Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Dias de Juventude
Dias de Juventude
Dias de Juventude
E-book187 páginas2 horas

Dias de Juventude

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Um dia na vida de Andrew Wood, um escritor de dezanove anos que se vê confrontado com a realidade de uma cidade ressacada pela morte de Kurt Cobain.

Sem uma diretriz definida para o seu futuro, e sem paciência para planos, Andrew vagueia pelas ruas dos anos 90 para celebrar a sua juventude e descobrir o que deve deixar para trás para poder seguir em frente.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de fev. de 2015
ISBN9781311664242
Dias de Juventude
Autor

André Fernandes

My heroes are writers and farmers.

Relacionado a Dias de Juventude

Ebooks relacionados

Romance contemporâneo para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Dias de Juventude

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Dias de Juventude - André Fernandes

    I - UM DIA NA VIDA

    (1)

    Começou em setembro de 93. Larguei o campo e a pequenez do lugar onde nasci e vim viver para a cidade.

    No verão, recebi a notícia de que tinha arrumado a matemática de vez. Os meus dias de liceu haviam chegado ao fim. Aqueles anos apaixonantes de angústia e teimosia adolescente servir-me-iam para sempre como objeto de nostalgia.

    Tive duas namoradas durante esta fase da minha vida. Uma delas marcou-me. Contudo, a miúda que mais me marcou não foi nenhuma das duas. Eu estava apaixonado sem um motivo, como qualquer bom rapaz da minha idade, e não percebia muito da vida naquela altura.

    Eu amava o campo, a lezíria, os prados e os rios. Eu era rei dos mais vastos e longínquos horizontes, perto de minha casa. E levaria para sempre esses lugares no meu coração. Mas tinha de fugir dali. Tinha de encontrar uma solução, uma maneira de resolver a minha vida. E depois, tinha que arranjar alguma coisa para fazer no futuro. Eu não podia ir para as obras por causa das minhas costas. Nem gostava. Para ser sincero, nunca gostei de trabalho físico, nem nunca vou gostar.

    Alguém me disse: Ei, o exército está a recrutar. Pareces um tipo forte e saudável. Mas o meu medo de morrer era maior do que o meu amor à pátria. Então alguém me disse: Ei, um tipo esperto como tu devia de continuar a estudar. E assim, ingressei na vida universitária. Não havia muito mais a fazer. Eu tinha a minha escrita, e escrevia como um louco nesta fase da minha vida. Tinha a minha música também, mas não tinha o dom intrínseco em mim. Assim, escrevia de noite e tocava guitarra de dia. Foi por pouco tempo, até porque o verão iria chegar ao fim. Mas o tempo que durou valeu a pena.

    Então, quando setembro começou, tive de escolher. Eu era péssimo a escolher. Não tinha paciência para tomar decisões importantes. Eu escolheria qualquer coisa, se me dessem a liberdade para tal. O que eu iria fazer, iria ingressar numa universidade qualquer, num curso qualquer, só para me deixarem respirar em paz. Não tinha definido ainda diretrizes para o meu futuro, nem tampouco me apetecia. O futuro parecia-me tão incerto à sombra daqueles verdes dias.

    Se há algo que precisam de saber sobre mim, é sobre a minha doutrina: tudo o que fazes no teu presente influencia o teu futuro. Então eu era este tipo que só se preocupava com o ‘agora’. Mas é engraçado: entre o passado e o futuro, nunca sentes o presente a acontecer.

    Quando eles te dizem que a vida passa a correr, rapaz, eles sabem do que estão a falar.

    (2)

    Então eu também sabia disso. E não queria correr contra a vida. Então mudei a minha atitude em relação ao futuro. Decidi que ia a caminho da universidade para desfrutar dos melhores anos da minha vida.

    Então em setembro lá fui, viver para a cidade, cheio de medo do que me pudesse acontecer, sozinho, a viver na cidade. O meu maior medo era não encontrar amigos. Eu era um tipo amigável, sensível e bem-humorado. Rapaz, eu tinha um humor bestial. Mas também era bastante solitário.

    A verdade é que, se procurares bem, és capaz de encontrar alguma beleza no silêncio e no sossego das coisas. És bem capaz de encontrar alguma calma na solidão, se não tiveres medo de estar sozinho contigo próprio.

    (3)

    O meu sonho era viver como Rimbaud, perdido nas ruas de uma cidade que não soubesse o meu nome, com uma dose de álcool no sangue proporcional aos meus devaneios adolescentes. Eu queria ver a cidade entardecer, pelo crepúsculo, vezes sem conta. Deixa-me dizer-te: poucas coisas se comparam em beleza com um bom crepúsculo. Um rio, uma cidade, uma janela com vista para o horizonte… qualquer lugar é mágico quando mergulhado nas cores ardis de um crepúsculo.

    Para mim, a eternidade não era um mar misturado ao sol. Era um rio mergulhado pelas cores embaciadas, meio-vivas, meio-mortas, de um crepúsculo acidental.

    (4)

    Mas Rimbaud esgotou-se cedo demais. Talvez não tivesse mais nada para dizer, mais nada para escrever. Rapaz, eu não. Eu tinha 19 anos e uma vontade ridícula de atingir o mundo.

    Tipos como eu dizem que não têm um plano porque isso dá um ar de mistério e de boa onda, mas é uma treta. Todas as pessoas têm um plano. O meu plano era simplesmente fugir.

    (5)

    Fugir porquê? Bem, esta é a parte em que começo a soar ridículo, mas como vos disse, estava apaixonado. Eu estava apaixonado há demasiado tempo pela mesma rapariga. A minha vida não parecia andar para a frente.

    No inverno, o que eu faria, eu ficaria horas a fio a olhar para a lareira, à espera que o telefone tocasse, à espera que ela me viesse bater à porta. Ficava a pensar nela e a ouvir ‘Sister Ray’ pela madrugada fora.

    Eu nunca a beijei. Talvez esse fosse o problema. Mas um tipo como eu nunca tem muito jeito ou paciência para esse tipo de beijos.

    Eu gostava de mulheres difíceis. Eu não queria outra coisa. Mas esta aqui era uma muralha.

    (6)

    De volta ao início, onde tudo começou: tudo começou em Setembro de 93, quando fui viver para a cidade. Muito em breve, iria descobrir que a vida ali era muito diferente da vida calma e paciente dos rios e dos campos…

    Eu sabia que na cidade ninguém queria saber de ti, a não ser que fosses famoso ou tivesses muito dinheiro ou tivesses feito algo de muito importante. Na cidade, e isto é mesmo em qualquer lugar pejado de gente, o que realmente conta é o teu presente. O presente é algo que partilhamos em comum com todos os outros. Então é isso que realmente conta, no final.

    És um número, na cidade. Esquece o teu nome. Se vens de um sítio pequeno como eu, isso faz-te confusão ao início, mas depois passa. Ser um número num lugar tão grande e tão diverso tem as suas vantagens, acredita.

    (7)

    Entretanto, passaram-se quase oito meses. Hoje sinto que já não pertenço àquela pequena vila branca, onde as pessoas se cumprimentam na rua, onde o verão cheira a searas de milho e o inverno a lenha.

    Eu amava o campo. Era realmente onde pertencia. Mas a cidade deslumbrava-me pela sua impaciência e sangue quente. Havia sempre algo para fazer, algum lugar para se estar, nalguma hora vaga da tarde. O tempo realmente voava na cidade.

    (8)

    Era a manhã do dia 9 de Abril de 1994. Tinha acabado de abrir os olhos. Eu era daqueles tipos que gostava de acordar a meio da noite para poder voltar a dormir. Mas o que eu gostava ainda mais do que isso era acordar de manhã e ficar dez minutos a olhar para o teto. Só a olhar para o teto.

    Muito em breve, iria ouvir pela rádio do quarto algo que acabaria por me arruinar a disposição para o café da manhã:

    Kurt Cobain havia-se se suicidado.

    (9)

    Era habitual eu acordar num sábado de manhã ao som de ‘More Than A Feeling’. Era a música de despertar de sábado, pelo menos na minha estação favorita. Não havia melhor maneira de acordar no mundo em que eu vivia. A música começava com o fade-in extremamente suave e bem lento. Era a música perfeita para acordar porque te acordava devagar, suave e delicadamente.

    Mas naquele sábado de manhã, não era Boston que estava a passar na rádio. Era a notícia sobre a morte de um dos nossos heróis, o nosso Jesus pessoal dos anos 90: Cobain, sempre e para sempre.

    Boston e Kurt Cobain eram apenas as primeiras de muitas irregularidades daquele sábado de Abril.

    (10)

    O meu quarto era espaçoso e limpo, mas faltava-lhe identidade. É certo que eu tinha vários posters espalhados pelas paredes brancas. Estávamos em 1994, mas a minha alma era mais velha que isso. Quem entrasse no meu quarto iria pensar que se tratava de um quarentão que teve a sorte de crescer com grandes bandas como Led Zeppelin, The Doors ou The Grateful Dead.

    Continuava a olhar para o teto. Lembrei-me que tinha de fazer algo com o meu sábado. Tinha de sair daquele quarto e começar o dia. Mas às vezes, só às vezes, era difícil acordar e começar o dia. Ainda mais quando se ouvia a palavra ‘suicídio’ logo àquela hora da manhã. Além disso, a minha capacidade mental ainda estava a tentar regressar do domínio dos sonhos. Na verdade, a notícia da morte do Cobain não era recente. Eu é que sei sempre destas coisas à última da hora. Eu não tinha uma televisão, ou tinha, mas não queria ter o trabalho de a ligar.

    Sempre que a ligava, a minha televisão isto é, fazia-o sempre pela madrugada. Às vezes, era bom, com as insónias, ouvir e ver os anúncios psicadélicos das televendas. Outras vezes, especialmente ao fim-de-semana, passavam filmes pornográficos. Alguns eram bem bons. Quase que paravas para apreciar o enredo. Outros eram bastante exóticos, até demais. Eu tinha algumas cassetes, e outras gravava. Eu não era nenhum escuteiro, rapaz.

    Eu não era nenhum escuteiro, mas acreditem ou não, fazia bem mais pelos outros e com mais intenção do que a maioria dos escuteiros faz. Na verdade, nem sei. Nunca conheci um escuteiro. Nem quero.

    (11)

    A janela estava embaciada. Estava um frio terrível, lá fora. Estávamos em plena primavera e a cidade estava cinzenta e envolvida num nevoeiro próprio de inverno.

    A cidade não amanhecia, não sei porquê. Onde estava a primavera? Não estava ali, na cidade, numa manhã que talvez fosse precisar mais do sol do que qualquer outro dia.

    Então o Cobain… bem, era apenas uma questão de tempo. Eu gostava dele. Acho que qualquer mente rebelde ligada à incubadora dos anos 90 sentia uma certa atração por aquela presença instável e agitada.

    Com 27, ainda por cima. O filho da mãe. Em breve, lá voltariam eles, aqueles, os pseudointelectuais do rock, para mais uma temporada a desenterrar Morrison, Hendrix e Joplin. Sei lá quantos mais.

    (12)

    Todos estes pensamentos atravessavam-me ainda num estado meio onírico, meio idiota. Todas as minhas manhãs eram mais ou menos assim. Vagueava pela minha cabeça um sentimento obtuso de que tudo o que tinha escrito na noite anterior era um erro e devia de ser reescrito ou rasurado. Com o tempo, comecei a habituar-me… era a minha ressaca sagrada: um ritual matinal constante e pontual.

    Estava curioso para saber como iria o mundo reagir a esta notícia. Eu sabia que o grunge tinha mudado as regras do jogo. Depois do ‘Nevermind’, a sociedade percebeu que o grunge estava para ficar. Até a MTV já passava unpluggeds com bandas alternativas. Isso era dizer muito.

    ‘Smells Like Teen Spirit’ era daquelas músicas que tinham tudo para se tornar no hino de uma geração. Agora, com a morte do Cobain, mais do que nunca. Em boa verdade vos digo que nunca tinha ouvido nada como aquilo. Desde a música clássica até Judas Priest, eu nunca tinha ouvido um som tão colérico e tão rebelde como ‘Teen Spirit’. Era um verdadeiro grito de revolta face à década passada, lotada de consumismo e amor ao dólar.

    Era uma pena, o Cobain. E é bem verdade quando dizem que os bons morrem cedo demais. Nem sempre os bons são os mais fortes. Podes ser o que tu quiseres na vida e podes ser o melhor em tudo. Mas se não tiveres fibra para remar contra a maré das adversidades, rapaz, não tens hipóteses.

    O Bukowski disse certa vez que não basta ter potencial. É preciso fazer. E é bem verdade.

    (13)

    Ainda estávamos no meu quarto. Bolas, como eu era preguiçoso. Contei até dez. Depois, obrigar-me-ia a levantar da cama. Tinha de o fazer. Era o tudo ou nada. Então levantei-me, e o frio do quarto logo percorreu-me a espinha. E lá estava eu, em boxers, com pele-de-galinha. Acho que a maioria das pessoas dorme de pijamas. Eu não sou a maioria das pessoas, e não digo isto no sentido de me gabar.

    Tinha quatro posters a cercar o lugar. Quem ali entrasse era de imediato confrontado com Jimi Hendrix, Led Zeppelin, The Velvet Underground e Guns N’ Roses. Grandes olhares e histórias do mundo do rock.

    Led Zeppelin era a minha banda preferida. Guns N’ Roses lembrava-me uma ex-namorada, por isso evitava ouvir. A música de Hendrix era o meu psicotrópico de eleição para uma sessão de poesia. O poster dos Velvet Underground foi mesmo sorte. Era difícil de encontrar posters destas bandas mais underground, passo a redundância.

    Vesti-me enquanto olhava para um poster da Elisabeth Sue. Estava a fletir-lhe os meus músculos preferidos e a imaginá-la ali, comigo. «Sim, querida. Quem sabe, um dia.»

    Abri as janelas do quarto, para libertá-lo dos meus átomos e moléculas, um tanto molestadas de tanto sono.

    Conforme o frio rompeu pelo espaço adentro, percebi que uma t-shirt só não ia ser suficiente. Peguei num casaco ao calhas. Peguei nas jeans que andava a usar desde segunda-feira e escolhi umas Vans Half Cab. Eu era pouco ligado a bens materiais. De vez em quando comprava umas Vans ou uns Chuck Taylor. Mas era raro, e era sempre com a minha mesada. E eu fazia por merecer a minha mesada. Muitos de nós, nos anos 90, tínhamos de suar para merecer uma mesada.

    (14)

    Nunca percebi as pessoas que acordam bonitas. Eu acordo sempre feio. O meu hálito estava horrível, a minha cara oleosa, o meu cabelo oleoso e despenteado, a minha barriga dorida das péssimas posições que escolhia para dormir, e a minha barba picava colossalmente.

    Era mais uma manhã, mais um dia na vida,

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1