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A Inquilina de Wildfell Hall
A Inquilina de Wildfell Hall
A Inquilina de Wildfell Hall
E-book651 páginas8 horas

A Inquilina de Wildfell Hall

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Sobre este e-book

Nesta obra, Anne Brontë trata da decadência provocada pelo alcoolismo e a libertinagem. «A Inquilina de Wildfell Hall» é um romance de uma modernidade surpreendente, tendo mesmo chocado os seus contemporâneos pelo tratamento dado à narrativa, onde a luta pela igualdade das mulheres surge como elemento importante, e pela sinceridade apaixonada e a honestidade psicológica da autora, que se sobrepõem ao longo de todo o texto.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento4 de out. de 2015
ISBN9788893157919
A Inquilina de Wildfell Hall
Autor

Anne Bronte

Anne Brontë (1820–1849) hailed from an English literary family responsible for some of the medium’s most memorable works. She was the youngest of six children that included sisters, Charlotte and Emily. Their father was a clergyman, who raised them in a parish with very little money. As an adult, Anne took a position as a governess to financially support herself but found the position difficult and unfulfilling. In 1846, she and her sisters published a collection of poetry called Poems by Currer, Ellis, and Acton Bell, which marked a humble beginning to a short yet impactful career.

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    Livro muito bom! Como os livros dessa época, a autora descreve com sutileza e detalhe, as nuances dos sentimentos, personalidade e caráter dos personagens envolvidos no desenvolvimento da trama do romance.

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A Inquilina de Wildfell Hall - Anne Bronte

centaur.editions@gmail.com

Capítulo 1

É necessário retrocederes comigo até ao outono de 1827. Meu pai, como sabes, era um lavrador importante num dos condados do Norte; e eu, atendendo ao seu desejo tantas vezes manifestado, segui-lhe os passos, embora não muito por minha vontade, porque a ambição aconselhava-me a procurar outra carreira mais brilhante. A opinião que tinha de mim próprio segredava-me que o desprezar a sua voz dava em resultado sacrificar o meu talento ao amor pela terra e ocultar a lucidez da minha inteligência sob a copa das árvores. Minha mãe empregara os maiores esforços para me convencer de que eu poderia vir, um dia, a levar a cabo grandes cometimentos; porém, meu pai, que considerava a ambição como o mais seguro caminho para a ruina, e qualquer mudança apenas um termo para substituir a palavra perdição, opôs-se tenazmente a todo o plano que pudesse redundar numa melhoria de situação para mim ou para os outros. Afirmava-me que tudo isso não passava de disparates e na própria hora da morte exortou-me a continuar seguindo os seus passos, como ele seguira os de meu avô, e que a minha maior ambição fosse caminhar honestamente pela vida fora, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda, e transmitir a meus filhos a herança paterna em condições, pelo menos, tão prósperas como aquelas em que ele ma deixava.

Enfim: um lavrador ativo e honesto é um dos membros mais úteis à sociedade, e, dedicando a minha inteligência à cultura das minhas terras e aos progressos da agricultura em geral, beneficiarei não só eu próprio, mas também os meus parentes e dependentes, e, até certo ponto, a humanidade em geral; não terei, pois, vivido em vão.

Com estas reflexões e outras semelhantes, procurava eu consolar-me, numa tarde fria, húmida e nevoenta, ao recolher dos campos a casa, em fins de outubro. Porém, o clarão de uma boa fogueira que eu avistava, através da janela da sala, concorreu mais para reanimar o meu espírito e reduzir ao silêncio o meu descontentamento do que todas as reflexões filosóficas e as boas resoluções que eu obrigara o meu pensamento a formular; porque é preciso não esquecer que eu nesse tempo era muito novo: tinha apenas vinte e quatro anos e não adquirira ainda, portanto, nem metade do domínio sobre mim próprio que hoje possuo, embora isso pareça não ter importância.

Contudo, antes de dar entrada nesse bem-aventurado refúgio tinha primeiro de trocar as botas enlameadas por um par de sapatos cuidadosamente engraxados e o fato próprio para andar no campo por um casaco decente, além de outros preparativos que me pusessem à altura de me poder apresentar diante de gente educada, porque minha mãe, apesar de toda a sua bondade, era absolutamente intransigente em certos assuntos.

Ao subir para o meu quarto, encontrei na escada uma rapariguinha de dezanove anos, com ar de esperta, uma figurinha rechonchuda mas muito engraçada, o cabelo em anéis luzidios a emoldurar-lhe a carita redonda, e olhos castanhos, não grandes, mas muito vivos. Escusado será dizer-te que era a minha irmã Rose. Bem sei que ainda hoje é uma mulher bastante interessante e, sem dúvida, sobretudo aos teus olhos, não menos formosa do que no dia feliz em que pela primeira vez a viste. Quem poderia prever que ela viria a ser, poucos anos depois, esposa de um homem nessa altura completamente desconhecido para mim, destinado porém a ser de futuro um amigo mais íntimo do que ela própria e mais confidencial que o pouco civilizado rapazote que me agarrou a melo do caminho, pela gola do casaco, a ponto de quase me fazer perder o equilíbrio, e que para castigo do seu atrevimento apanhou um bom soco na cabeça? A agressão não lhe produzia, todavia, qualquer estrago importante devido, provavelmente, ao facto de a cabeça dele ser não só mais que vulgarmente rija, mas estar ainda protegida por uma farta cabeleira de caracóis curtos e avermelhados que minha mãe dizia serem castanho-claros.

Ao entrarmos na sala, encontrámos a minha boa mãe sentada ao pé do lume, na sua cadeira de braços, fazendo meia, conforme era seu costume, quando não tinha nada mais importante em que empregar a sua atividade. Estivera varrendo a lareira e acendera uma boa fogueira para nos receber condignamente; a criada acabava de aparecer com a bandeja do chá e Rose trazia na mão o açucareiro e a caixa do chá, que fora buscar ao aparador de madeira escura que luzia, como ébano polido, à luz acolhedora que reinava na sala.

— Até que enfim, cá estão os dois — disse minha mãe, voltando-se para nós sem interromper o trabalho dos dedos ágeis, fazendo mover rapidamente as agulhas. — Agora fechem a porta e venham para junto do lume enquanto a Rose prepara o chá; e digam-me lá o que fizeram em todo o santo dia, porque eu gosto muito de saber em que os meus filhos empregam o seu tempo.

— Eu andei a amansar o potro ruço, e é uma empresa bastante difícil; também estive a dirigir a lavra do último restolho de trigo, porque o rapaz que anda com a charrua não percebe nada do assunto, e a pôr em execução um plano para conseguir esgotar, por completo e numa grande extensão, os terrenos baixos.

— Isso é o que se chama ser um bom rapaz! E tu, Fergus, que andaste a fazer?

— A apanhar texugos.

E, em seguida, Fergus fez uma descrição pormenorizada da caçada e das proezas dos texugos, lutando contra os cães, à qual minha mãe parecia prestar grande atenção, a contemplar o rosto animado do filho com uma dose de admiração maternal que eu achava muito superior à que o assunto merecia.

— Já estás em muito boa idade, Fergus, para fazeres mais alguma coisa do que isso — disse eu, mal apanhei ocasião, durante uma pausa momentânea, para poder intervir na conversa.

— E que hei de eu fazer? — perguntou Fergus. — A mãe não me deixa ir para a marinha ou para o exército; eu estou decidido a não fazer outra coisa, exceto tornar-me tão insuportável para todos que, só para se verem livres de mim, hão de acabar por me deixar ir daqui para fora.

A mãe passou-lhe a mão pelos cabelos, com o fim de o apaziguar. Ele resmungou e procurou mostrar-se aborrecido, em seguida ao que todos fomos tomar os nossos lugares à mesa do chá, obedecendo ao chamamento de Rose, já por três vezes repetido.

— Agora tomem o chá, para eu depois lhes dizer o que tenho feito — disse Rose. — Fui visitar os Wilson; e foi pena tu não teres ido comigo, Gilbert, porque a Eliza Millward estava lá.

— Ah, sim? E então?

— Ora, nada de novo; nem te vou falar a seu respeito; só digo que a acho uma boa rapariguinha, até engraçada quando está bem disposta, e que não me importaria chamar-lhe...

— Cala-te; cala-te, minha filha! O teu irmão nem pensa em fazer uma coisa dessas — disse minha mãe, a meia voz e levantando um dedo.

— Então, nesse caso — continuou Rose — quero dar-lhes uma novidade importante que lá soube e que tenho estado morta por lhes dizer. Lembram-se de que, há de haver um mês, correu por aí que alguém ia arrendar Wildfell Hall? Que lhes parece isto? A casa já está habitada há mais de uma semanal E nós sem sabermos de nada.

— É impossível! — exclamou minha mãe.

— É simplesmente absurdo! — vociferou Fergus.

— Mas é verdade. E apenas por uma senhora!

— Santo Deus, minha filha! A casa está toda arruinada.

— Mandou arranjar duas ou três divisões de maneira a torná-las habitáveis; e lá vive sozinha, isto é, com uma criada velha.

— Ai, que pena! Isso estraga tudo, porque eu começava a ter esperanças de que ela fosse alguma bruxa — observou Fergus, ao mesmo tempo que ia preparando uma grossa fatia de pão com manteiga.

— Que patetice, Fergus! Mas não é esquisito, mamã?

— Esquisito! A mim ainda me custa a crer.

— Mas pode crer, porque a Jane Wilson viu-a. Foi lá com a mãe, que, é claro, mal lhe constou estar uma pessoa estranha na vizinhança, ficou logo sobre brasas para a ver e saber quem era. Chama-se Senhora Graham e está de luto; não de viúva, mas já de luto aliviado... e é muito nova; diz que terá uns vinte e seis anos e que é muito metida consigo. Fizeram altas diligências para saberem quem ela era, donde viera, e tudo o mais, mas nem a senhora Wilson, com a costumada persistência e os seus intempestivos golpes de mestre, nem a menina Wilson, com as suas manobras habilidosas, conseguiram apanhar-lhe a mais leve explicação, um comentário inesperado ou qualquer palavra pela qual pudessem ficar fazendo a mais pequena ideia da sua história, da sua situação ou da sua família. Além disso, mostrou-se para com elas tão reservada, embora dentro dos limites da boa educação, que bem perceberam que ela se sentira mais satisfeita ao vê-las sair que ao vê-las entrar. Mas a Eliza Millward disse-me que o pai tem a intenção de a ir visitar brevemente para lhe dar como pastor espiritual os seus conselhos, que desconfia serem-lhe muito necessários, porque, embora tenha chegado aqui no princípio da semana passada, não apareceu na igreja no domingo; e ela, a própria Eliza, há de pedir licença ao pai para o acompanhar, pois tem a certeza de que, de uma maneira ou de outra, há de tirar dela alguma coisa. Tu bem sabes, Gilbert, que ela é muito capaz disso. E nós também temos de lá ir, mamã; bem sabe que é o costume.

— É claro, filha. Pobre criatura! Com certeza há de sentir-se muito isolada.

— Pelo amor de Deus, tratem disso quanto antes; e não se esqueçam de indagar quantas colheres de açúcar ela põe no chá e como são as toucas e os aventais que usa. E tudo o mais que puderem averiguar, porque eu não sei como hei de viver enquanto não souber isso tudo... — disse Fergus com a maior serenidade.

Mas se ele ficou na esperança de as suas palavras serem tomadas como uma prova de grande espírito, devia sofrer uma terrível desilusão, porque ninguém se riu. No entanto, o rapaz não se mostrou por isso desanimado, porque meteu para a boca uma boa dentada de pão com manteiga e ia engolir um gole de chá; nesse momento, achou ele próprio tanta graça ao que dissera, que teve de se levantar da mesa, à pressa, engasgado e atrapalhado, e sair da sala; um momento depois, ouvimo-lo a gritar, no jardim, muito aflito.

Eu, pelo meu lado, como tinha fome, contentei-me em ir devorando o presunto, as torradas e o chá, enquanto minha mãe e minha irmã continuavam a conversar e a discutir as circunstâncias aparentes ou não aparentes e a história provável, ou não, da misteriosa dama; mas devo confessar que, depois do desastre acontecido a meu irmão, por uma ou duas vezes levei a chávena à boca e depu-la outra vez no pires sem me atrever a beber o chá com receio de uma explosão semelhante à que ele sofrera.

No dia seguinte, minha mãe e Rose apressaram-se a ir apresentar os seus cumprimentos à bela reclusa, regressando, porém, pouco mais bem informadas do que ao sair de casa, embora minha mãe declarasse não dar o seu tempo por mal empregado, porque, apesar de não ter tirado muito proveito da visita, pelo menos tinha com ela feito algum bem, e isso já não era pouco. Assim, gabou-se de ter dado conselhos úteis, que esperava não fossem desatendidos, porque a senhora Graham, apesar de pouco ter dito e de se ter mostrado bastante ciosa da sua opinião, não lhe parecia incapaz de refletir; no entanto, acrescentou que, a dizer a verdade, não fazia ideia da terra onde ela teria vivido até à data, pois, coitada, demonstrava uma ignorância absoluta sob certos pontos de vista e nem ao menos tinha o bom senso de se mostrar envergonhada dessa ignorância.

— Mas sob que pontos de vista, minha mãe?

— Em questões de governo da casa e todo aquele apuro na maneira de cozinhar e outras coisas semelhantes que uma senhora tem obrigação de conhecer a fundo, quer tenha de as executar ela própria ou de as ensinar a fazer. Dei-lhe, em todo o caso, algumas informações de bastante utilidade e receitas excelentes, cujo valor ela me pareceu incapaz de apreciar, pois pedia que não me desse a esse incómodo, visto levar uma vida tão simples e sossegada que tinha a certeza de nunca lhe aparecer ocasião de as utilizar. «É possível que assim seja, minha querida senhora, isto são no entanto coisas, que toda a senhora respeitável deve saber; além disso, embora agora viva sozinha, nem sempre assim será; já foi casada e é provável (posso até afirmá-lo) que volte a sê-lo». «Aí é que está enganada, minha senhora», respondeu-me ela com certa altivez, «pois tenho a certeza de que nunca tal acontecerá». Mas eu respondi-lhe que conhecia a vida melhor do que ela.

— Alguma viuvinha romântica, ao que parece — observei eu — que veio enterrar-se naquele casarão para chorar a perda do ente querido e desaparecido... Mas provavelmente isso não dura muito.

— Também sou da mesma opinião — disse Rose — porque me não pareceu, afinal, nada inconsolável; além disso, é muito bonita, mesmo muito. Deves procurar vê-la, Gilbert; tenho a certeza de que a hás de achar uma verdadeira beleza, embora seja impossível descobrir-lhe qualquer parecença com Eliza Millward.

— Eu admito que haja moças muito mais bonitas que Eliza, mas não mais encantadoras. Admito, igualmente, que ela esteja longe de ser perfeita, mas o que afianço também é que, se fosse mais perfeita, seria menos interessante.

— E preferes então os seus defeitos às perfeições de outras pessoas.

— Exatamente, excetuando a minha mãe aqui presente.

— Ai, meu Gilbert, muita asneira dizes tu! Eu bem sei que não pensas nada assim; nem é natural que o penses — disse minha mãe, levantando-se e saindo da sala sob qualquer pretexto de ordem caseira, mas na realidade para evitar a contradição que via aflorar-me aos lábios.

Em seguida, Rose obsequiou-me, dando-me mais detalhes a respeito da senhora Graham; o seu aspeto, os modos, a maneira de vestir, e até a mobília que guarnecia a sala onde se encontrava, tudo me foi minuciosamente descrito com mais clareza do que eu desejaria, e como não dei grande atenção ao que Rose me disse, não poderia repetir as suas informações.

O dia seguinte era um sábado e, no domingo, todos estavam com grande curiosidade de saber se a formosa desconhecida tomaria em consideração o conselho do vigário, apresentando-se na igreja. Confesso que eu próprio não deixei de deitar os olhos para o banco que pertencia de direito aos habitantes de Wildfell Hall e cujas almofadas e estofo vermelho tinham deixado, durante tantos anos, de ser tratados e substituídos; por cima do banco, o sombrio escudo de armas com as suas lúgubres guarnições de fazenda preta atacada pela ferrugem parecia contemplar com feroz catadura os que nele se sentavam.

E ali vi, de facto, sentada uma figura senhoril, vestida de preto. Tinha o rosto voltado para mim, e nesse rosto, uma vez visto, alguma coisa havia que incitava a um exame mais demorado. Tinha o cabelo negro como a asa do corvo e disposto em longos anéis luzidios, um penteado muito pouco usado nessa época, mas sempre gracioso e que muito bem lhe ficava; a pele era linda e bastante pálida; os olhos não lhos pude ver porque, como estava inclinada sobre o livro de orações, as pálpebras descaídas e as longas pestanas negras ocultavam-nos; porém, as sobrancelhas que os encimavam eram expressivas e muito bem desenhadas; a fronte era ampla e intelectual, o nariz aquilino e as feições, em geral, podiam ser consideradas irrepreensíveis, notando-se apenas as faces e os olhos ligeiramente encovados. Os lábios, embora finamente desenhados, eram delgados de mais e tão fortemente comprimidos que me pareceram indicar um génio, não dos mais acomodatícios; fiz então para comigo a seguinte observação:

«Prefiro admirar-te à distância, bela dama, a partilhar contigo o meu lar».

Justamente nessa ocasião, ergueu ela os olhos, que se encontraram com os meus; porém, eu não quis desviar o olhar e ela voltou a fixar os seus no livro, mas com uma momentânea e indefinível expressão de desprezo que conseguiu exasperar-me a um ponto difícil de explicar.

«Supõe-me provavelmente algum atrevido bonifrate», pensei de mim para mim. «Pois espera que hás de mudar em breve de opinião, se eu entender que vale a pena meter-me nisso».

Então acudia-me à ideia serem estes pensamentos realmente muito impróprios do lugar em que nos achávamos e que a minha maneira de proceder na presente ocasião estava longe de ser o que devia. Antes, porém, de fixar a atenção no ofício divino, relanceei os olhos pela igreja, a ver se alguém me estaria observando; mas não... todos aqueles que não estavam entregues à leitura das suas orações tinham os olhos fitos na senhora desconhecida e nesse número estavam incluídas minha mãe, minha irmã, a senhora Wilson e a filha. A própria Eliza Millward estava sorrateiramente observando pelo canto do olho aquela que nesse dia era objeto da curiosidade geral. Em seguida voltou para mim os olhos, teve um sorrisinho tolo e baixou-os modestamente sobre o livro de orações, procurando tomar um ar de grande seriedade.

E lá estava eu mais uma vez faltando aos meus deveres, do que o meu atrevido irmão me avisou, dando-me um murro disfarçado nas costelas. Naquela ocasião só pude, é claro, mostrar o meu ressentimento pelo insulto, pisando-o, adiando a minha vingança para depois de sairmos da igreja.

Ora, Halford, antes de terminar esta carta quero dizer-te quem era Eliza Millward; essa moça era a filha mais nova do cura da nossa terra e uma pessoa para mim bastante interessante; e ela sabia-o, embora eu nunca tivesse chegado a dar-lhe qualquer explicação sobre o assunto e nem sequer tivesse intenção firme de o fazer, pois minha mãe, que entendia não haver naquelas vinte milhas em redor moça digna de prender a minha atenção, não suportava a ideia de eu me ligar a uma criaturinha tão insignificante que, além de outros defeitos, tinha o de não possuir nem ao menos meia dúzia de libras de seu. Eliza era delgada, sem contudo se lhe poder chamar magra; tinha um rosto pequenino e quase tão redondo como o da minha irmã; a cor da pele era aproximadamente a mesma, mas mais delicada e menos rosada, o nariz um tudo nada arrebitado e feições pouco regulares; era portanto mais interessante do que verdadeiramente bonita. Não posso deixar de mencionar os olhos, que eram realmente o seu maior atrativo, pelo menos considerados fisicamente; compridos e estreitos, pretos ou pelo menos castanhos muito escuros, mudavam constantemente de expressão, ora mais que naturalmente — dizia eu quase diabolicamente — maliciosos, ora irresistivelmente encantadores e, por vezes, apresentando ao mesmo tempo as duas expressões. Tinha uma voz muito meiga e quase infantil e um modo de andar tão suave e ligeiro como o do gato; porém, as suas maneiras lembravam mais a graça de um gatinho, ora indolente e malicioso, ora tímido e reservado, conforme a sua disposição.

Sua irmã Mary, uns poucos de anos mais velha e bastante mais alta, tinha uma figura muito mais cheia e era pessoa sem pretensões de espécie alguma; não se tinha na conta nem de bonita nem de espirituosa e contentava-se em ser uma boa moça, simples, sossegada e sensata, tratando com a maior paciência a mãe durante uma doença muito prolongada e fatigante, e tendo passado desde esse tempo a governar a casa e a suportar todo o peso das responsabilidades da família. O pai reconhecia-lhe o valor e depositava nela a maior confiança; os gatos, os cães e os pobres adoravam-na, porém, o resto da família e a gente conhecida não lhe davam nem apreço nem importância.

O reverendo Michael Millward era homem de idade, alto, de aspeto pesado e volumoso, rosto amplo, quase quadrado e feições maciças; usava, por costume, chapéu desabado, trazendo sempre consigo um forte bengalão e vestindo geralmente calção e polainas, reservando para ocasiões solenes as meias de seda preta. Era homem firme nos seus princípios, cheios de preconceitos inabaláveis e hábitos imutáveis, intolerante com dissidências sob qualquer forma que tomassem, e procedia sempre na convicção de que as suas opiniões representavam inquestionavelmente a verdade, e quem as pusesse em dúvida ou era deploravelmente ignorante ou voluntariamente cego.

Nos meus tempos de criança habituara-me a olhá-lo com uma reverência muito próxima do terror, mas ultimamente conseguira dominar-me porque, embora tratasse os bem comportados com paternal benevolência, era para os outros severamente disciplinador e por mais de uma vez censurara asperamente as nossas faltas e pecados leves, próprios da mocidade; além disso, nos dias em que vinha visitar os meus pais, tínhamos de estar de pé diante dele e recitar o catecismo ou qualquer hino religioso ou, ainda pior que tudo isso, responder às suas perguntas sobre o texto do seu último sermão, do qual invariavelmente nada nos lembrava. Algumas vezes, o excelente homem acusara também minha mãe de ser excessivamente indulgente para com os filhos e, com o fim de justificar essas censuras, referia-se ao velho Elias, a David e até a Absalão, com o que feria dolorosamente os seus sentimentos maternais, apesar do grande respeito que lhe tinha. Ainda uma vez a ouvi exclamar: «Ai, meu Deus, só queria que ele também tivesse um filho para saber o que é ter de conservar rapazes na devida ordem!»

Tinha um cuidado muito louvável com a própria saúde física; deitava-se e levantava-se muito cedo, dava todos os dias um passeio antes do almoço, era muito esquisito na questão de fato, mais ou menos pesado conforme a temperatura, e nunca, em toda a sua vida, pregara um único sermão sem comer primeiro um ovo cru, não obstante ter bons pulmões e dispor de bons órgãos vocais. Era, além disso, extremamente cuidadoso com o que comia e bebia, sem de modo algum ser sóbrio, e tinha ideias muito especiais a respeito de dietas, que o levavam a desprezar o chá e outras coisas parecidas, que, na sua opinião, não passavam de burundangas, preferindo-lhes a cerveja. Apreciava imensamente o toucinho com ovos, o presunto e bons bifes, que os seus órgãos digestivos muito bem aceitavam, entendendo, portanto, serem igualmente bons para toda a gente. Recomendava-os aos convalescentes, mesmo de doenças muito graves, ou a dispépticos, os quais, se acaso se não davam bem com as suas prescrições, eram acusados de falta de persistência, e se se queixavam de maus resultados obtidos, afiançava-lhes o reverendo que isso devia ser imaginação.

Direi ainda mais alguma coisa a respeito de duas pessoas de que já falei para, em seguida, pôr termo a esta bem longa carta. Trata-se da senhora Wilson e de sua filha. A primeira era viúva de um lavrador abastado, velhote muito mexeriqueiro, de ideias extremamente acanhadas e que por esse motivo não merece ser descrito. Tinha dois filhos: o Robert, que não passava de um lavrador dos mais rústicos, e o Richard, rapaz muito desejoso de se instruir, vivendo quase completamente isolado, sempre entregue ao estudo dos clássicos, sob a direção do reverendo Millward, e preparando-se para ingressar numa universidade com o fim de se dedicar à Igreja.

Sua irmã, Jane, era moça de certo talento e ainda maior ambição. Para satisfazer um grande desejo seu, os pais tinham-na mandado para um colégio interno, onde recebera uma educação superior à de qualquer dos outros membros da família; ali adquirira um certo polimento e maneiras bastante elegantes, perdera por completo a acentuação provinciana e podia gabar-se de ter mais conhecimentos que as filhas do vigário. Além disso, era considerada uma beleza, embora, com franqueza, nunca me pudesse incluir na lista dos seus admiradores. Tinha uns vinte e seis anos, era alta e esbelta, tinha cabelo nem castanho nem louro escuro, mas antes de um ruivo bastante acentuado; a pele era de uma alvura invulgar e resplandecente; a cabeça pequena, o pescoço comprido, o queixo bem torneada, embora muito curto, os lábios vermelhos e delgados, os olhos inteligentes e penetrantes, de um castanho cor de avelã, porém, completamente destituídos de poesia ou sentimento. Poderia ter tido muitos pretendentes entre os que viviam na mesma esfera, porém a todos repelia e rejeitava, pois só algum fidalgo conseguiria agradar ao seu gosto requintado e algum ricaço satisfazer a sua desmedida ambição. Havia um sujeito de quem recebera ultimamente algumas provas de interesse e cujo coração, nome e fortuna, ela, segundo era voz corrente, procurara cativar. Era ele o senhor Lawrence, o squire cuja família habitara, noutro tempo, Wildfell Hall, mas que abandonara aquele casarão, havia uns quinze anos, para ir habitar uma moradia mais moderna e cheia de comodidades, numa paróquia das vizinhanças.

Agora, Halford, vou fazer-te as minhas despedidas. Esta é a primeira prestação da minha dívida; se a moeda te agradar, participa-mo, para eu te mandar o resto com vagar, mas se preferires continuar a ser meu credor, em vez de encher os bolsos com tão desajeitadas moedas, diz-mo também; e eu perdoarei o teu mau gosto, guardando o tesouro para mim próprio.

Teu, sempre dedicado,

Gilbert Markham.

Capítulo 2

Vejo, com íntima alegria, meu apreciado amigo, que a nuvem causada pelo teu desagrado se desvaneceu; que a luz que brilha na tua fisionomia me é mais uma vez favorável e me demonstra o teu desejo de conheceres a continuação da minha história; vou, portanto, sem mais delongas, continuar a narração.

Parece-me que o último dia a que me referi era um certo domingo, o último de outubro de 1827. Na terça-feira seguinte, andava eu por fora, de espingarda ao ombro, acompanhado pelo meu cão, procurando apanhar alguma peça de caça da que seria possível encontrar dentro dos limites de Linden-Car. Não tendo, porém, conseguido o que desejava, voltei a arma contra os falcões e os corvos, cujas depredações, suspeitava eu, deviam ser a causa de não encontrar uma presa que me agradasse. Com esse intuito abandonei as regiões mais frequentadas, os vales arborizados, os campos de trigo e os prados, e comecei a subir a encosta Íngreme que conduzia a Wildfell, a mais elevada e inculta eminência por aqueles sítios, na qual, à medida que se vai subindo, as árvores se vão tornando mais raras e atrofiadas, dando lugar a rudes cercas feitas de pedras apenas colocadas umas sobre outras, em parte cobertas pela hera, pelo musgo e larícios, pinheiros escoceses e espinheiros negros isolados. O terreno, visto ser rude e impróprio para a charrua, era quase todo aproveitado para pastagem de ovelhas e gado vacum; e tão pobre e delgado era que por toda a parte surgiam pedaços de rocha pardacenta por entre a relva dos outeiros; por baixo dos muros espreitavam pés de tojo e urze, relíquias de tempos ainda mais selvagens, e, em muitos dos terrenos cercados, os juncos e o joio usurpavam a supremacia sobre a erva mais própria para pastagem; no entanto, esses terrenos já me não pertenciam.

Quase no cume do monte, a umas duas milhas de Linden-Car, erguia-se Wildfell Hall, um solar já muito antiquado, da época da rainha Isabel, construído em pedra cinzenta escura, realmente venerável e pitoresco para se contemplar, mas sem dúvida demasiadamente frio e sombrio para servir de habitação, com as suas grossas travessas de pedra e janelas de vidros miudinhos, as claraboias comidas pelo tempo e a sua situação excessivamente solitária e desprotegida. Tinha apenas como defesa contra a fúria do vento e do mau tempo em geral um grupo de pinheiros escoceses, eles próprios já tão arruinados pelas tempestades, que apresentavam um aspeto, se é possível, mais sombrio e severo que o próprio Hall. Por trás deste havia ainda uns terrenos desertos e devastados e, em seguida, aparecia o cume do monte revestido de mato.

Em frente da casa havia um jardim cercado de muros de pedra, para onde se entrava por um portão de ferro, tendo a encimar as colunas laterais grandes bolas de granito cinzento-escuro, semelhantes às que serviam de decoração às obras do telhado; esse jardim ostentava, noutro tempo, as plantas mais capazes de se adaptarem à pobreza do solo e à dureza do clima e árvores e arbustos que melhor podiam suportar as tesouradas de quem pretendia dar-lhes as formas fantásticas então em moda. Agora, porém, decorridos tantos anos sem serem cultivadas nem cuidadas e tendo tudo sido abandonado à invasão das ervas daninhas, aos gelos e ao vento, à chuva e à seca, o seu aspeto era verdadeiramente desolador. Das densas sebes de alfeneiro, que noutro tempo orlavam a rua principal, restava apenas, quando muito, uma terça parte, porque o resto ou secara ou crescera desmedidamente; os loureiros recortados em formas de torres acasteladas ao centro do jardim, o guerreiro gigantesco colocado junto ao lado do passeio que conduzia ao portão e, junto deste, o leão que o guardava, tudo tomara formas tão fantásticas que era impossível compará-los a quanto existe na terra ou no céu. Apresentavam, porém, à minha imaginação de rapaz novo um aspeto de seres sobrenaturais que admiravelmente se casavam com as lendas de fantasmas e as sombrias tradições que a nossa velha ama nos contava acerca daquele vetusto edifício e dos seus antigos habitantes.

Tinha já conseguido matar um falcão e dois corvos quando avistei a casa; e então, pondo de parte a ideia de continuar a perseguir aquelas aves malfazejas, aproximei-me, na intenção de mais uma vez contemplar o velho pardieiro e ver que mudanças nele operara a sua nova inquilina. Não quis ir colocar-me mesmo na frente e espreitar pelo portão; preferi parar junto ao muro do jardim. Porém, dali não notei mudança alguma, exceto num dos corpos laterais em que as janelas escangalhadas e o telhado arruinado tinham, evidentemente, sido reparados; via também sair de uma das numerosas chaminés um pequeno penacho de fumo.

Estava eu encostado à espingarda a olhar para o telhado denegrido e entregue aos meus pensamentos, em que às caprichosas fantasias do meu espírito e recordações da infância se misturavam também as conjeturas sobre quem seria e donde teria vindo a solitária e formosa habitante atual daquelas velhas paredes, quando ouvi dentro do jardim qualquer coisa roçando ao de leve e ao mesmo tempo um ruído como de quem procura trepar. Deitando os olhos para o sítio donde provinha esse ruído, vi aparecer uma mãozita por cima do muro e agarrar-se à pedra mais alta; em seguida, apareceu outra mãozinha que se agarrou com mais firmeza e logo depois uma testa muito branca, encimada por uma cabeleira de caracóis alourados, sob os quais apareciam uns olhos azuis muito escuros e a parte superior e o narizito de um branco marfim.

Os olhos não me viram, mas resplandeceram de satisfação ao descobrirem Sancho, o meu lindo perdigueiro preto, com malhas brancas, correndo de um lado para o outro com o focinho roçando pelo chão. O pequenito levantou o rosto, chamou-o, e o bom do animal parou, olhou para a criança, agitou a cauda, mas não se alargou em demonstrações. O pequeno, que devia ter os seus cinco anos, continuou a trepar pela parede acima e tornou a chamá-lo várias vezes, mas, vendo que daí não tirava resultado, tomou a mesma resolução que Maomé: visto a montanha não se aproximar, tentou passar por cima do muro para ir ter com ela. Porém, prendeu-se-lhe o fato num dos troncos de uma velha cerejeira que havia junto ao muro. Ao tentar desembaraçar-se, escorregou-lhe um pé e cala, mas não desamparado, porque o fato continuou preso à árvore e a criança procurava libertar-se; em seguida, deu um grito agudo, e, no mesmo instante, atirei com a espingarda para cima da relva e recebi o pequenito nos meus braços.

Limpei-lhe os olhos ao vestido, disse-lhe que não se assustasse e chamei Sancho para o sossegar; ia o pequeno justamente a colocar a mãozita no pescoço de Sancho e começava a sorrir por entre as lágrimas, quando ouvi por trás de mim abrir o fecho da porta de ferro e um roçar de saias. Eis que, de repente, a senhora Graham corre direita a mim com o pescoço descoberto e os canudos à mercê do vento.

— Dê-me essa criança! — disse ela, quase em voz baixa, mas com extraordinária veemência; e, agarrando o rapazinho, arrancou-mo dos braços, como se receasse que o meu contacto lhe pudesse comunicar qualquer doença horrível. Em seguida, deitou-lhe o braço ao pescoço, e, segurando-lhe uma das mãos com força, ao mesmo tempo que, pálida, ofegante e dominada por uma profunda agitação, fitava em mim os seus grandes olhos escuros e resplandecentes.

— Eu não fiz mal algum à criança, minha senhora — disse eu, sem saber bem o que deveria fazer: se mostrar-me surpreendido, se ofendido. — Ia a cair do muro, mas felizmente consegui deitar-lhe a mão a tempo, quando o vi pendurado na árvore pelo fato, evitando assim um desastre.

— Peço-lhe perdão, senhor — balbuciou ela, acalmando-se de repente enquanto parecia recuperar a razão um momento transtornada e corando levemente. — Não o conheci... e julguei ...

Curvou-se para beijar a criança e apertou-a carinhosamente contra o peito.

— Julgou que eu pretendia roubar o seu filho, não?

A senhora Graham, rindo levemente e um pouco atrapalhada, replicou:

— Eu não sabia que o pequeno tinha tentado galgar o muro; tenho o prazer de me dirigir ao senhor Markham, não é verdade? — acrescentou ela, quase bruscamente.

Inclinei-me respeitosamente, mas, não podendo conter a minha curiosidade, perguntei como sabia quem eu era.

— Sua irmã esteve aqui há poucos dias com a senhora Markham.

— Acha-me então parecido com ela? — perguntei bastante surpreendido e não tão satisfeito com essa ideia como seria de esperar.

— Há uma certa semelhança nos olhos e na cor da pele — replicou ela, observando um momento a minha cara. — Além disso, julgo tê-lo visto na igreja, domingo passado.

Eu sorri. Nesse sorriso ou nas recordações que ele despertou, havia provavelmente qualquer coisa especialmente desagradável para ela, porque de repente o seu rosto aparentou aquele aspeto altivo e de grande frieza que já na igreja me revoltara tão indizivelmente; um olhar de repelente desprezo, que ela tomava com tanta facilidade que nem para isso precisava de alterar qualquer das feições, e que, uma vez tomado, parecia ser a sua expressão habitual. E isso feria-me tanto mais quanto eu sentia não ser afetado.

— Muito boa tarde, senhor Markham — disse ela e, sem mais palavra, afastou-se com a criança e entrou no jardim. Eu voltei para casa, irritado e desconsolado, sem bem saber porquê.

Demorei-me apenas o bastante para guardar a espingarda e o polvorinho e dar algumas instruções necessárias a um dos trabalhadores da quinta; dirigi-me em seguida a casa do vigário, com o fim de aliviar o espírito e acalmar uma certa exaltação com a presença e a conversa de Eliza Millward.

Encontrei-a, como de costume, entretida a fazer um bordado qualquer, pois a mania das lãs alemãs ainda não principiara, enquanto a irmã, sentada ao canto da chaminé, com o gato no colo, tratava de consertar um monte de meias.

— Mary, Mary, guarda isso! — exclamou Eliza com vivacidade, exatamente na altura em que eu entrava na sala.

— Isso é que não! — respondeu a outra fleumaticamente; e a minha entrada pôs ponto na discussão.

— Tem muito pouca sorte, senhor Markham! — observou a irmã mais nova, deitando-me um dos seus olhares oblíquos e maliciosos. — O papá saiu agora mesmo, para visitar a paróquia, e é natural que não esteja de volta senão daqui por uma hora.

— Isso não importa; é de esperar que eu consiga passar muito agradavelmente alguns momentos com as filhas, se elas para isso me derem licença — disse eu, indo buscar uma cadeira e sentando-me junto do lume, mesmo sem ninguém a isso me convidar.

— Enfim, se se portar muito bem e souber distrair-nos, prometo-lhe que não há de encontrar oposição da nossa parte.

— Pelo amor de Deus, não ponha condições, pois deixo-me ficar muito mais na esperança de gozar aqui alguns momentos de prazer do que de os proporcionar.

Contudo, entendi ser da minha obrigação diligenciar tornar a minha presença agradável, e o pouco esforço que nisso empreguei pareceu ter dado bons resultados, pois nunca vira a menina Eliza com melhor disposição. A dizer a verdade, parecia apreciarmos mutuamente a companhia um do outro, e tanto assim que a conversa se manteve sempre, se não fértil em conceitos profundos, pelo menos animada e jovial. Foi pouco menos que um tête-à-tête, porque a irmã mais velha nem sequer abriu a boca, a não ser para corrigir alguma afirmação feita à toa ou alguma expressão exagerada de Eliza, e agradeceu-me o ter corrido a apanhar um novelo que se lhe escapara das mãos.

— Muito obrigada, senhor Markham, — disse ela, quando eu lho entreguei. — Eu mesma podia tê-lo apanhado, mas não quis incomodar o gato.

— Ai, Mary! Isso não é desculpa que agrade ao senhor Markham — apressou-se a dizer Eliza — porque ele tem aos gatos, provavelmente, o mesmo ódio que às solteironas, como de resto a maior parte dos homens. Não é assim, senhor Markham?

— Creio que o nosso ódio por esses animais é mais que justificado em vista das caricias constantes que vemos prodigalizar-lhes.

— Coitadinhas das pobres criaturinhas! — exclamou Eliza, levantando-se numa manifestação entusiástica e beijando repetidas vezes o favorito da irmã.

— Não faças isso, Eliza! — disse a menina Millward com aspereza, afastando a irmã com impaciência.

Era, porém, tempo de me despedir, pois mesmo caminhando a passo rápido já não conseguiria chegar à hora do chá, e a minha mãe era a alma e o espírito da ordem e da pontualidade.

A minha linda interlocutora estava, evidentemente, pouco disposta a fazer-me as suas despedidas, mas apertei-lhe a mão expressivamente, ao que ela correspondeu com um dos seus mais suaves sorrisos e um olhar encantador. A caminho de casa, sentia-me verdadeiramente feliz: o coração a transbordar de satisfação para comigo e de amor por Eliza.

Capítulo 3

Dois dias depois, a senhora Graham apresentou-se em Linden-Car, contrariamente à expectativa de Rose, que pusera na sua ideia que a misteriosa inquilina de Wildfell Hall desprezaria as mais vulgares praxes da vida civilizada, opinião que era apoiada pelas senhoras Wilson, firmando-se em que nem a visitas daquelas senhoras nem a da família Millward haviam ainda sido retribuídas. Nesta ocasião, contudo, a causa dessa omissão foi devidamente explicada, embora não de maneira a satisfazer inteiramente a opinião de Rose. A senhora Graham trouxera consigo o pequenito e, quando minha mãe se mostrou surpreendida por ele ter podido percorrer um caminho tão comprido, ela replicou:

— É realmente um bocado comprido, mas tinha, ou de o trazer comigo ou de não fazer esta visita, porque nunca o deixo só; e creio que terei de lhe pedir, minha senhora, que me desculpe para com as senhoras Millward e Wilson, quando estiver com elas, pois receio não poder ter o prazer de as visitar até que o meu Arturzinho me possa acompanhar.

— Mas tem uma criada, julgo eu; não o poderia deixar à sua guarda?

— Ela tem o serviço para fazer; além disso, como é velha, não era fácil poder andar atrás dele; é vivo de mais para ficar ao cuidado de uma mulher de idade.

— No entanto, no domingo deixou-o para vir à igreja.

— É verdade, uma vez sem exemplo e não o deixaria por qualquer outro motivo; provavelmente, daqui para o futuro, tenho de o trazer comigo ou deixar-me estar em casa.

— Então ele é assim tão irrequieto? — perguntou minha mãe, bastante indignada.

— Não é isso — replicou a senhora, sorrindo com certo ar de tristeza, ao mesmo tempo que acarinhava a cabecita encaracolada do filho que estava a seu lado, sentado num banquinho. — É que ele é o meu único tesouro; e como eu sou a única pessoa que lhe tem amizade, não gostamos de nos separar um do outro.

— Mas, minha querida senhora, acho isso uma maneira de ver muito exagerada — disse minha mãe, que não era pessoa para meias medidas. — Deve reprimir essa louca dedicação, de modo não só a evitar que seu filho se torne de um egoísmo insuportável, como também que a senhora caia no ridículo.

— Tornar-se egoísta, senhora Markham?

— É claro; isso é dar mimo de mais à criança; mesmo nesta idade não deve estar sempre agarrado às saias da mãe; deve até aprender a envergonhar-se disso.

— Minha senhora, pedia-lhe o favor de não dizer essas coisas, pelo menos diante dele; espero que o meu filho nunca se envergonhe de ser amigo da mãe! — retorquiu a senhora Graham com tanta energia que nos deixou a todos surpreendidos.

Minha mãe procurou apaziguá-la, dando-lhe uma explicação; porém, ela pareceu entender que o assunto já fora suficientemente discutido e encetou bruscamente outra conversa.

«Exatamente o que eu tinha pensado», disse comigo mesmo; «a senhora tem um génio que não é dos mais macios, apesar do rosto pálido e do aspeto suave da fronte elevada, onde o pensamento e a mágoa parecem ter igualmente deixado impresso o seu rasto».

Durante todo este tempo, eu tinha-me deixado estar sentado no outro extremo da sala, aparentemente imerso na leitura da Revista Agrícola, que por acaso estava percorrendo quando a visitante entrara; e sem querer-me mostrar excessivamente cortês, contentara-me em cumprimentá-la, continuando a ler.

Passados alguns momentos, percebi que alguém se aproximava de mim com passinhos leves e hesitantes e vi então o Arturzinho irresistivelmente atraído pelo meu cão, Sancho, deitado a meus pés. Ao levantar os olhos, vi-o a uns dois metros de distância, com os olhitos azuis atentamente pregados no cão e sem se atrever a aproximar-se, não com medo do animal, mas hesitando timidamente em chegar ao pé do dono. Não foi preciso animá-lo muito para que ele se adiantasse, pois o pequenito, embora acanhado, não era metido consigo. Daí a um instante, ajoelhou no tapete e deitou os braços ao pescoço de Sancho; pouco depois, estava sentado no meu colo e contemplava, muito interessado, os diversos exemplares de cavalos, bois, porcos e modelos de granjas apresentados no volume que eu tinha diante de mim. Eu ia, de vez em quando, deitando os olhos para a mãe, a ver se lhe agradava ou não a intimidade que entre nós começava a estabelecer-se, e percebi pelo seu olhar que por qualquer razão lhe não agradava a posição que a criança tomara.

— Artur — disse ela, por fim — anda para aqui. Estás a incomodar o senhor Markham, que quer ler.

— De modo nenhum, minha senhora; peço-lhe que o deixe estar. Eu estou muito entretido com ele! — observei, insistindo para que o deixasse continuar onde estava. No entanto, fazendo-lhe sinal com a mão e com os olhos, chamou-o para ao pé de si.

— Não, mamã — respondeu o pequeno — deixe-me ver as gravuras primeiro e depois hei de contar-lhe muita coisa a respeito delas.

— Vamos ter uma pequena reunião na segunda-feira, 5 de novembro — disse minha mãe — e espero que não recuse acompanhar-nos nessa ocasião, senhora Graham. Pode trazer o seu filhinho consigo; havemos de arranjar alguma maneira de o distrair. Então terá ocasião de apresentar pessoalmente as suas desculpas às senhoras Millward e Wilson, que cá virão, assim o espero.

— Agradeço muito, mas nunca vou a reuniões.

— Ah, mas isto é apenas uma reunião em família; encontrará aqui só as Millward e as Wilson, das quais já conhece algumas, e o senhor Lawrence, seu senhorio, com quem deve travar relações.

— Eu já o conheço um pouco; desta vez, peço-lhe que me desculpe, porque as tardes estão escuras e húmidas e tenho receio por causa do Artur, que não é muito robusto; tenho medo de o expor à influência de um tempo assim. Sinto bastante, mas tenho de adiar o prazer de gozar a sua hospitalidade para quando voltarem os dias mais compridos e as noites menos frias.

Nesse momento, Rose, a quem minha mãe fez sinal, foi buscar uma garrafa de vinho fino, acompanhada de copos e bolos tirados do armário e do bufete de madeira escura, e a ligeira refeição foi oferecida às visitas. Ambos comeram bolos, mas recusaram com insistência o vinho, não obstante os esforços empregados por minha mãe para os convencer a aceitá-lo. Artur, especialmente, olhava o líquido como se lhe incutisse não só repugnância como terror, a ponto de quase chorar quando teimavam com ele para ao menos o provar.

— Não te aflijas, Artur, disse-lhe a mãe, a senhora Markham entende que te fazia bem depois de teres andado tanto; mas não te obriga a tomá-lo e provavelmente passas bem sem ele. O meu filho detesta até mesmo ver o vinho — acrescentou ela — e só o cheiro lhe dá náuseas. Eu tinha por costume fazê-lo engolir um pouco de vinho ou qualquer bebida espirituosa com água, quando ele estava doente e à laia de remédio, e a verdade é que tenho feito o possível para que ele lhe tome zanga.

Todos se riram, exceto a jovem viúva e o filho.

— Então, senhora Graham — disse minha mãe, enxugando as lágrimas, que devido ao riso, lhe haviam acudido aos olhos azuis muito vivos — realmente muito me surpreende o que me diz; tinha-a na conta de uma pessoa mais sensata. Vai fazer do pequeno o maior sopa de leite que Deus deitou a este mundo. Então que homem quer fazer dele, se assim teima?

— Pois eu entendo que este plano é excelente — disse a senhora Graham, interrompendo-a com a mais imperturbável seriedade. — Desta maneira espero ao menos livrá-lo de um vício degradante; quem me dera poder do mesmo modo afastá-lo dos incentivos que arrastam todos os outros.

— Mas dessa maneira — disse eu — nunca conseguirá que ele tenha verdadeiro valor. Que é afinal que constitui valor, senhora Graham? É o facto de ser capaz e ter força de vontade suficiente para resistir à tentação, ou não experimentar tentação e portanto não ter de resistir-lhe? Poderá ele assim ser mais tarde um homem forte bastante para vencer grandes obstáculos e executar ações de valor, dependentes de grande esforço muscular, até com risco de grande fadiga, ou virá a ser simplesmente dos que se sentam numa cadeira sem coragem para fazer mais do que espertar o lume e levar a comida à boca? Se deseja que o seu filho caminhe através da vida honrosamente, não deve tentar afastar os obstáculos que podem surgir na sua frente, mas ensiná-lo a galgá-los com firmeza, isto é, não insistir em querer dar-lhe a mão, mas deixá-lo aprender à sua custa a caminhar sem o apoio de ninguém.

— hei de levá-lo pela mão, senhor Markham, enquanto ele não tiver força bastante para caminhar sozinho, e hei de afastar da sua frente quantas pedras puder e ensiná-lo a evitar as outras ou a galgá-las com firmeza, conforme a sua própria frase, porque depois de eu me ter esforçado o mais possível para as afastar, ainda hão de ficar de sobejo para ele ter de empregar toda a agilidade, perseverança e prudência que Deus lhe possa ter dado. É muito interessante falar de nobreza de sentimentos, do poder de resistência espiritual às provações pelas quais a virtude passa; o pior é que de cinquenta, digamos mesmo quinhentos homens que cederam à tentação, não há um só que tivesse valor bastante para ter podido resistir. E por que motivo hei de eu considerar como certo que o meu filho será um entre mil? E porque não procurar antes prepará-lo para o pior e recear que ele se pareça com... com o resto da humanidade, a não ser que eu tenha o cuidado de evitar essa infelicidade?

— Vejo que faz uma ideia muito lisonjeira de todos nós — comentei eu.

— Nada sei a seu respeito; refiro-me apenas àqueles que conheço; quando vejo toda a raça humana, salvo algumas raras exceções, tropeçar e cometer os mais graves erros pela vida fora, deixar-se cair em todos os precipícios e despedaçar-se de encontro a todos os obstáculos que lhe impedem o caminho, não terei obrigação de empregar todos os meios ao meu alcance para lhe assegurar, a ele, unia passagem menos arriscada e mais suave?

— Estou de acordo; porém, para chegar a esse resultado, o meio mais seguro será fortalecê-lo contra a tentação e nunca afastá-lo do seu caminho.

— Farei as duas coisas, senhor Markham. Deus sabe que não lhe faltarão tentações para assaltá-lo, tanto na vida íntima como cá por fora, mesmo quando já tiver passado o tempo de eu tornar para ele o vício tão pouco convidativo como abominável é a sua própria essência; eu mesma tenho realmente tido poucas ocasiões de me ver tentada por aquilo a que o mundo chama vício, mas tenho, no entanto, sofrido tentações e passado por dificuldades de outra ordem, que têm necessitado, em muitas ocasiões, de maior vigilância e firmeza, para lhes resistir, do que aquelas que em mim encontram. E isto é, creio eu, o que muitas outras pessoas reconheceriam, se acaso estivessem acostumadas a refletir e desejassem combater as suas tendências naturais, nem sempre inocentes.

— Sim — disse minha mãe, sem compreender a fundo todos aqueles argumentos — mas com certeza não quer por si mesma julgar o seu filho, e, minha querida senhora Graham, deixe-me precavê-la a tempo contra o erro, e erro fatal, assim se lhe pode chamar, de tomar à sua conta a educação de seu filho. Pelo facto de ser uma pessoa inteligente e bastante culta, pode julgar-se à altura de se encarregar dessa tarefa; mas creia que está enganada e, se persistir nessa ideia, tempo virá em que se há de arrepender amargamente, mas já o mal não terá remédio.

— Devo mandá-lo para a escola, para aprender a desprezar a autoridade e o afeto da mãe, creio eu! — disse a senhora Graham, com um sorriso em que havia amargura.

— Ah, isso não!... Mas se quer que um rapaz despreze a mãe, basta que ela o conserve em casa e passe a vida a rodeá-lo de mimos e a trabalhar e a poupar para poder satisfazer todos os seus caprichos e loucuras.

— Estou perfeitamente de acordo com o que diz, senhora Markham; mas nada está mais longe dos meus princípios e da minha prática do que deixar-me dominar por tão criminosa fraqueza.

— Pois sim, mas há de tratá-lo como se fosse uma moça, deformar-lhe o espírito e torná-lo amaricado; creia que isto é verdade, senhora Graham, embora lhe pareça que não. hei de, porém, fazer com que o senhor Millward a aconselhe a esse respeito; ele lhe fará ver as consequências desse procedimento, e tão claro como água; e há de dizer-lhe o que deve fazer e não tenho dúvida de que a há de convencer em poucos minutos.

— Não vejo necessidade alguma de incomodar o vigário — disse a senhora Graham, olhando para mim, suponho eu, por me ter visto sorrir perante a ilimitada confiança da minha mãe naquele digno homem. — O próprio senhor Markham julga os seus argumentos pelo

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