prenderam um orfeão inteiro, ou quê? Disse mesmo assim. Ele até sorriu, foi a primeira vez que desanuviou, sabes, sempre de cara sisuda. Não, prendemos uma data de putos e miúdas. Eu parei e olhei bem pra ele, para ter a certeza de que não me estava a gozar. Mas ó soutor, o que é que eles fizeram para serem assim presos à molhada? E ele respondeu assim: Subversão. Só isso: Subversão.

    Entrámos e aquilo era cá um chavascal! As cantorias vinham dos calabouços. Lembro-me de que uma das músicas era aquela Eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam naaada. Essa música foi proibida? Pois foi! Mas não me digas que nunca a ouviste? Eu também. Olha que o José Afonso fez uns fados de Coimbra lindos. E eu, que adoro fado, comecei a gostar dele, tenho até esse LP. Depois começou a dar para o subversivo, mas ainda tem umas músicas de categoria. Aquela: Negro, bairro negro, bairro negro... Onde não há pão não há sossego, às vezes até me faz chorar. Olho pra Buraca, ali ao lado do meu bairro, e lembro-me da minha infância. Que eu fui muito pobre, sabes? Não tenho vergonha de dizer que só tenho a 4ª classe e ainda andei descalço! Por isso, algumas músicas dele tocam-me, o que é que queres? Também gosto muito do Tony de Matos, do Max, do Paco Bandeira, da Simone. Mas também do Zé Afonso.

    Tens razão, já estou a derivar. Pedimos mais uma garrafa de tinto?

    Então: entrámos, no meio daquela barulheira, eu a ver uma data de polícias muito nervosos, um ambiente assim um bocado pró tenso, quando vejo um guarda a levar um puto lá para as choças, devia vir da identificação. Aí é que fiquei mesmo assustado. Era um miúdo, fedelho mesmo. Nem dezasseis anos tinha! E umas gadelhas! Calça de ganga daquelas de boca de sino, topas? E estava cá c'uma cara de assustado! Fiquei com pena.

    Ó soutor, disse eu, mas são crianças! Como é que podem ser subversivos? Se ainda mal foram desmamados! Fez-me muita impressão, sabes, porque me lembrei do meu Samuel, que ainda só fez dezassete. O gajo da Pide parou-me ali mesmo no corredor, olhou-me nos olhos e disse: Adérito, o comunismo está onde menos esperas. Os comunistas são piores que o demónio, atacam onde sentem que estamos fracos, tentam destruir-nos as famílias, que são o pilar da nossa sociedade. Essas coisas do rock, essas modas pop, isso tudo está a afastar a juventude dos nossos valores cristãos. Tu vais ver: a maior parte destes miúdos são filhos de família, há um que até é descendente direto do Pedro Álvares Cabral. Vê bem: descendente de quem deu mais mundos ao mundo! E agora, mais de quatrocentos e cinquenta anos depois, o puto quer acabar com o nosso Império e dar tudo aos turras.

    Então fez-se luz na minha cachola: os putos não querem ir pra guerra do Ultramar. Então é isso! E depois também pensei: eu também não gostava que o meu Samuel fosse dar com os costados numa picada da Guiné, que parece que é onde as coisas andam mais difíceis.

    Mas depois comecei a ficar com raiva pelo que o gajo da Pide disse, que eles eram todos meninos bem. Disse cá c'os meus botões: Ele até tem razão. Se fossem pobres, não tinham como fugir com o rabo à seringa, era entrar no navio de mochila às costas e desembarcar em Luanda ou em Lourenço Marques. Mas os queques têm os papás que sempre podem meter uma cunha. Entretanto, já tinha aberto a barbearia, acendido as luzes e preparado os pentes e as tesouras.

    E de repente percebi o que tinha ido ali fazer. Ia cortar o cabelo àquela malta. Sei lá, com um penteado jeitoso talvez lhe passassem muitas daquelas ideias. Desde que vi os primeiros guedelhudos que achei que aquela cabeleira toda baralhava as ideias aos putos. Há uns que até ficam vesgos à força de olharem por entre as franjas. Então era isso: os meus pentes, as minhas tesouras e as minhas navalhas também iam servir para combater o comunismo. Pela primeira vez, a minha arte não ia só servir para a pessoa ficar mais bonita, mas também para lhe melhorar as ideias. Achei que tinha percebido o que a Nação queria de mim.

    Disse pró da Pide: Ó soutor, deixe lá que eu tiro-lhes aquelas trunfas e faço-lhes uns penteados tão bonitos que eles nem vão querer mais saber de pop. E perguntei: São muitos os de cabelame comprido?

    Ele olhou para mim com cara de quem está a perder a paciência e respondeu já com voz meio zangada: Quais penteados qual carapuça! Tu vais é passar a máquina zero em todos. Por isso é que te tens de despachar, porque são noventa e cinco putos. Às miúdas não fazemos nada, mas os putos vão aprender uma lição. Tirando alguns que foram para Caxias, porque já tinham ficha ou são filhos de subversivos, vamos ter de soltar os outros de manhã. Por isso queremos que eles levem uma lembrança que nunca vão esquecer.

    Fiquei a olhar pra ele com cara de parvo. Não queria acreditar. Então o tal do serviço à Nação era aquilo? Dar carecadas? Eu, um barbeiro experiente que sei fazer assim penteados modernos, que sou um ás com a tesoura, a rapar cabeças? Mas o pior não era isso. Tu sabes que eu não sou bom para a matemática. Mas não é preciso ser um crânio para chegar à conclusão de que só com um barbeiro aquilo era impossível.

    Sim, usar a máquina é rápido. Mas pensa bem: entrar, pôr o pano à volta do pescoço do puto, umas cinco ou seis passagens da máquina, tirar o pano, sai um, entra outro, senta-se e recomeça tudo. Pelo menos cinco minutos cada um. Se eram noventa e cinco, era uma data de horas. Além disso, de vez em quando tinha de varrer aqueles montes de cabelo do chão. E eu não sou uma máquina. Também tenho de parar pra descansar, fumar um cigarro... Impossível.

    Fiz o da Pide ver o meu ponto de vista. Ele então disse que já se tinham lembrado disso, mas que não tinham encontrado o Arlindo, porque estava de férias. Que estava de férias, sabia eu. Mas eles não são a Pide? Não deviam saber tudo, até onde ele estava? Não, claro que não lhe falei assim, tás maluco, ou quê? Mas também não foi preciso, eles já tinham arranjado outro para me ajudar, que chegou pouco depois. Entre os dois, fizemos o serviço. Foi truca, truca a dar ao dedo até de manhã. No fim, já quase não podia com a mão.

    O primeiro que me trouxeram não estava a perceber nada. Devia estar a pensar que o iam libertar, e de repente viu-se sentado numa cadeira de barbeiro. O miúdo até não tinha o cabelo muito comprido e eu fiquei com pena. Regulei a máquina para o um, e ele nem ficou tão mal. Olhou para o espelho e ficou de cara à banda. Mas não disse nada. Entrou mudo e saiu calado. Levaram-no de volta para o calabouço.

    Eles entretanto tinham parado as cantorias. Deviam estar cansados. Depois soube que estavam divididos em três celas, e tão apertados que tiveram de fazer turnos para uns se poderem deitar no chão, enquanto os outros ficavam de pé. Não podiam deitar-se todos ao mesmo tempo porque não havia espaço. Com as miúdas foi pior: quiseram separá-las e pôr algumas numa cela onde estavam assim umas mulheres da vida, tás a ver? E elas fizeram um banzé e recusaram-se a entrar. Bateram o pé e levaram a delas a melhor, disseram que queriam estar todas juntas. Mas ficaram ainda mais apertadas que os rapazes, eram trinta e oito raparigas, sete já tinham ido para Caxias.

    Ah, sim, estava a dizer: levaram o puto para a choça outra vez e de repente começam a ouvir-se risos. Os outros, quando o viram meio careca, começaram a mangar. Foi cá uma gargalhada!

    O gajo da Pide entrou furioso e começou a mandar vir comigo, a dizer que eu tinha regulado mal a máquina, que assim eles ficavam bonitos e era preciso que ficassem feios. Máquina zero! ZERO! Quero aquelas cabeças lisinhas como um espelho. Eu achei melhor bater a bolinha baixa porque ele estava mesmo zangado. Mas percebi que estava fulo porque os putos levaram a carecada para a brincadeira. Também, queria o quê? Achava que ia pôr os miúdos a chorar? Ora, ora, mesmo que se sentissem humilhados – e eu sei que se sentiram, de certezinha – não iam dar o braço a torcer! No fundo, ele tinha vontade era de mandar dar umas berlaitadas na rapaziada, eu sei muito bem como pensam esses gajos. Mas não se atreveram, porque os miúdos eram menores e, além disso, eram mesmo meninos bem. A maioria era de liceus, e nos liceus quase só entram ricos, os pobres vão para as escolas técnicas ou nem vão para a escola.

    O segundo que me levaram entrou todo altivo. Já sabia o que ia acontecer. Olhou-me com ar de desafio, como se estivesse a dizer que se estava perfeitamente a lixar para a carecada. A este já lhe passei a máquina zero. Ficou com a cabeça que parecia um ovo! Quando voltou para a cela, as gargalhadas ainda foram maiores! O da Pide deve ter ficado ainda mais fulo, mas não podia fazer mais nada. Depois, a coisa foi entrando na rotina e eles pararam de se rir, já era muito tarde

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