Mil Gares
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Sobre este e-book
Um bom lugar para viver.
Um lugar melhor para matar.
Num futuro próximo, Mil Gares é uma pequena comunidade idílica, isolada da confusão do mundo moderno.
Depois de uma ausência de trabalho prolongada, Daniel deseja passar o resto dos seus dias na companhia da mulher que ama.
Porém algo mudou em Mil Gares. À superfície tudo parece idêntico ao que Daniel se lembra, no entanto algo está muito diferente na comunidade. Daniel nota-o naqueles que o rodeiam. Os seus amigos e vizinhos estão mais agressivos, mais violentos. Mais perigosos.
À medida que as tendências violentas se espalham, começando ele próprio a senti-las, Daniel terá de descobrir o que realmente está a acontecer – para salvar Mil Gares antes que a violência a destrua.
Mas o primeiro passo, o mais importante de todos, é decidir se quer salvar-se a si mesmo.
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Mil Gares - Luis Filipe Alves
Mil Gares
1
Daniel espreitou pela janela do carro, tentando ganhar tempo e encontrar assunto. Não encontrou. A viagem ao lado de Alberto já ia longa, e poucas palavras tinham trocado. Alberto era suposto ser seu amigo, caramba. E Daniel não conseguia encontrar tópico de conversa? A sério? Era esse o tipo de pessoa que era?
Olhou para a estrada. Parecia asfalto comum, mas provavelmente não seria. Apesar de ainda não terem entrado na parte electrificada do percurso, as estradas mais recentes incluíam material de carga magnética para tornar a passagem de carros de levitação mais estável, e a julgar pelo percurso perfeitamente suave que tiveram até então, aquela estrada provavelmente não seria excepção. Com dois gestos subtis, Daniel ordenou às suas lentes que fizessem um varrimento automático pelo espectro visual, tentando usar a sua Visão para captar a energia magnética. Detectou alguns vestígios vindos de baixo do carro, mas nada mais.
Então… Vendeste alguma coisa lá fora?
Alberto quebrara o silêncio. Daniel quase lhe agradeceu.
Só o suficiente. O mercado está mau. Não sei como nos vamos aguentar…
O Vítor há-de ter alguma ideia
, disse Alberto. Ele sabe sempre o que fazer.
Daniel sorriu à menção do seu melhor amigo. Sim, não tenho a mínima dúvida. Se há pessoa que merece o trabalho que tem, é o Vítor.
Exacto…
Fez-se silêncio outra vez. Ambos desviaram o olhar. Daniel não se lembrava de quem tivera a ideia de partilharem o carro de volta para Mil Gares, mas fez uma nota mental para fazer a sua próxima viagem sozinho, fosse de que maneira fosse.
Finalmente…
A palavra soara mais a desabafo do que dirigida a si. Daniel procurou por algo que a justificasse, já com a Visão em modo normal. Olhou através do pára-brisas. Mesmo que a leitura na sua Visão não lho confirmasse, Daniel teria reconhecido a forma no horizonte.
Estavam a chegar a Mil Gares.
Daniel não resistiu a um sorriso. Sabia-lhe bem voltar a casa, finalmente.
O restante percurso foi a direito, e consequentemente com poucos pontos de referência, o que o fez parecer mais longo. Aos poucos, a vila fechada de Mil Gares foi-se tornando mais definida. Primeiro o enorme portão, a única ligação com o exterior. Depois os edifícios que o ladeavam, seguidos do muro que circundava a vila. Finalmente alguns telhados ocasionais para lá do muro.
Uma luz acendeu-se no painel do carro, sinalizando o envio do pedido de acesso. Escassos segundos depois, o portão começou a abrir. A estrada passou a estar ladeada por barreiras intransponíveis, indicando que tinham deixado o soalho de asfalto e passado à parte electrificada. Outra luz acendeu no painel, esta indicando que o carro estava a aceitar a carga vinda da estrada.
Menos de um minuto depois, o carro passou pelo portão, que começou a fechar-se logo depois. Tinham chegado. Daniel mal podia esperar para se estender na sua própria cama, pela primeira vez em tempo demais, mas sabia que ainda teria que entregar o relatório da sua estadia do exterior, e como tal presumiu que o veículo escolhesse o edifício da administração como destino.
Olhou para o amigo, e reconheceu nele um sorriso igual ao seu.
Sabe bem voltar a casa
, disse Alberto. Finalmente…
Daniel não podia estar mais de acordo.
2
Como assim, ele não nos pode receber?
Cristina, a assistente executiva de Vítor, parecia ter-se tornado mais austera durante o tempo que Daniel passara fora de Mil Gares. Daniel sempre simpatizara com a senhora, e nunca tivera motivo para se queixar de como ela o tratava. Mas desta vez ela parecia determinada a complicar as coisas.
O Sr. Roque está em reunião, como tal encarregou-me de recolher os vossos relatórios
, repetiu Cristina, lançando um olhar desaprovador tanto a Daniel como a Alberto.
Mas desculpe lá
, disse Alberto. O Sr. Roque faz sempre questão de que lhe entreguemos os relatórios pessoalmente quando voltamos, e hoje não lhe apetece? É um bocado estranho, não?
Não. Não há nenhuma regra que obrigue a isso, é só a preferência do Sr. Roque. E hoje simplesmente não é possível, como tal terei todo o prazer em receber eu os relatórios da vossa… viagem.
Prazer não seria uma palavra que Daniel teria associado ao tom da mulher.
Pronto, seja.
Alberto entregou a pasta a Cristina, que forçou um sorriso, e em troca passou-lhe um envelope fechado.
Aqui está o seu próximo cargo. Boa sorte.
Alberto aceitou o envelope, despediu-se de Daniel com um aceno de cabeça, e saiu. Cristina e Daniel entreolharam-se por momentos.
Cristina, oiça. Pronto, se o Vítor está ocupado, eu compreendo. Mas não há mesmo hipótese dele me receber? Já lhe disse que sou eu?
O Sr. Roque sabe, mas são as ordens que tenho.
Daniel debruçou-se sobre a secretária.
E não pode perguntar-lhe? Vá lá, sou eu…
O ar sibilou ao ser expulso