Terra - Rituais Das Sombras, Livro 02
De Maicon Lopes
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Terra - Rituais Das Sombras, Livro 02 - Maicon Lopes
Maicon Lopes
Rituais das Sombras
Livro 02 – TERRA
SUMÁRIO
I ~ SOB AS ESCAMAS DE UMA SERPENTE ~ 006
II ~ O SEU PAI SABE MAIS... TALVEZ ~ 013
III ~ ÀS VEZES É BOM TER QUEM ABRAÇAR ~ 022
IV ~ RANHURAS DO PASSADO ~ 030
V ~ NADA COMO UM DIA DE PISCINA ~ 038
VI ~ PREPARATIVOS PARA AGRADÁVEIS DESCULPAS ~ 048
VII ~ LÍLIAN E GABRIEL / PREDESTINAÇÃO OBSESSIVA ~ 056
VIII ~ MAYA E DEMETRIA / APRENDENDO A CONFIAR ~ 067
IX ~ RAVENA / A PROFUNDIDADE DAS ÁGUAS ~ 078
X ~ DANIELA E ÍCARO / RELAÇÕES E MALDIÇÕES ~ 087
XI ~ COMPANHIAS DO DESTINO ~ 102
XII ~ REFORMAS PARA A DISCÓRDIA ~ 110
XIII ~ A PALAVRA DO DIA É: CONDUTORES ~ 116
XIV ~ PEDIDOS IRRECUSÁVEIS E DE ÚLTIMA HORA ~ 124
XV ~ MEDOS DA SEGURANÇA E MEDIDAS DRÁSTICAS ~ 135
XVI ~ TUDO SE RESOLVE DEPOIS DE UM POUCO DE CHÁ ~ 145
XVII ~ VESTIDOS PARA A DISCÓRDIA ~ 152
XVIII ~ O TORNEIO COMEÇA DA MELHOR MANEIRA ~ 161
XIX ~ NUNCA SUBESTIME O PODER DA FOFOCA ~ 172
XX ~ NÃO CONFIE EM ALGO FEITO ÀS PRESSAS ~ 185
XXI ~ COMENDO POEIRA DE ARMADURA ~ 195
XXII ~ DEVOLUÇÃO DE PEDRAS ESQUECIDAS ~ 207
XXIII ~ POESIA QUE FICARIA FELIZ DE NUNCA OUVIR ~ 214
XXIV ~ ÀS VEZES A VITÓRIA VEM DE OUTRAS FORMAS ~ 225
XXV ~ LOUCURAS EM LABIRINTOS ~ 235
XXVI ~ DOLOROSAS LIMITAÇÕES ~ 248
XXVII ~ RECORDAR É... MORRER? ~ 256
XXVIII ~ RECORDAR EM MEIO AO CAOS ~ 264
XXIX ~ NADA É TÃO RUIM QUE NÃO POSSA PIORAR ~ 272
XXX ~ SITUAÇÕES E AÇÕES INESPERADAS ~ 281
XXXI ~ SHOW DE COLETIVIDADE ~ 291
XXXII ~ AMIGOS QUE SE ENTENDEM NA PORRADA ~ 302
XXXIII ~ A UM SENTIMENTO DE DISTÂNCIA ~ 310
XXXIV ~ FRUTOS DE AMOR ~ 319
XXXV ~ AQUELE PENSAMENTOS DE ESPERANÇA ~ 329
XXXVI ~ TUDO MELHORA E TUDO PIORA ~ 335
XXXVII ~ MEMENTO MORI ~ 343
XXXVIII ~ MEMÓRIAS FERIDAS (BÔNUS) ~ 352
01 – Sob As Escamas De Uma Serpente
– Basta de desculpas, Dantos! Toda essa situação é completamente inconcebível para nossa causa, para a ordem do nosso mundo! – A voz pesada e autoritária de um dos mestres conseguia me deixar profundamente incomodada, não no sentido de temor ou receio do que poderia acontecer, não, era exatamente o oposto disso, ele falava alto demais para alguém tão pequeno.
– Grande chanceler Erdos, peço que entenda a nossa posição, um tratado de paz nunca foi a solução verdadeira para nossos problemas, o nosso lugar nunca foi nas sombras da sociedade, somos superiores, e os acontecimentos do ano passado são um reflexo do que deveria ter sido feito desde o início, temos o poder para dominar, se esperarmos demais seremos subjugados.
– E você sugere um confronto direto tanto com as forças inimigas dos outros covens quanto contra as forças demoníacas? Não, isso é uma loucura, um ultraje, é de conhecimento de toda a ordem das bruxas que os demônios não podem simplesmente vagar pela terra em forma física a menos que tenham sido evocados por alguém deste mundo, tudo isso parece coincidência demais para que eu arrisque a cabeça de jovens que sequer aprenderam completamente sobre seus poderes, a resposta é não! Tessalum NÃO entrará em conflito!
– Mas grande chanceler...
– E se mais algum incidente destes acontecer, se mais alguém surgir nesta sede tirado de um outro coven, Dantos, não importa o quão importante tenham sidos os seus serviços, não importa o peso que sua presença tenha, você será deposto de seu cargo de mestre e exilado deste recinto, agora saia, não queremos ver sua cara tão cedo, independentemente de suas obrigações.
O som de algo se chocando contra o chão fez tremer céu e terra, o arrepio em meus pés me transmitiu um conforto imenso, a sensação de poder que vinha daquelas pessoas idosas ainda era algo a ser considerado. Em contrapartida, do chão próximo a Dantos surgia Irene, como sempre ela chegava nos momentos mais inoportunos, ficava imaginando como ela conseguia se manter oculta de tantos acontecimentos e mesmo assim se manter informada sobre todos eles, ou talvez seja isso que a torne um dos brinquedos preferidos de Dantos, não que eu também não o seja.
– Caro Dantos, os preparativos já estão finalizados, a Città Del Coanvati solicita o comparecimento dos conselhos de toda a ordem mágica para tratar dos ocorridos do último ano, bem como tratar a respeito do selo das sombras, cujo elo enfraquecido ameaça toda a nossa civilização, seja ela humana ou bruxa.
Eu não precisava sequer me virar na direção do conselho para saber que eles estavam completamente estarrecidos, pegos de surpresa em um ninho de cobras que Dantos fazia questão de chamar de sua mente, ele bolara tudo, absolutamente tudo, sequer me surpreenderia se o ataque dos demônios não tenha sido feito por ele, mas isso deixaria uma ponta solta, eu, o que será que ele estava tramando?
– Mas isso é impossível, uma reunião com toda a comissão mágica não é estabelecida desde muitas décadas, a última só foi estabelecida no período medieval, na época da Congrégation Sacrée.
O mundo é uma burocracia, pelo menos isso se aplicava até mesmo ao reino da magia, era incrível como as pessoas conseguiam transformar caos em ordem e ordem em caos pelo simples desejo de se colocarem ou não a frente de alguma perspectiva, empurrar seus dogmas e idealismos como verdades absolutas e irrefutáveis que levavam a um pandemônio, não fora à toa que durante anos muitos morriam em nome de qualquer conceito hediondo e que só favorecia a uma única vertente, a própria fé não fugia a essa regra assassina.
Agora, ali, sentada em uma cadeira de madeira que poderia se quebrar a qualquer momento devido à minha posição, a deixando inclinada até a parede e com as pernas sobre a mesa, e observando nada mais que um bando de velhos discutindo tão inutilmente sobre um futuro de uma organização que passou a ser meramente um grupo anônimo, escondido nas sombras pelo terror e repressão mesmo possuindo tanto poder, eu chegava a mais óbvia conclusão: Eu odiava tudo aquilo profundamente.
– Ordens são ordens, grande chanceler Erdos, agora, com sua licença, conselho, me retiro!
E lá foi ele, a cobra venenosa, a verdadeira personificação da furtividade, ele conseguia manipular muito bem desde as sombras, e isso também era algo que faria qualquer um desejar tê-lo à sua disposição e não contra si, não esperei que ele me chamasse, apenas saltei da cadeira e me adiantei, Irene talvez esperou até que me aproximasse dela para começar a caminhar ao meu lado, achei uma ação bem peculiar vindo dela.
– Não vai simplesmente se esgueirar pelo chão ou pelas paredes dessa vez?
– Não devo ousar ser tão indelicada perto de quem sempre carregou por baixo dos panos o título de Domadora da Terra. – Seu olhar era profundo, olhar naqueles olhos era da mesma forma que sentir ser tragado pelo solo, e eu não gostava nem um pouco daquele olhar, era como se, de alguma forma, até mesmo eu pudesse afundar sobre meus pés e nunca mais me erguer.
– O quanto você sabe, Irene?
– O bastante para entender quando eu devo dar um passo, e quando devo recuar.
Irene, ela com certeza era alguém a se observar, mas não a julgava totalmente, ela não parecia ser o tipo de pessoa que trairia Dantos por puro capricho, contudo, ela parecia e muito alguém que o trairia se o visse oscilar em sua própria postura, o que me trazia o questionamento, quem deveria ceder primeiro nesse elo? Os serviços da Irene ou os planos de Dantos?
– Você deseja falar comigo ainda?
– Sim, o caso do sequestro, ele causou algumas penalidades tanto para nosso abrigo quanto para você e sua turminha, Dantos conseguiu amenizar metade da situação, mas ainda há um, porém, vocês precisam cumprir um novo regime de aulas, e não devem usar seus poderes nas imediações por um longo período de tempo, caso contrário, poderão ser detidos.
– Um regime totalitário e opressor, não me surpreenda que Dantos deteste tanto a tarefa que carrega, mas tanto ele quanto você sabem que não vamos cumprir isso, não é?
Ela pareceu ignorar minha indagação e seguiu, mas ela sabia sim que não cumpriríamos.
– Não só Dantos que detesta tudo isso, pelo que me consta, ter que limitar nossas capacidades apenas como influência de um tratado não me parece muito acolhedor, principalmente para os novos egressos que a cada ano diminuem, o mundo mágico está fadado a morrer se aqueles que possuem poderes não demonstrarem posse.
– Você às vezes me conquista, sabia disso? – Falei sem qualquer propósito, Irene tinha seu lado rebelde, o que só a deixava ainda mais questionável.
– Mantenha seus amigos perto, e seus inimigos mais perto, não estou certa?
– Não pensei nesse nível, mas você não está errada.
– Perdão se não estou à disposição de qualquer perspectiva de visão sua, o que não significa que meus olhos não estão em você ou nos demais colegas, agora, me retiro.
Já estávamos fora dos recintos dos mestres, a luz do sol matinal quase feriu meus olhos depois de passar tanto tempo naquele lugar escuro, mais alguns passos e apenas eu caminhava, sozinha depois de ter sido deixada por Irene, ela seria uma boa adição em uma situação de espionagem, ou talvez ela já o seja, depois de tantos anos eu ainda me perguntava como nunca parei para averiguar seus passos, ou talvez só não tenha sentido que valia a pena, ter informações através dela me bastava, por hora.
Caminhei até os dormitórios, um lugar um pouco mais agradável que todo o resto, já que era a única área que poderíamos personalizar como queríamos, desde que respeitássemos a individualidade e praticássemos a coletividade, ou seja, ou todos estavam de acordo ou nada feito. Era uma ala enorme onde haviam diversos prédios, cada um deles alocava até quatro pessoas por prédios, cada um dos prédios possuía alguma coisa única, se não fossem as cores eram as formas ou estruturas, alguns dos prédios pareciam ter sido criados para alocar uma realeza, outros eram mais simples, apenas pintados ou desenhados, muitos dos residentes eram adolescentes, o que explicava o apego ao rústico, ou eram prédios alegres demais ou eram góticos demais, aquilo me dava nojo.
Entrei no segundo prédio da esquerda, modelado externamente para parecer como um simples hotel, o que cai bem com o gosto de todo mundo lá dentro, a parte interna conseguia ser maior do que aparentava por fora, pura magia, os espaços eram divididos em quatro, sendo um grande que usávamos como sala, outro como cozinha, um terceiro aposento usávamos como acervo e outras coisas a mais e o último residiam os quartos individuais, que também eram espaçosos, naquele lugar menos deprimente do que todo o lado de fora, viviam além de mim, Rubens e Vincent, nossa querida colega restante havia nos deixado a muito tempo e que não voltaria mais, nem pra aquele lugar, nem pros braços do Rubens.
– Gentalha, tenho que contar algo a vocês, apareçam! – Um silêncio mórbido, ninguém me respondeu, o que não me agradou em nada. – Eu sinto vocês aqui, apareçam logo.
– Vincent ainda não está de bom humor com você, ou será que não percebeu? – Rubens saiu da cozinha com uma lata de refrigerante de sabor questionável.
– Ele que supere logo, já perdeu a graça, é assim nos combates, ou você aprende a lidar ou você morre, mas isso não importa agora, tenho duas coisas pra contar, as coisas vão ficar sérias...
02 – O Seu Pai Sabe Mais... Talvez
– Meu filho, você é meio demônio.
É, acho que preciso repensar meus conceitos a respeito de ser um pai, será que fiz certo em contar pra ele sobre isso?
Estava deitado em minha cama, o quarto um pouco mais iluminado por conta da claridade da manhã entrando pela janela, bem pouca, ainda era cedo, me dava tempo de preparar o café e acordar os dois. Desde os eventos passados em que, inevitavelmente, me intrometi pra impedir que algo pior acontecesse que decidi contar uma parte da história pra Kaio, Maya e Alex. Acho que não tinha pessoal melhor pra escutar aquilo, Alex? Era inegável o vínculo que tinha se formado com Kaio, era tão fofo que me lembrava do meu tempo de adolescência, nunca que eu poderia impedir que ele soubesse parte da vida de Kaio. Já a Maya era a amiga mais leal que eu já conhecera, ela não era de se impor ou falar muito, sequer parecia agir sem antes pensar a respeito do que fazer, mas era por isso que eu gostava tanto dela, ela colocava Kaio na linha. Talvez meu filho merecesse as respostas para várias perguntas que se formaram, sei que era meu dever como pai contar isso, mas ao mesmo tempo eu me sentia conflitante, eram coisas que vieram antes dele, será que não faria mais mal do que bem?
– Kaio, sei que tudo isso vai ser difícil de processar, mas eu preciso te contar algo a respeito do passado, do nosso passado.
Seus olhos estavam perdidos como se vagassem pra uma outra dimensão, eu melhor do que ninguém sabia o que estava acontecendo, ele se perdia em seus pensamentos, ele fazia muito isso, divagar sobre tantas coisas que, naquele momento, eram inalcançáveis pro restante de nós.
– Você pode contar a verdade? Você realmente quer me contar? – Suas palavras quase pareciam afiadas, uma mistura de poder e temor, como se ele se sentisse traído, e dava pra perceber, não havia sido a primeira vez.
– Posso, eu deveria ter contado antes, me desculpe, me desculpe mesmo, mas eu tinha medo, medo do que aconteceria com você ou do que pensaria quando isso fosse contado sem mais nem menos, você pode entender ao menos isso?
Ele acenou com a cabeça, como se entendesse um pouco do que eu dizia, devia ser difícil tentar lutar contra seus sentimentos e pensamentos quando tudo que se acreditou não passava de uma mentira, mas talvez, talvez essa confiança mútua de que, mesmo sabendo que algo está fora do lugar ainda é possível recolocar e seguir, não sei se é o melhor momento pra me gabar, mas sinto que isso é parte de mim também, e eu agradeço por ele ter guardado essa confiança em mim.
– Tudo começou quando eu e sua mãe decidimos nos casar, foi o melhor momento da minha vida, eu disse a mim mesmo que aquilo marcaria algo novo, uma nova vida, que queria seguir em frente e deixar meu passado pra trás, eu queria uma vida comum ao lado da minha mulher, mas não foi isso que aconteceu, meu pai nunca foi a pior pessoa do mundo, mas também não era uma das melhores, em uma noite, antes do dia do casamento, ele chegou para mim e disse que havia enfim encontrado um feitiço capaz de mudar tudo que conhecíamos, eu categoricamente rejeitei qualquer investida sua, mas isso não pareceu bastar.
– Se me permite, senhor Cah, mas que feitiço era esse? – Maya parecia preocupada, seus olhos eram claros no que expressavam, ela sabia de algo mais, assim como Kaio.
– O feitiço para evocar o prelúdio da magia, Samzara. Eu já havia ouvido falar a respeito dessa essência que pode ser considerada demoníaca, por razões que não posso contar, alguém que conheço já havia entrado em contato com essa essência, mas eu sabia que eu não queria seguir o mesmo caminho. Meu pai não ficou satisfeito com minha decisão, mas não expressou mais nenhuma motivação em vir até mim, e por um momento eu achei que estaria tudo bem, um tempo se passou, eu me casei com sua mãe, e ela teve um bebê, e foi um dos momentos mais felizes da minha vida, até que...
– Dantos veio, não é? – Alex quem falou, me questionei se ele já havia feito a relação ou se era apenas uma informação previsível, não entrei em detalhes.
– Isso mesmo, na noite do parto da minha esposa, fomos atacados, eu não tive como impedir que Dantos levasse a criança e ajudar minha esposa que estava em perigo, havia uma escolha de tempo, e tempo era algo que não tinha, em um instante de dúvida, entre perder a vida da minha mulher ou ter minha filha tirada de mim, eu pensei que poderia fazer os dois, mas não fui capaz, Dantos levou minha criança, Dantos levou... Débora.
O olhar pensativo de todos pra mim foi tão doloroso quanto recordar aquilo, mas eu precisava continuar, tinha que continuar.
– Entrei em contato com o Abrigo, a muito contragosto, já que queria deixar aquele lugar, ainda assim eles me ajudaram na busca, Calisten e Eleonora decidiram cuidar da minha esposa, mas ela estava muito abalada para simplesmente ficar parada sem fazer nada, ela insistiu e elus não puderam recusar, a levaram consigo, no meio dessa situação ela também acabou sendo sequestrada.
– Mamãe então... – Os olhos de Kaio estavam lacrimejando, tratei de erguer uma das mãos.
– Não, ela ficou bem, não sei se isso foi proposital, mas ao fazer isso Dantos me deu a localização dela, e isso me levou diretamente a ele, mas foi tarde demais, quando cheguei ele já havia iniciado o ritual para evocar Samzara, tudo estava preparado, todo o palco, mas ainda precisava de uma peça principal, parte do ritual ainda não havia sido cumprido, e foi esse o motivo dele ter me arrastado até lá, presenciar minha filha no meio de todo aquele caos, naquela situação medonha, eu perdi o controle e ataquei a tudo ali, eu caí como um patinho na armadilha de Dantos.
Parei um momento para respirar, era difícil lembrar de tudo aquilo, as marcas ainda doíam em mim, como em uma tatuagem, uma tatuagem que eu não queria ter feito.
– Dantos precisava de dois corpos para reviver Samzara, um deles seria seu hospedeiro permanente, mas isso significava que ele precisava de um outro hospedeiro provisório, alguém que tivesse a incumbência de servir como elo para ligá-lo, céu e terra, corpo e sangue, um corpo mortal para habitar, e um corpo demoníaco pra destrancar seu poder, Samzara precisava de um filho que tivesse tanto seu sangue quanto o da criança que era seu novo corpo. Samzara precisava de você, Kaio.
Ele olhou para as próprias mãos como se sentisse tudo que ele era, vendo as figuras agora desenhadas em seu braço mesmo que elas não tivessem relação, como se cada célula do seu corpo fosse imunda, nojenta, meus olhos também estavam cheios d’água, o abracei no impulso, não queria que sentisse aquilo, não queria que achasse que você não merecia estar aqui, você não merecia ter passado por tudo isso, não se culpe, você é meu filho.
– Dantos fez o ritual com Débora apenas para que, ao me levar a fúria, fizesse com que a alma de Samzara habitasse provisoriamente não nela, mas em mim, e eu não fazia ideia disso, Dantos fugiu novamente com minha filha, mas antes disso fez questão de me contar tudo que queria fazer, tudo que quer fazer, transformar novamente o mundo em uma utopia mágica, um lugar onde só nós, seres com magia, vivam, um lugar onde ninguém mais esteja sobre as sombras, pois só nós existiremos, isso sequer chega a ser belo quando você observa quantas vidas iriam se perder, quantas pessoas morreriam só pra esse prazer doentio, não, eu não podia aceitar aquilo, mas foi tarde demais. Assim que Dantos fugiu, meu corpo se tornou impedido de se aproximar muito de Débora, eu virei um servo que não poderia tocá-la, a sua alma me repelia do corpo da minha filha, mas isso não foi tudo que aconteceu.
– Ainda tem mais? – Kaio saiu do meu abraço, sua expressão estava melhor, mais calma. – O que aconteceu, como eu nasci?
– Eu não consegui ir atrás de Débora, e sua mãe estava inconsolável, eu fiz algo horrível e jamais consegui me perdoar por isso, eu pedi a Calisten e Agamenon que selassem os sentimentos e as memórias da sua mãe sobre Débora. Pra ela, até seus últimos suspiros, Débora nunca existiu, isso me doeu tanto, mas eu não tinha o que fazer, eu sou horrível...
– Pai!
Dessa vez foi ele quem me abraçou, não só ele, até mesmo Alex e Maya estavam ali do meu lado, não sei se era eu quem deveria estar chorando, mas estava, o adulto sendo consolado pelos mais novos, eu deveria ser ridículo mesmo.
– Eu preciso terminar, preciso...
– Mas para de chorar então!
– Olha aqui, você ainda não me diz o que fazer, tá sabendo?
Aquilo serviu para nos fazer rir, mas ainda estava aos prantos, que situação constrangedora.
– A alma de Samzara habitou silenciosamente em mim, e por um momento eu acabei me esquecendo também desse fato, a dor ainda estava ali, a dor de não ter minha filha, não importava o que eu fizesse não conseguia fazer com que Dantos me devolvesse Débora, eu apenas podia observar de longe, por um bom tempo foi assim, mas algo novo aconteceu, cerca de um ano depois sua mãe percebeu que estava grávida, você nasceria, e novamente eu vi que poderia tentar ser feliz, ao menos um pouco, talvez algo estivesse para melhorar lá na frente, talvez tudo não fosse tão cruel comigo, eu queria sonhar com isso, mas Samzara não permitiu.
Deixei meu corpo cair sobre a cama, nem sabia direito que ela estava exatamente ali, se não estivesse, eu teria caído no chão.
– Sua mãe não resistiu ao seu nascimento, ela não podia resistir, quando você nasceu eu entendi o que acontecera, só ali eu entendi o motivo de Dantos ter me atraído pra lá, Samzara estava no meu corpo para que... Para que a criança que nascesse fosse também filho dele, eu fui apenas um canal, eu era uma mera peça nesse jogo, eu sinto muito.
Kaio tentou falar algo, mas eu ergui uma das mãos.
– Você é meu filho, não importa o que tenha acontecido, eu não o abandonei, não poderia deixar nada nem ninguém tomar mais alguém de mim, primeiro Débora, depois sua mãe, ninguém iria me tirar você, a partir daquele dia eu fiz o possível pra esconder a nós dois, selei meus poderes para que eles não tivessem tanto efeito, e fiz o possível para que os seus permanecessem em silêncio, eu não queria te envolver nesse jogo doentio, mas, anos depois, quando Maya se encontrou com você eu percebi... Percebi que não haveria como fugir pra sempre, então simplesmente deixei acontecer, deixei que as coisas acontecessem como tinham que acontecer, no ano passado, quando houve o ataque de criaturas monstruosas por aqui eu entendia que era parte do que tinha que acontecer, foi a primeira vez que interferi e voltei a usar meus poderes, ataquei os demônios e os destruí, mas não tive tempo de limpar a sujeita quando vocês apareceram.
– Então foi por isso que Ícaro e Dani não tiveram qualquer comentário por parte de Tirantus quando usamos nossos poderes, ou mesmo por não haver ninguém ferido, porque o senhor já havia feito o serviço. – Maya me lançou um olhar, como se começasse a juntar várias outras peças.
– Sim, e fiz o máximo pra fingir que também não fazia ideia do que acontecia, sou bom ator ou não sou?
– Pai, menos, por favor.
– Seja como for, essa é toda a história, desculpa por ter escondido isso por tanto tempo, foi doloroso, mas acho que, frente a tudo que aconteceu, você precisava saber.
Houve um silêncio momentâneo, mas Kaio logo falou.
– Obrigado pai, por tudo, sério, e não se sinta mal pra sempre, tudo bem, não vou mentir, é coisa demais pra mim, mas não te odeio por isso, você é meu pai, independente do que aconteceu...
Recordar aquilo não era uma das melhores formas de se levantar logo cedo, olhei pela janela, o sol ainda não havia se erguido completamente, e bem, tinha que bancar o pai solteiro e alimentar minhas crianças, então me lancei pra fora daquela cama e segui em direção do banheiro, um banho poderia melhorar meu humor um pouco, era tudo que eu precisava, ainda não tinha certeza se foi a melhor situação para contar tudo, e sequer havia apagado todos os medos dos meus pensamentos, ainda assim, eu confiava no meu filho assim como ele mostrou confiar em mim, então darei tempo dele lidar com a situação e farei o possível pra que tudo acabe bem, eu não tive tantos momentos felizes, e não importa, ele merece tê-los, ele merece ser alguém que siga sua vida da melhor forma, como achar melhor, eu vou apoiá-lo assim como ele me apoiou até aqui.
– E agora, vamos fazer o café pra poder acordar o casal 20.
03 – Às Vezes É Bom Ter Quem Abraçar
Por um breve momento vejo a luz do sol atingir meus olhos, é intrigante como em uma manhã de sábado onde eu poderia estar tranquilamente acordando lá pras 15h eu estava ali, sentindo os raios matinais daquele astro que mais parecia atingir minha vista de propósito.
Por outro lado, isso me deu tempo para averiguar quem estava do meu lado, dormindo tranquilamente em minha cama, recostado do lado da parede, uma medida de segurança pra que ele não caísse da cama ao rolar ou algo do tipo, eu não me perdoaria se isso acontecesse,