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Segredos Perfeitos
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E-book509 páginas7 horas

Segredos Perfeitos

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Sobre este e-book

Por vezes chego ao fim de um parágrafo e tenho nojo de mim mesmo; das ideias e das palavras que acabo de escrever, como se o ato implícito de negação, no nojo que faço de mim mesmo, fosse uma náusea que não sabe se deve negar as palavras que acabaram de ser escritas ou apenas a existência que se atreveu escrevê-las; mas será certamente das palavras, pois não pensei nelas; passaram diretamente de algum ponto obscuro do universo para a ponta dos meus dedos. Tenho de as reler para as entender, e quando o faço fico com medo de desaparecer; de pensar que sou nada ou pior que isso. Mas se não sou culpado por elas, pelas palavras que escrevo, e se estas surgiram por simples oportunidade material, então alguma razão hão de ter.

IdiomaPortuguês
EditoraP. Barbosa
Data de lançamento11 de dez. de 2015
ISBN9781310042218
Segredos Perfeitos
Autor

P. Barbosa

Escrevo faz já alguns anos. Tenho a ilusão de que a minha escrita não é vulgar. Se não a tivesse, não me atreveria a publicar. Escrevo por que me mandam escrever os dedos. Tudo o resto nada importa.

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    Segredos Perfeitos - P. Barbosa

    Começo pelo fim para que não me esqueça do princípio. Estas palavras foram apensas depois de tudo o resto já ter sido escrito, depois de já ter dado o passo terminal que me permitiu alcançar o Segredo Perfeito que me fustigou uma vida inteira, embora sem nunca o saber.

    A minha história é uma história banal, que acabará no precipício onde me preparo para saltar. Mas porquê saltar no precipício se o segredo já me foi revelado? Bastaria meia dúzia de palavras para o justificar, mas é necessário uma montanha delas para o entender.

    Preparo-me para saltar porque esse é o negócio que finalmente me convenceu (ou venceu); o fim da vida pelo início do além que já está aqui; da minha filha, que já está (novamente) perto de mim.

    O resto da história, desde o início até à beira do precipício, são degraus necessários de percorrer para entender, e justificar, o que me preparo para fazer.

    Nada mais há para pensar; resta saltar.

    PRÓLOGO

    1

    Não vou dizer quem eu sou. Não importa o nome que me foi atribuído, não importa se sou alto e gordo ou baixo e magro, se branco ou amarelo, se feio ou bonito. Não importa a minha carne, que é toda igual, ou a alma, que a não sei definir.

    ***

    O segredo é um dos mais importantes ingredientes do sucesso, e Zodiak sabia-o bem aos vinte e dois anos de idade.

    Os segredos podem ser usados de duas maneiras; para nos dar vantagem sobre os nossos inimigos, sobre os amigos ou sobre aqueles que amamos, ou os segredos podem ser mantidos secretos para que os outros, os nossos inimigos, os nossos amigos ou aqueles que nos amam não os possam usar contra nós. Os segredos não têm forma, sabor ou cor, e tanto podem ter o tamanho de um átomo e viverem armazenados na cabeça do homem que o transporta, ou terem o tamanho do universo e ninguém os ver.

    O homem vive entre o desejo de descobrir os segredos que se escondem fora de si e a luta que trava para evitar que os seus segredos escorreguem cá para fora. Mas os segredos do homem são fracos; é apenas uma questão de tempo até que estes se escapem pela língua; são como uma torneira, que apesar de ter sido construída para controlar a água não é capaz de resistir à ferrugem do tempo ou a um estranho que de repente chega e roda o mecanismo, deitando assim cá para fora tudo aquilo que lá dentro quer sair.

    A posse dos segredos não compete exclusivamente às coisas vivas. As coisas mortas também têm segredos, com a vantagem acrescida de não terem língua por onde estes possam escorregar.

    ***

    Os segredos de Zodiak detinham a vulgar dupla qualidade de lhe dar uma desonesta vantagem sobre todos os outros e, ao mesmo tempo, se conhecidos, poderem vir a ser utilizados como arma de arremesso pelos seus inimigos. Mas de tão estranhos que estes eram, alguns dos seus segredos quase o levaram à loucura, e um homem louco não é capaz de controlar a vida própria da sua língua. Zodiak vivia entre o assombro dos seus segredos e o medo da loucura. Lutando entre os dois, chegará o dia em que fará, sem o saber, tudo o que é necessário para que estes permaneçam tal como agora estão;

    Secretos; inexistentes.

    ***

    E se o homem foi dotado de um mecanismo através do qual os seus segredos podem deixar de ser secretos, a Mãe-Natureza (à falta de melhor palavra) está dotada de segredos que não podem ser revelados. E a razão pela qual não podem ser revelados nada tem a ver com a ausência de uma língua por onde estes possam escorregar. Não se trata disso; não podem ser revelados porque não existem palavras para os descrever. Os segredos que não podem ser descritos são chamados de Segredos Perfeitos.

    Mas adianto-me no assunto. Haverá tempo para falar deles, por portas travessas, e para os sentir, pois essa é a única forma de poderem vir a ser levemente compreendidos.

    2

    O homem comum julga-se diferente dos outros seres, os animais e os vegetais, reservando-se a si mesmo para uma galeria à parte dos restantes. A razão para tão estranha condição é, na verdade, a ausência de qualquer razão, e qualquer justificação que se queira apresentar, seja esta composta por um único parágrafo ou compilada em mil volumes de mil páginas cada, é apenas o cobarde medo humano que procura sempre esconder a banalidade da sua condição.

    Desta desigual luta entre animais soçobram os atos vis que diariamente pratica, e que justifica com tradições espúrias e com infalíveis deuses criadores, que sempre lhes sossegam os medos e perdoam os atos; um círculo perfeito que não se deixa enganar.

    ***

    Na história da minha vida, a dada altura, vi-me confrontado com a inevitabilidade da pergunta, e da resposta; que os deuses existem pela mesma razão que existe um palito; para satisfação de uma simples necessidade humana, uma necessidade igual à vontade de beber ou igual ao impulso de procriar. E não importa, para o efeito, se verdadeiramente existem ou não as dezenas de deuses do passado, do presente ou aqueles que ainda estão por chegar.

    A razão para tão esmerada ideia tem uma simples comprovação; olho a televisão; olho a revista; olho a rua; convivo com milhões de outros homens e mulheres, meus irmãos nas vontades, desejos, virtudes e defeitos, e que por simples azar da sua distribuição geográfica acreditam num deus diferente do meu, empunham rituais, valores e crenças diferentes e por vezes antagónicas das minhas. E enquanto assim vivemos, todos juntos e ao mesmo tempo, alguns (demasiados) olham para os restantes como rudes blasfemos, seres inferiores ou, na melhor das considerações, infelizes na sorte que lhes calhou, e nunca aceitando que toda esta mixórdia mal inventada e mal contada, ao longo de milénios, não é mais do que um epitáfio da inteligência humana, capaz de se propagar de geração em geração sem fim à vista, fonte de ódios, guerras, ignorância, sofrimento e misérias sem fim. E a razão aparente para que este estado de coisas se propague infinitamente, certamente, provém de uma vontade maior, imaterial e invisível, que manipula e entorpece a mente de cada homem e mulher que já existiu e virá a existir. E é esta força, que ao homem não é permitido ver com a clareza da água límpida, mãe e pai de tudo o que é conhecido e desconhecido, dona de um segredo que maquilha com a realidade, impossível de ser compreendida pelo homem que finge compreender, mesmo que um dia alguém chegue e esfregue a verdade em frente dos seus olhos, ou lhe grite a plenos pulmões; «Hei, a verdade é esta, não essa!».

    O homem tem o medo inato de olhar direito na direção da verdade, antes preferindo olhar para baixo e folhear a cartilha das verdades inventadas, a sopa instantânea que responde a todas as suas dúvidas e anseios, sem esforço, passada de geração em geração num exercício preguiçoso, mas que vai esfarelando-se ao longo dos milénios e já começa a cheirar a mofo. Um dia alguém deitará fora esta porcaria.

    Perdi tudo, de vários modos e feitios. Com estas palavras perdi mãe e pai, cada um deles enfiado dentro da sua própria cruz. Quando as ouviram, as palavras, esconjuraram-me para toda a eternidade; «Não te reconheço! Não és meu filho!», disse um deles.

    Não importa, o que eu tenho não tem cura.

    Mas tamanho rancor tem uma simples razão de ser; levaram quem eu mais amava. Com um invisível estalar de dedos, levaram-na. Em menos de duas semanas, a minha pequena filha, que ainda não tinha completado o seu sétimo ano de vida, definhou e morreu, levada por uma doença que nenhum médico foi capaz de encontrar.

    Foi o sinal que me faltava, para compreender.

    Nos seus últimos instantes de vida olhou-me nos olhos para se despedir, uma tristeza amedrontada que pedia perdão ao seu pai por aquilo que estava a acontecer, e que me fez revoltar as entranhas, vomitar, odiar, ter vontade de matar. Procurei incansavelmente durante todo o resto da minha vida, em vão, o pescoço do responsável para estrangular. Só já muito velho me convenci de que não há; no seu lugar só existe ar. Depois de ter ido a enterrar, afagaram-me as costas com o conforto dos inúteis. Disseram-me que dizia palavras injustas e até de profanação, que deus tinha um plano maior que nos cabia respeitar e que não éramos capazes de compreender, que na nossa insignificância devíamo-nos conformar e aceitar o caminho que nos havia sido traçado, para percorrer.

    Mas o ódio não desapareceu.

    Posso ser insignificante na escala do tempo e da matéria, mas sou. E ser é a razão de toda a complicação. Ser é a pequena palavra que encerra o poder infinito que transforma um simples átomo de matéria na vontade de se conhecer. Ser é a força omnipotente que me permite elevar aos céus, acima de qualquer deus, e esmagar todo aquele que se atreva a aparecer. Mas o meu poder infinito é de estranho formato e feitio, pois podendo dar cabo do autor não é capaz de eliminar o seu efeito.

    Agarro-me a ela num último e inútil movimento, esperando que uma qualquer propriedade de absorção a possa salvar, trasladando para mim o mal que alguém lá fez nascer. Choro sangue quando ela se despede com o seu último olhar, fechando os olhos para a eternidade e deixando-me vivo para sofrer.

    Sofrer até ao fim; agarro-me ao sofrimento, pois mais nada sobrou.

    A minha sina; a minha salvação.

    3

    Tal como o corpo que precisa de um coração para bombear sangue, ou de pulmões para capturar o oxigénio que o sustenta, estando essa necessidade refletida no ADN que serve de bíblia à primeira célula humana, e que após a sua fecundação pergunta; «E agora, que faço? Por que estou aqui e qual o meu destino?». E a essa pergunta, formulada numa linguagem inventada como todas são, o universo uterino que a banha e que é tudo aquilo que a célula conhece responde; «Toma, lê, segue, não questiones, esta é a tua verdade». E, como todas as outras coisas vivas, ela segue, faz o que lhe mandam, pois mais nada conhece, pois ainda antes não existia e agora existe, porque agora faz parte de algo maior que lhe ordena, para servir um propósito que desconhece e que não é seu, que lhe foi atribuído por ordem superior ou por mero acaso.

    E a empertigada espécie humana, olhando de soslaio do alto da sua magnitude autoinfligida, não é capaz de aceitar que cada um dos seus também só faz o que lhe é ordenado, convencida que está da sua liberdade individual desenhada por um deus que ajudou a forjar, recusando reconhecer que a emoção de ser único, indivisível, é uma enganosa gratificação; é uma migalha de pão de retribuição oferecida pela Vontade-Maior em troca da sua escravização, manipulado e usado como uma embalagem que será descartada mais adiante. O homem vive a vida executando uma vontade que raramente é sua, e na angústia da suspeita reside grande parte da sua tragédia.

    Amedrontado na sua caverna cerebral, tudo serve para o homem se proteger, para se escusar aos medos que sempre o ameaçam aniquilar. E se os Segredos Perfeitos que o fustigam não podem ser descobertos, então o homem satisfaz-se com sucedâneos que apenas aparentam ser sem nunca verdadeiramente o ser; adorando segredos criados na bruma do tempo, adoram, simplesmente. Adoram; não para servir os seus infindáveis deuses, mas apenas para proteger os seus infindáveis medos e anseios, perpetuando assim as explicações que lhe servem de almofada espiritual. Se a nossa existência deve ser creditada a alguém ou alguma coisa, então certamente esse alguém ou essa coisa deve sentir-se extremamente ofendido, pois na realidade ninguém o procura; foi substituído por fantoches inventados à pressa desde o início do homem.

    O homem comum abraça alegremente a doce ilusão de uma realidade confortável que lhe foi ensinada, mas que nunca é compreendida. Zodiak teve a infelicidade, ou felicidade (nunca me decidi), de reconhecer a sua existência de uma outra maneira, mais crua e sofrida, imposta pelas circunstâncias da sua vida; porque pensa nela e dela não é capaz de escapar, ou então por simples obra do acaso.

    Seja como for, não é possível voltar atrás. Depois de se aprender a ler já não é possível desaprender. Depois de lidas certas palavras o mundo muda irremediavelmente; subiu-se um degrau na escada do conhecimento e da compreensão, e depois do passo dado, do degrau subido, tudo aquilo que está abaixo parece agora pequeno e sem sentido.

    4

    É importante deixar claro, desde já, que Zodiak é um homem vulgar. Nasceu e viveu em circunstâncias mundanas, e nunca lhe foi visto qualquer capacidade transcendental. Vivia o dia a dia como uma outra pessoa qualquer, e durante a sua infância e idade adulta repetiu as mesmas perguntas que todos os homens e mulheres se atrevem a fazer, já fizeram e sempre farão (e nessa condição de repetição está um sinal da odiosa manipulação). Zodiak apenas conclui, já na idade adulta, que a normalidade geral da vida lhe é desconfortável e pouco conveniente. Mas sejamos honestos, tal conclusão foi também ela própria uma sorte ditada pelas circunstâncias. Talvez tenha sido fruto de uma avaria ou falha no mecanismo de regulação. Nunca viremos a saber. E tão estranha condição apenas uma única vez lhe foi revelada, ainda na sua tenra juventude, e para logo depois ser esquecida para todo o sempre; tinha pouco mais de cinco anos e veio queixar-se à mãe de que tinha fome. Naqueles tempos de dificuldade era frequente não terem muito para comer, mas a sua mãe, em vez de se afligir com a agonia do estômago, apenas lhe disse; «Não te preocupes. Estás apenas a ser treinado». Zodiak compreendeu, em sofrimento, nos cinco segundos de imobilidade que se seguiram, o que verdadeiramente aquelas palavras significavam, e talvez essa compreensão tenha sido de alguma forma absorvida, mas foi certamente esquecida. E assim, Zodiak, durante todo o resto da sua vida, duvida sem duvidar, avança sem saber, encontra sem procurar, e olhando para a sua existência pergunta sem perguntar; «Que faço? Por que estou aqui e qual o meu destino?». E na inconsciência dessa pergunta, e na angústia da ausência de uma resposta, Zodiak sente-se frequentemente um ator de um filme do qual não deseja participar, mas que não sabe, não entende, como o pode mandar fazer parar; dizer «Basta! Quero ser apenas eu». E sendo um ator, não tem a certeza se mandando parar o filme o eu não se esfumará instantaneamente no vazio, desaparecendo para sempre e indo parar ao céu dos atores, onde outras coisas estranhas acontecem, e sem saber se o filme não será mesmo a razão da sua existência e se confunde com ela, que ele é apenas aquilo, que ele não é mais do que ser um ator de um filme com um argumento escrito por outro, apenas com a infelicidade acrescida, e o horror, de ser capaz de contemplar tal facto.

    ***

    Sei estas coisas que aqui estão escritas porque me foram ditas e outras porque foram lidas. Outras foram ficcionadas para amplificar o efeito desejado; e a verdade não é menos verdadeira por causa disso.

    Comecemos, então.

    Capítulo 1 – ENGANO E IGNORÂNCIA

    1

    Zodiak (dos escritos legados)

    Olho para o teto do meu quarto escuro, abro os olhos o mais que posso, mas não vejo nada. Da rua não vem uma única palavra ou ruído. Se não soubesse que o teto estava ali, seria como estar deitado na cama a flutuar em nada, sozinho num vazio interminável.

    Mas não, a rapariga deitada a meu lado liberta um movimento ofegante, como se iniciasse agora a respiração para a vida. É apenas mais uma. Como é que ela se chama?

    Sou viciado em sexo. Somos todos. Devemos a essa droga a nossa existência, que nos mantém vivos e nos satisfaz, e, a mim pelo menos, também faz derrotar.

    Por vezes sinto uma forte angústia por este prazer frequentemente desejado, sentindo no meu âmago que a necessidade que me consome não é minha, mas sim do corpo que exige o ato através de uma vontade. E aqui estamos nós os dois, eu e ela, agora, nada sentindo um pelo outro, não a conheço e ela não sabe quem eu sou, apenas nos encontrámos numa festa qualquer.

    Deitados, apenas silenciosamente concordámos satisfazer vontades escondidas e não controladas, convertidas, no meu caso pelo menos, num prazer supremo que durou meia dúzia de segundos. Sinto nada, agora, nem por ela nem por ninguém, um vazio idêntico àquele que experimento quando abro os olhos neste quarto negro cheio de coisas que não podem ser sentidas.

    O que mais me incomoda é a consciência de que o ato praticado com ela ser, na sua essência, uma vontade que me é estranha, que foi plantada neste corpo que me foi emprestado, para perpetuar a vontade de alguém ou de alguma coisa, ou para atingir um fim que desconheço, que não é meu, que não controlo e não desejei. Sinto que o movimento de penetração me dá apenas o prazer necessário, mas não a satisfação, para produzir o próximo movimento, na antecipação de um prazer final que chegará mais à frente e que me é prometido em troca de algo, como no drogado que sempre se injeta para satisfazer uma vontade que não desejou.

    Mas enquanto a droga mata o drogado rapidamente, o dono do sexo usa-nos sadicamente durante toda uma vida.

    E este vício não é só do corpo, mas também da mente. De cada vez que o decido executar, sinto-me teletransportado para frente de Morpheus, com o comprimido azul da doce ilusão numa mão e o comprimido vermelho da dura realidade na outra. E sempre, sempre, de forma consciente, escolho o comprimido azul, pois receio confrontar-me com essa dura realidade; estamos a ser manipulados, brutalmente manipulados, por alguém ou alguma coisa que nos dá prazer em troca da nossa submissão; em troca do quê, na realidade? Não sou o Neo, sou o Cypher, que cobardemente, ou inteligentemente (nunca me decidi), escolhe o caminho mais fácil, mais doce.

    E assim, acordado e enganado, mas com satisfação, faço aquilo que me é ordenado. Enceno corretamente todos os movimentos sem pensar. Ela faz o mesmo, num movimento conjunto estranhamente coordenado, porque nunca ensaiado, de mútua estimulação, dando corpo ao contrato de perpetuação não compreendido pelos fantoches que se tocam. Sinto cordéis de marioneta amarrados a cada um dos meus membros, manipulados lá de cima por alguém ou por alguma coisa que não consigo ver no teto do meu quarto escuro. Se calhar não pode ser visto, apenas sentido. Será que estou louco? Ela está a acordar. Tenho de lhe dar atenção.

    - Zodiak, meu lindo. Estás acordado? Estava a sonhar contigo, com o que fizemos ontem... vamos repetir a dose?

    2

    É claro que, a bem da espécie, esta nunca poderá compreender o seu próprio destino, sob pena de tudo se desmoronar. Os Segredos Perfeitos não podem ser compreendidos e tem de ser protegidos a todo o custo, mesmo que alguns (poucos), talvez por defeito de fabrico, procurem incansavelmente a resposta à pergunta que julgam saber formular.

    A melhor forma de proteger um segredo é torná-lo incompreensível e não inteligível para o homem; melhor assim. Imagine-se o que seria se a formiga soubesse o que é e para que serve de verdade. Imagine-se que esta compreendia que quando decide a direção a tomar no chão da floresta, se para a direita ou se para a esquerda, apenas está a escolher o caminho com as feromonas lá deixadas por alguém ou por alguma coisa que tem uma agenda que ultrapassa a sua minúscula existência.

    E quando a formiga pensa na sua existência e nas decisões que toma ou deve tomar, na sua consciência inventada como todas são, esta não sente que não decide nada, não sente que está ali apenas para servir um propósito que nunca será capaz de compreender, que a sua inteligência está a ser manipulada para servir uma inteligência superior que a ultrapassa, e que por sua vez essa inteligência superior existe, também, para servir uma outra que não é capaz de compreender ou reconhecer, num provável exercício sempre crescente e infinito sem destino ou direção.

    E assim, a formiga é dotada da capacidade para compreender apenas aquilo que deve ser compreendido. Talvez seja capaz de fazer a pergunta; «Quem sou eu, o que faço?». Talvez seja capaz de compreender o que está à sua volta de alguma maneira, mas nunca reconhecendo que a sua consciência inventada não existe; que é apenas um sofisticado mecanismo vivendo dentro de um aquário, desconhecendo que existe todo um oceano para lá dele.

    Perguntarão agora que raio de Segredo Perfeito é este que, prometido infalível, afinal parece escorregar pela língua como um outro qualquer. Não há razão para aflição. As descrições poéticas são as mais fáceis de renegar. Fingimo-las líricas e, logo após as palavras terem sido lidas, ao homem não falhará a sua incompetência inata em reconhecer a sua verdadeira condição, arrogando-se, antes pelo contrário, o direito a ser considerado especial e eleito por um deus ainda mais especial, simultaneamente representante e servo de algo maior a que deseja pertencer, mas sem saber como. Na verdade pertence a algo maior, como deseja, mas de uma forma mais crua e instrumental do que julga. Não é o representante eleito, feito à imagem de alguém, salvador e pecador do mundo; é apenas uma embalagem descartável servindo um propósito que recusa reconhecer, usado por alguém ou alguma coisa que olha para ele como quem olha para uma pedra ou para um tijolo.

    Um escravo, julgando-se livre.

    E as provas estão na realidade que pode ser olhada com os olhos abertos e que discorre diariamente, sem se deter, defronte de biliões de seres que olham e não são capazes de ver, mesmo à sua frente, logo ali, a mentira à mão de semear.

    Basta parar, esquecer tudo o que foi ensinado, e por um único instante recusar pensar e sentir. E dessa recusa nascerá a compreensão; que o livre arbítrio é impossível na razão, e que o resto é apenas emoção; o livre arbítrio apenas existe na negação. É difícil, pois tal contemplação exige a coragem e a determinação para deitar tudo fora e ficar sozinho e nu na planície poeirenta e gelada, condenado a construir-se do nada com as suas próprias mãos.

    Foi essa a ideia a que Zodiak chegou no dia em que fez catorze anos, depois de passar uma tarde inteira de outono defronte do vidro da janela de sua casa, olhando as folhas amarelas esvoaçantes e as gotas da chuva fria na sua dança repetitiva, mas mágica. Vislumbrou essa verdade quando teve a coragem de olhar para lá da chuva, do vento e das folhas, e olhou a realidade oferecida a cada homem da sua rua; o vizinho, o amigo, o desconhecido. Todos eles tinham o dom da consciência e o dom do livre arbítrio, mas todos eles faziam a mesma coisa ao longo de todos os dias das suas vidas, ao longo de todas as gerações que já percorreram o pó deste planeta.

    São, todos eles, distintos, autónomos, livres de fazerem o que quiserem e entenderem, mas acabam, todos eles, fazendo igual; amando, odiando, casando, tendo filhos e todos os dias os levando à escola, deslocando-se em procissão para o emprego, fazendo a mesma coisa dia após dia, desejando as mesmas coisas, comprando as mesmas coisas, usando as mesmas coisas, reagindo da mesma forma ao anúncio da TV, comendo as mesmas coisas, viajando para os mesmos sítios que os outros, odiando e amando as mesmas coisas, abanando sincronamente a cabeça em sinal de reprovação. São estatísticas que se podem calcular e prever, fórmulas que se podem descobrir.

    Podemos fazer-lhes pontaria.

    Uma estranha vontade imobilizou Zodiak defronte daquela janela, não o deixando mover-se até ele decidir que algo tinha de mudar; que havia algo a fazer. Olhava a rua e via-se a si próprio.

    - Tenho de fugir disto. – disse para a sua imagem refletida na janela. Resta dizer que não conseguiu.

    Mas não procuremos explicar o que não pode ser explicado; talvez possa ser sentido. Zodiak também não era capaz de compreender, mas os estranhos acontecimentos que se irão desenrolar ao longo da sua vida serão a chama que alimentará a sua vontade de percorrer um caminho que, por simples acaso ou oportuna falha mecânica, levará o mundo por um trilho tão estranho quanto esperado. Pena que tenha desaparecido precisamente antes da oportunidade que lhe foi oferecida para verdadeiramente ver.

    3

    As origens de Zodiak são modestas. A sua mãe, uma cigana de ascendência romena, vagueava pelas ruas de Belgrado durante os anos oitenta lendo sinas para sobreviver. Mudou-se para Belgrado (fugiu, na realidade) para escapar ao regime de Nicolae Ceauşescu, após ter abortado em resultado da sua primeira, segunda ou terceira experiência sexual (nunca se soube bem).

    Naqueles dias, durante o regime comunista de Ceauşescu, as mulheres eram penalizadas se permanecessem sem filhos à idade de vinte e cinco. Contraceção e aborto eram obviamente proibidos e considerados um crime grave. Quando ela finalmente recusou os continuados abusos sexuais do seu tio rico e politicamente influente, a sua família denunciou-a, acusando-a de aborto. Conseguiu fugir no último instante. Tinha quinze anos.

    Drago era um funcionário público que trabalhava na Câmara Municipal de Belgrado, de origem Sérvia, trabalhador e meticuloso em tudo o que fazia, planeando metodicamente todos os passos da sua vida. Tocava piano em bares de hotel em part-time, para reforçar o seu magro salário.

    Drago nunca foi capaz de conceber uma vida feita de incertezas ou de partidas inesperadas. Odiava correr riscos, os necessários e os desnecessários, e desse modo pensava e repensava todas as decisões que necessitavam de ser tomadas. Odiava-se a si próprio por não ser capaz de aceitar a fortuna e a miséria da vida. Ele tinha uma vida monótona mas segura e absolutamente controlada por ele. Era tímido e reservado, o que significava pouco ou nenhum relacionamento com outras pessoas, especialmente com mulheres. Sexo era uma longínqua miragem, a não ser que estivesse disposto a pagar. E, periodicamente, conforme o nível de hormonas que circulavam no seu sangue, estava disposto a pagar. Era um homem religioso e tinha sido ensinado que pagar por sexo era pecado. Ele compreendia porquê, era capaz de racionalizar os riscos de saúde que corria com as atitudes que tomava, mas tudo isso era irrelevante. A verdade é que, quando o nível hormonal atingia o nível crítico, ele sabia sempre o que fazer.

    4

    Encontraram-se numa noite escura e chuvosa de fevereiro de mil novecentos e oitenta e cinco. Ele tinha acabado de sair do Hotel Palace após tocar duas horas de Mozart no bar do hotel, e estava frio, molhado e escuro como breu. Segurando o guarda-chuva com uma das mãos e apertando a gabardina junto ao pescoço com a outra, tentava desesperadamente manter a rua longe de si, andando o mais rápido que podia até ao seu apartamento três quarteirões mais abaixo.

    Permanecia muito concentrado no passeio, evitando a chuva que se acumulava no chão, percorrendo um sinuoso percurso iluminado por candeeiros de luz amarela rala que davam um tom monocromático ao momento. Então, a sua atenção foi capturada por uma silhueta negra que recortava a chuva, ali, no meio do nada, e da qual emanava um estranho reflexo de luz dos seus olhos.

    Não era um simples reflexo. Aqueles olhos pareciam ter a capacidade mágica de transformar a luz amarela e mortiça dos candeeiros em tons cintilantes de verde e azul, misturados com um cinzento metálico que capturaram Drago como um íman.

    De início não percebeu que aquela figura fantasmagórica era a de uma mulher. Ele não, mas o seu irmão de sangue com quem ele partilha a vida, aquele que não fala mas que sabe infinitamente mais, aquele que a consciência falante ignora secretamente, aquele que nos dá as dicas, a intuição, os desejos e as emoções, esse outro ser que connosco partilha a habitação, esse percebeu imediatamente que aquela figura era a de uma mulher, de uma mulher que continha uma beleza que esse outro queria possuir. A luz que emanava daqueles olhos não poderia ser de um homem. Este tipo de beleza só tem uma única finalidade, uma única razão para existir.

    Drago foi misteriosamente atraído na direção da silhueta, alterando, como que guiado por outro, o trajeto invisível que cuidadosamente havia traçado no passeio. A razão para a alteração do trajeto nunca foi perguntada; limitou-se a seguir o novo caminho desenhado em direção à estranha figura que, sentada no chão, levantou a cabeça para Drago à medida que este se aproximava, num movimento lento e submisso como o de quem vai receber algo.

    - Está bem? – perguntou, primeiro, num misto de preocupação e interrogação.

    - O que significa isso? – respondeu a silhueta prontamente, deixando Drago um pouco confuso com o desconcerto da resposta.

    - Está a chover a cântaros... você deve estar completamente encharcada e cheia de frio. Posso ajudá-la de alguma maneira? – completamente ensopada, a silhueta levantou-se e Drago pôde vê-la pela primeira vez. Os seus olhos seguiram os dela, guiados por um sentimento; o resto do corpo da mulher um pobre relicário que segura duas pedras preciosas que lhe iluminam a alma.

    - Não sei. O que está disposto a fazer por mim? – perguntou ela num tom doce e misterioso. Drago ficou momentaneamente desconcertado.

    - Está a brincar comigo? Venho ter consigo mostrando preocupação e responde-me com enigmas. Boa noite! – disse, rispidamente, enquanto se preparava para se afastar.

    - Espere! – disse ela esticando o braço na direção de Drago – Peço desculpa. Estava a tratá-lo como um dos meus clientes. Não estava à espera...

    - Clientes? Que tipo de clientes?

    - Leio sinas para ganhar a vida. Estou habituada a responder a perguntas com perguntas… bom, na realidade eu costumava ler sinas. A polícia avisou-me que ou parava de burlar clientes ou iria parar à cadeia… para dizer a verdade, não sei se não estaria melhor…

    - Melhor… como?

    - Na cadeia, claro. Eles querem livrar-se de pessoas como eu… não por causa de ler sinas... mas porque leio sinas, sou cigana e romena... é uma combinação perfeita. Perdi o meu quarto há dois dias por não ter mais dinheiro para a renda e tenho vivido na rua desde então.

    - E no frio, no meio da rua, a apanhar com a chuva?

    - …sim, por que não? Às vezes sabe bem contrariar o destino que nos está traçado, sentir que somos donos de nós próprios, especialmente em momentos como este.

    - Não percebo. – disse Drago, curioso com a conversa e o cenário em que esta se desenrola, uma cigana suja e maltrapilha, no meio da noite e do frio, a falar de destino e filosofia de vida.

    - O normal seria que, numa situação como a minha, ao menos procurasse um lugar abrigado. É o que todos fariam, certo?

    - Sim... – concordou Drago, hesitante, apertando o casaco e olhando para ambos os lados, desconfiado se tudo aquilo não seria uma armadilha para o assaltar.

    - Que raio de coisa somos nós então, se fazemos sempre igual perante a mesma situação? Se nos comportamos, nesta e em tantas outras situações, como simples máquinas, como simples botões que ligam e desligam uma lâmpada.

    - Bem, isso é tudo muito interessante, – respondeu Drago, sem saber se devia alimentar a conversa e ver o que dali saía ou se devia simplesmente terminá-la – mas acho que todos os que se encontram numa situação como a sua procuram abrigo porque é melhor para eles. É mais confortável do que ficar aqui a apanhar com a chuva gelada nos ossos.

    - Então, o que somos nós se fazemos todos a mesma coisa simplesmente por ser o mais confortável ou porque é o melhor para nós? Se fazemos sempre o que é mais fácil ou o que é certo não estamos verdadeiramente a escolher, estamos apenas a fazer aquilo que é suposto, a fazer algo que já está desenhado. É como se alguém espalhasse migalhas pelo chão e nós limitássemo-nos a segui-las e a apanhá-las e a dizer que as temos de apanhar porque é mais vantajoso para nós. Mas assim somos simples instrumentos, máquinas que se limitam a percorrer um caminho traçado por outros. – a água gelada corria abundantemente pela cara da pobre mulher. Os lábios tremiam azuis.

    - Não sei o que dizer. – confessou Drago, cheio de frio.

    - E é por isso que estou aqui. Já não tenho nada a perder. Já não tenho medo de nada. Nada. Se morrer de frio, assim será. Faço apenas aquilo que quero e não devo obediência a nada ou a ninguém. – Drago ficou a olhar para aquela mulher ensopada até aos ossos, tentado perceber se o sofrimento ou a morte pelo frio seriam mais fortes do que aquela estranha convicção.

    - Talvez fosse útil ler a palma da sua mão de vez em quando, para melhor planear o seu futuro...- respondeu Drago, procurando terminar a conversa.

    - Agora é o senhor que brinca comigo. – respondeu ela.

    - Peço desculpa, não era a minha intenção. – Drago corou por um momento - Sabe, eu não costumo fazer isto…, mas desta vez vou seguir a sua ideia e também não vou percorrer o caminho mais fácil. Se quiser, ofereço-lhe abrigo na minha casa. Pode dormir no sofá durante alguns dias e fugir ao nevão que preveem para o fim de semana.

    - Não sei o que dizer. – respondeu ela.

    - Diga-me o seu nome e será suficiente.

    - Daciana. – disse ela.

    - Muito bem. Chamo-me Drago.

    Drago nunca teve a instintiva facilidade para se relacionar com as mulheres, em se comportar da forma normal e natural como por todos é esperado e devido, mas com Daciana não sentia a insegurança. Ela não era uma mulher bonita, longe disso, mas era nova, com aproximadamente metade da sua idade.

    Ela pegou na velha mala e nos parcos bens que esta continha e dirigiram-se para o apartamento de Drago. Daciana ficou muito para além do fim de semana prometido.

    ***

    Decidiu aceitar Drago para seu marido na primavera de mil novecentos e oitenta e cinco. Apesar da sua férrea convicção debaixo da chuva que os reuniu, a verdade é que ela ansiava por um futuro definitivo para a sua vida, e pela primeira vez na vida havia alguém disposto a cuidar dela. Aquilo que Drago tinha para oferecer era pouco; apenas um pequeno e velho, mas limpo, honesto e confortável apartamento, acompanhado de um salário igualmente pequeno, mas estável. Para Daciana, essa oferta era muito mais do que aquilo que ela alguma vez imaginara; ela ambicionava pouco. Drago sentiu a oportunidade de ter o prazer procurado sem o sentimento de culpa da prostituta paga; ele era paciente e honesto. Os dois, uma combinação perfeita. Casaram e permaneceram juntos durante o resto permitido das suas vidas.

    A vida de um ser humano é a conjugação do seu potencial com aquilo que lhe é permitido ser. Drago e Daciana poderiam ter sido muito mais do que aquilo que as circunstâncias das suas vidas permitiram, mas pelo menos os seus genes não se perderam. Nove meses depois, fizeram aquilo que a Mãe-Natureza lhes ordenou quando trocaram olhares pela primeira vez na fria e escura noite; Zodiak nascia e abria os olhos para o seu novo mundo.

    A vida, nunca sendo fácil, é justa, e no longo prazo cada um só leva para casa aquilo que merece. Drago conhecia essa verdade pura e simples sem necessitar de a pensar. O seu emprego era seguro e confortável, mas providenciava apenas um magro salário. Suficiente para ele, mas insuficiente para sustentar uma família de três. O part-time a tocar piano acrescentava um precioso rendimento extra, mas a guerra civil Jugoslava de mil novecentos e noventa e um alterou por completo a situação. Estar casado com uma mulher de etnia

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