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Lembranças de verões passados
Lembranças de verões passados
Lembranças de verões passados
E-book401 páginas5 horas

Lembranças de verões passados

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Sobre este e-book

As lembranças das férias passadas inspiravam novas promessas naquele lugar mágico, promessas que poderiam perdurar para além do Verão…

Contra a sua vontade, Olivia Bellamy acedeu a regressar à cabana da família nas montanhas Catskills, onde o seu trabalho consistiria em coordenar as obras nas instalações abandonadas para que os seus avós celebrassem ali as bodas de ouro. Kioga fora sempre um destino de sonho, mas a sua situação actual era tão lamentável que Olivia viu-se obrigada a contratar os serviços de Connor Davis, que fora o seu amor platónico durante os Verões que passaram juntos naquele lugar.
Entretanto, à medida que os dias se tornavam mais quentes, nem sequer as águas frescas do lago Willow podiam arrefecer as paixões ocultas, nem sossegar os segredos mais tórridos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de dez. de 2011
ISBN9788490009925
Lembranças de verões passados

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    Lembranças de verões passados - Susan Wiggs

    REGRAS DE COMPORTAMENTO DO ACAMPAMENTO KIOGA

    Todos têm de participar nas actividades do acampamento e usar o uniforme regulamentar. Os monitores são responsáveis por garantir a participação de todos os campistas, a menos que tenham uma justificação da enfermeira ou do director.

    Um

    Verão de 1991

    – Lolly – pronunciou o rapaz alto e desajeitado atrás dela. Era a primeira vez que falava desde que tinham saído do acampamento. – Que tipo de nome é Lolly?

    – O tipo de nome que está escrito nas costas da minha t-shirt – respondeu ela, colocando o rabo-de-cavalo sobre o ombro. Horrorizada, sentiu como ficava vermelha.

    Era uma reacção absurda. O rapaz era tolo e só estava a fazer-lhe uma pergunta simples e simplória.

    «Nada disso», disse-lhe uma voz na sua cabeça. Era o rapaz mais bonito de Eagle Lodge. E mais do que uma pergunta, fora um comentário muito perspicaz destinado a enervá-la.

    – Pois… – murmurou o rapaz e, na curva seguinte do caminho, passou junto dela, balbuciando uma espécie de desculpa, para continuar a andar enquanto assobiava um clássico dos Talking Heads.

    A primeira actividade do acampamento era fazer uma caminhada aos pares. Com isso pretendia-se familiarizar os campistas com o ambiente e entre eles. Os pares tinham sido formados à medida que os jovens saíam do autocarro, enquanto as suas mochilas e pertences eram distribuídos e transportados para as suas cabanas. Lolly fora emparceirada com aquele rapaz porque ambos tinham sido os últimos a sair do autocarro.

    – Sou a tua nova melhor amiga – disse-lhe num tom não precisamente amistoso, cruzando os braços.

    Ele lançou-lhe uma olhadela e encolheu os ombros, respondendo-lhe, com um ar de falsa nobreza:

    – Barkis está disposto.

    Lolly fingiu não ficar impressionada por o ouvir a citar David Copperfield.

    Também fingiu não se dar conta dos risinhos dos outros jovens, que gozavam com ele por ter sido emparceirado com Lolly Bellamy.

    Ao contrário dela, que ia para o acampamento desde os oito anos, aquele rapaz era um novato em Kioga. Não parecia o campista típico. Tinha o cabelo demasiado comprido e usava os calções demasiado descaídos. Os seus olhos azuis e cabelo preto conferiam-lhe um aspecto distinto, estranho, inclusive um pouco perigoso.

    Através das árvores, Lolly viu os outros campistas a andar aos pares ou em grupos de quatro, conversando amigavelmente. Era o primeiro dia do acampamento, mas os miúdos já estavam a escolher as suas amizades para aquele ano. E, como sempre, já tinham excluído Lolly.

    Subiu os óculos sobre a cana do nariz e sentiu uma pontada de inveja ao olhar para os outros campistas. Inclusive os novatos, como o rapaz alto e desajeitado, pareciam adaptar-se às mil maravilhas. Algumas das raparigas usavam as camisolas com capuz do acampamento sobre os ombros, sendo o seu sentido de moda muito mais forte do que as regras de vestuário, e quase todos os rapazes tinham atado os lenços à volta da cabeça, estilo Rambo. E todos se pavoneavam como se fossem os donos daquele lugar.

    O que não deixava de ser paradoxal, pois Lolly era a única que podia desfrutar daquele privilégio. O acampamento de Verão pertencia aos seus avós e ela tentara aproveitar-se daquela circunstância para se tornar popular entre os outros miúdos, sobretudo em Fledglins, para crianças entre os oito e os onze anos. Mas nunca lhe servira de nada. A quase ninguém importava de quem era o acampamento.

    O seu companheiro de marcha tinha encontrado um ramo de nogueira e usava-o para bater nos outros ramos ou para se apoiar enquanto caminhava. O olhar dele andava constantemente de um lado para o outro, como se receasse que alguém se atirasse a ele.

    – Portanto, o teu nome é Ronnoc – disse ela, finalmente.

    Ele franziu o sobrolho e olhou-a por cima do ombro.

    – O quê?

    – Está escrito na tua t-shirt.

    – Está virada do avesso, génio.

    – Era só uma brincadeira.

    – Pois, pois… – gozou ele, espetando o pau na terra.

    O seu destino era o cume da Saddle Mountain, que, apesar do seu nome, era mais uma colina do que uma montanha. Uma vez lá, encontrariam uma fogueira com troncos dispostos à volta. Aquele era o lugar onde se celebravam muitas tradições do acampamento. A sua avó dissera-lhe que os primeiros colonos e viajantes faziam sinais de fumo no cimo das colinas para comunicar a longa distância. Lolly sentiu-se tentada a partilhar a informação com o seu companheiro de marcha, mas, à última hora, mordeu a língua.

    Já tinha decidido que não gostava daquele rapaz. Nem de nenhum outro daquele Verão. As suas duas primas favoritas, Frankie e Dare, costumavam ir para o acampamento com ela e faziam-na sentir-se como se tivesse amigas a sério. Mas, naquele ano, tinham ido para a Califórnia com os pais, a sua tia Peg e o seu tio Clyde. Os pais de Lolly não faziam aquele tipo de viagens. Só gostavam do que lhes permitisse gabar-se e alardear. Viagens, propriedades, antiguidades, obras de arte… Até se gabavam dela, mas isso fora antes de ir para o sexto ano na escola. O ano em que as suas notas tinham começado a descer ao mesmo tempo que o seu peso aumentava. O ano do divórcio.

    – Supõe-se que temos de aprender três coisas um do outro – disse o rapaz, sem sentido de humor. O rapaz com quem ela não queria travar amizade. – E, quando chegarmos ao cimo, temos de nos apresentar ao resto do grupo.

    – Não quero saber três coisas de ti – disse ela em tom altivo.

    – Igualmente.

    A primeira fogueira do acampamento era sempre enfadonha. O que era uma pena, porque não deveria ser. As crianças mais novas eram as que mais e melhor a aproveitavam, já que não sabiam que informação guardar ou partilhar. No ano anterior, Lolly tinha declarado que os seus pais iam divorciar-se e pusera-se a chorar. Desde então, a sua vida fora um pesadelo, mas, pelo menos, a confissão fora sincera. Naquele grupo dos doze aos catorze anos, Lolly já sabia que as apresentações seriam muito chatas ou falsas, ou ambas as coisas.

    – Oxalá pudéssemos saltar essa parte – disse. – Vai ser uma verdadeira chatice. As crianças mais novas são mais interessantes, porque, pelo menos, contam tudo.

    – O que queres dizer com «tudo»?

    – Por exemplo, que o seu tio está a ser investigado pelo FBI ou que o seu irmão tem três mamilos.

    – Três quê?

    Lolly arrependeu-se de ter puxado o assunto, mas já era demasiado tarde para voltar atrás.

    – Tu ouviste-me.

    – Ninguém tem três mamilos.

    – Bebe Blackmun disse ao grupo que o seu irmão tinha três.

    – Chegaste a vê-lo? – desafiou-a ele.

    – Nem louca quereria ver algo parecido! – respondeu ela, estremecendo de asco. – Não!

    – Era uma peta.

    – Aposto que tu também tens um mamilo a mais –disse ela, sem pensar. Sabia que as probabilidades de que fosse verdade eram nulas.

    O rapaz parou, virou-se e tirou a t-shirt com um movimento ágil e elegante, tão rápido que ela não teve tempo para reagir.

    – Queres contá-los?

    A Lolly arderam-lhe as faces e passou ao lado dele, olhando em frente. Era uma idiota. No que estava a pensar?

    – Talvez tu tenhas três mamilos – disse ele em tom brincalhão. – Se calhar, devia contá-los.

    – Estás louco – disse ela, sem parar.

    – Tu é que puxaste o assunto.

    – Só tentava falar um pouco, porque tu és um chato.

    – Sim, sou assim, um chato – passou junto dela, imitando a sua maneira de andar. Em vez de voltar a vestir a t-shirt, atara-a à cintura e, com a fita da First-Blood na cabeça, parecia um selvagem de O senhor das moscas.

    Não passava de um fanfarrão e de um…

    Lolly tropeçou na raiz de uma árvore e teve de se agarrar a um ramo para manter o equilíbrio. Ele virou-se rapidamente e, por um instante fugaz, pareceu que se dispunha a segurá-la. Mas reatou a marcha em seguida, sem lhe tocar. Ela voltou a olhar para ele, mas, daquela vez, não o fez por rabugice nem por grosseria, senão por pura preocupação.

    – O que tens nas costas? – perguntou-lhe, descaradamente.

    – O que foi? – perguntou o senhor das moscas, olhando-a com o sobrolho franzido.

    – Ao princípio, pensei que não te tinhas lavado, mas acho que tens uma nódoa negra enorme – apontou-lhe para as costas, à altura da caixa torácica.

    Ele parou e virou-se com uma expressão quase cómica.

    – Não tenho nenhuma nódoa negra. Primeiro, vês mamilos a mais e, agora, nódoas negras invisíveis?

    – Estou a vê-la – insistiu ela e, apesar da sua irritação, não conseguiu evitar uma certa compaixão. Pela cor, parecia que a ferida estava a sarar, mas devia ter sido muito dolorosa.

    Ele semicerrou os olhos e a sua expressão tornou-se severa, inclusive ameaçadora.

    – Não é nada – declarou. – Caí da bicicleta – voltou a virar-se e continuou a andar, tão depressa que ela teve de se apressar para o alcançar.

    – Não pretendia zangar-te.

    – Não estou zangado contigo! – exclamou ele e acelerou ainda mais o passo.

    Não tinha demorado muito a tornar-se o seu primeiro inimigo do Verão. E não seria o único. Tinha um talento inato para conquistar a antipatia das pessoas.

    Connor dissera-lhe que não estava zangado, mas era evidente que estava chateado com alguma coisa. Uma fúria contida advertia-se nos seus músculos tensos e nos seus movimentos rápidos. Normalmente, cair de uma bicicleta provocava feridas nos cotovelos e nos joelhos, e talvez na cabeça. Mas para magoar as costas era preciso rolar por uma encosta e chocar contra alguma coisa dura. A não ser que estivesse a mentir…

    Sentia-se intrigada e decepcionada ao mesmo tempo. Decepcionada porque queria odiá-lo e não voltar a pensar nele em todo o Verão. Intrigada porque era muito mais interessante do que deveria ser.

    Também era um pouco nervoso, com aquele cabelo demasiado comprido para a sua idade, os seus calções descaídos, as suas sapatilhas coladas com fita adesiva… E o seu olhar escondia mais do que a típica malandrice infantil. Aqueles olhos azuis que tinham lido David Copperfield deviam ter visto coisas que uma rapariga como ela não podia sequer imaginar.

    Contornaram uma curva e depararam-se com uma catarata caudalosa e imponente que descarregava uma corrente constante de água diante deles.

    – Ena! – exclamou Connor, inclinando a cabeça para trás para contemplar a cascata. A água caía de uma altura de trinta metros, levantando uma nuvem espumosa ao embater contra as rochas, atravessada pelos arco-íris que os raios solares desenhavam. – É impressionante.

    – Meerskill Falls – disse ela, levantando a voz para se fazer ouvir sobre o rugido da água. – É uma das cataratas mais altas do estado. Vamos, há uma boa vista da ponte.

    A ponte Meerskill fora construída em 1930 pelo Governo. A sua imensa estrutura de betão atravessava o desfiladeiro sobre as águas turbulentas.

    – Os nativos chamam-lhe a Ponte dos Suicídios, porque as pessoas saltavam para se suicidarem.

    – Sim, claro – disse ele. Parecia cativado pela cascata e pela vegetação exuberante que crescia aos seus pés.

    – Digo-o a sério. É por isso que há uma cerca no cimo da ponte – explicou, enquanto tentava acompanhar-lhe o passo. – Puseram-na há cinquenta anos, depois de dois jovens terem saltado.

    – Como sabes que saltaram? – perguntou ele. A nuvem que a cascata levantava molhava-lhe o cabelo e as pestanas, tornando-o ainda mais atraente.

    Lolly questionou-se se a neblina também a faria parecer bonita. Certamente, não. Só lhe embaciava os óculos.

    – Suponho que só eles saibam – admitiu. Chegaram ao passadiço e atravessaram o arco que formava a corrente de segurança.

    – Talvez tenham caído acidentalmente ou talvez os tenham empurrado… Ou talvez nem sequer tenham existido.

    – És sempre tão céptico?

    – Só quando alguém está a contar-me uma peta.

    – Não é uma peta. Podes perguntar a quem quiseres –atravessou a ponte de cabeça erguida e chegou ao outro lado sem esperar para ver se ele a seguia.

    Estiveram a andar durante algum tempo em silêncio. Tinham ficado bastante atrasados em relação ao grupo, mas a ele não parecia importar-lhe e Lolly decidiu que também não lhe importava. Aquela caminhada não era uma corrida.

    De vez em quando, lançava-lhe olhares fugazes. Talvez aquele rapaz pudesse parecer-lhe simpático, mas só um pouco.

    – Cuidado… – baixou a voz ao passar junto de um prado, salpicado de flores silvestres e rodeado de bétulas. – Uma corça e dois veados.

    – Onde? – perguntou ele, esticando o pescoço.

    – Chiu… Não faças barulho – sussurrou ela, tirando-o do atalho. Não era estranho encontrar veados naquela zona, mas era sempre um espectáculo encantador ver os veados com a sua pelagem suave e os seus olhos grandes e tímidos.

    Lolly e Connor pararam na beira da clareira e observaram os animais. As crias mantinham-se coladas à sua mãe, enquanto ela fossava entre as folhas e a erva. Lolly fez sinal a Connor para que se sentasse junto dela num tronco caído e entregou-lhe uns binóculos que tirou da sua mochila.

    – É impressionante – disse ele, olhando pelos binóculos. – Nunca tinha visto um veado em liberdade.

    Lolly questionou-se de onde viria. Os veados não eram nada do outro mundo.

    – Um veado come diariamente o equivalente ao seu peso.

    – Como sabes?

    – Li-o num livro. No ano passado, li sessenta livros.

    – Meu Deus… E porquê?

    – Porque não tive tempo para ler mais – respondeu ela, com um suspiro altivo. – Custa a acreditar que se cacem veados, não é? Acho-os lindos – bebeu um gole de água do seu cantil. A cena que tinham diante dos seus olhos era como uma pintura campestre. A erva verde, as flores a agitarem-se com a brisa, os animais a pastar…

    – Consigo ver até ao lago – comentou Connor. – São uns bons binóculos.

    – Ofereceu-mos o meu pai… Um presente de consciência.

    – O que é um presente de consciência? – perguntou ele, descendo os binóculos.

    – É quando o teu pai perde o teu recital de piano e te dá um presente muito caro porque se sente culpado.

    – Há coisas piores do que o teu pai perder um recital de piano – voltou a olhar pelos binóculos. – É uma ilha aquilo que há no meio do lago?

    – Sim. Chama-se Spruce Island. Lançam de lá o fogo-de-artifício no 4 de Julho. No ano passado, tentei chegar lá a nado, mas não consegui.

    – O que aconteceu?

    – Tive de pedir ajuda quando ainda ia a meio. Quando cheguei à borda, pus-me a fingir que estava a afogar-me para que não me acusassem de tentar chamar a atenção.

    Tiveram de chamar os meus pais – o que fora a sua intenção desde o início, naturalmente. – Os meus pais divorciaram-se no ano passado e pensei que viriam os dois buscar-me – a confissão secou-lhe a garganta.

    – E resultou?

    – Claro que não! A ideia de fazer alguma coisa como uma família unida acabou para sempre. Enviaram um psicólogo, que disse que tinha de redefinir o meu conceito de família e o meu próprio papel na mesma. Portanto, esse é agora o meu trabalho. Adaptar-me à minha nova situação, enquanto os meus pais se comportam como se o divórcio fosse a coisa mais natural do mundo – abraçou-se aos joelhos e contemplou os veados, até que as lágrimas lhe toldaram a visão. – Mas, para mim, não é assim tão simples. É como se me tivessem atirado ao mar e ninguém acreditasse que estou a afogar-me.

    Ao princípio, pensou que ele deixara de a ouvir, porque tinha ficado muito calado, tal como o doutor Schneider durante as suas sessões.

    – Se estás a afogar-te e ninguém acredita – disse, finalmente, – terás de aprender a nadar.

    – Tê-lo-ei em conta.

    Ele não olhou para ela, como se pressentisse que Lolly precisava de tempo para se recompor, e continuou a olhar pelos binóculos e a assobiar uma melodia. Lolly acreditou reconhecer o tema Stop Making Sense, dos Talking Heads, e, por alguma razão estranha, sentiu-se extremamente frágil e vulnerável, como quando a tinham tirado do lago no ano anterior. Pior ainda, agora estava a chorar. Não recordava o momento em que os olhos se tinham enchido de lágrimas e custou-lhe obrigar-se a parar.

    – Devíamos continuar – disse, sentindo-se idiota enquanto apertava o lenço contra a cara. Porque contara aquelas coisas a um rapaz de quem nem sequer gostava?

    – Está bem – aceitou ele. Devolveu-lhe os binóculos e regressou ao atalho. Travar amizade com aquele rapaz fora difícil desde o início, mas, depois de chorar, era completamente impossível.

    – Sabias que todos os monitores foram campistas neste acampamento? – perguntou-lhe, desesperada por mudar de assunto.

    – Não.

    Teria de se esforçar muito mais se quisesse impressionar aquele rapaz.

    – Os monitores também têm os seus segredos – continuou. – Nem todos sabem, mas, à noite, fazem todo o tipo de loucuras. Embebedam-se, enrolam-se entre eles… Esse tipo de coisas.

    – Que bom! Conta-me alguma coisa que não saiba.

    – Bom, a cozinheira-chefe, Gertie Romano, ia concorrer a Misse Nova Iorque, mas ficou grávida e teve de desistir. E Gina Palumbo, a que está na minha cabana, contou-me que o seu pai é um chefe da máfia. E Terry Davis, o porteiro, é um bêbado.

    Connor virou-se para a fulminar com o olhar. A t-shirt caiu-lhe ao chão e ela agachou-se para a apanhar.

    – Caiu-te isto – havia uma nódoa de Ketchup na parte da frente e uma pequena etiqueta cosida nas costas, onde se lia «Connor Davis». – Davis… É o teu apelido?

    – És uma bisbilhoteira, eh? – perguntou ele. Agarrou na t-shirt e voltou a vesti-la. – Claro que é o meu apelido, génio. Caso contrário, porque estaria cosido na minha t-shirt?

    Lolly ficou sem ar. Davis… Como Terry Davis.

    – O senhor Davis? – balbuciou. – O porteiro… é teu parente?

    Connor afastou-se dela. As orelhas dele estavam vermelhas.

    – Sim, é. É o meu pai. O que gosta de beber.

    Lolly pôs-se a andar atrás dele.

    – Eh, espera… Desculpa. Não sabia… Não me tinha dado conta de que… Oh, meu Deus! Não devia tê-lo dito. É só um rumor que ouvi.

    – Sim, és uma verdadeira comediante.

    – Não, não sou. Sinto-me mal – quase tinha de correr para lhe acompanhar o passo. Sentia que a culpa a cobria como uma camada pegajosa de suor. Não podia falar-se assim dos pais de ninguém. Os seus próprios pais podiam ser desprezíveis, mas sentir-se-ia muito ofendida se fosse outra pessoa quem o dissesse.

    Mas como conseguiria saber? Todos diziam que Terry Davis não tinha família e que ninguém ia vê-lo. A última coisa que ela esperava era que tivesse um filho. Mesmo assim, deveria ter mantido a boca fechada.

    Terry Davis tinha um filho. Incrível! Aquele homem taciturno e melancólico, que trabalhava no acampamento há anos, tinha um filho. A única coisa que Lolly sabia dele era que o pai de Terry e o avô dela tinham servido juntos na Guerra da Coreia. O seu avô contara-lhe que se tinham conhecido durante o bombardeamento de Han River e que o heroísmo e a valentia demonstrados pelo senhor Davis o tinham feito merecedor de um lugar no acampamento Kioga, fosse qual fosse e apesar do gosto dele pela bebida. Desde então, tinha vivido numa das cabanas situadas nos limites do acampamento. Aquelas cabanas hospedavam os cozinheiros, os motoristas, os seguranças e o pessoal da manutenção. Toda aquela gente invisível que trabalhava vinte e quatro horas por dia para que aquele lugar apresentasse um aspecto impecável.

    O senhor Davis era um solitário. Conduzia um jipe velho e tinha sempre um aspecto cansado e doente.

    – Lamento muito, a sério – disse outra vez a Connor.

    – Não o lamentes por mim.

    – Não o faço. Lamento ter dito aquilo do teu pai. Há uma diferença.

    Connor abanou a cabeça para afastar uma madeixa dos olhos.

    – É bom sabê-lo.

    – Nunca disse que tinha um filho – ao dizê-lo, apercebeu-se de que estava a piorar tudo. – Quer dizer, nunca…

    – Não queria que eu viesse para aqui no Verão, mas a minha mãe voltou a casar-se e o seu marido não queria ver-me – explicou Connor. – Disse que não havia espaço para mim.

    Lolly pensou na nódoa negra que tinha visto nas suas costas, mas, daquela vez, lembrou-se de manter a boca fechada.

    – Numa caravana, não há muito espaço para três pessoas, mas suponho que seja uma ideia muito estranha para ti. Certamente, vives numa mansão.

    «Em duas mansões», pensou ela. Uma de cada progenitor. O que devia demonstrar que podia ser-se igualmente infeliz a viver num apartamento de luxo na Quinta Avenida ou num esgoto.

    – Os meus pais mandam-me passar o Verão fora desde os oito anos – disse a Connor. – Talvez o fizessem para poderem discutir à vontade. Nunca os ouvi a discutir – se tivesse presenciado alguma discussão, talvez o divórcio não a tivesse traumatizado tanto.

    – Quando a minha mãe descobriu que podia mandar-me para este acampamento sem que lhe custasse um cêntimo, aproveitando que o meu pai trabalhava aqui, o meu futuro ficou definido.

    Lolly analisou a informação como se fosse detective. Se Connor não tinha de pagar para estar ali, significava que era um campista bolsista. Todos os anos, o programa que os seus avós tinham fundado permitia aos jovens mais necessitados frequentar gratuitamente o acampamento. Eram jovens com problemas familiares graves e que estavam em situação de risco, embora Lolly não soubesse que tipo de riscos corriam.

    No acampamento, todos se vestiam da mesma maneira, comiam a mesma comida e dormiam nas mesmas cabanas. Em teoria, não conseguia saber-se se uma criança era filha de toxicodependentes ou de um príncipe saudita, embora, às vezes, fosse óbvio. Os jovens bolsistas falavam de um modo diferente e os seus dentes estragados ou o seu mau comportamento costumavam denunciá-los. Ou, como no caso de Connor, o seu olhar duro e perigoso advertia que não precisavam da esmola de ninguém. Nada em Connor insinuava que estivesse «em risco», salvo a dor nos seus olhos quando ela insultara o seu pai.

    – Sinto-me mal – repetiu. – Não devia ter dito nada.

    – Tens razão. Não devias ter dito nada. Não é de estranhar que vás a um psicólogo – fincou o pau na terra e acelerou o passo, dando a entender que nunca mais queria dirigir-lhe a palavra.

    «Incrível!», pensou ela. Tinha estragado tudo, como sempre. Connor encarregar-se-ia de que o resto do acampamento soubesse que ia a um psicólogo para superar a separação dos seus pais e também lhes diria que a tinha visto a chorar. Ganhara um inimigo para toda a vida.

    «És uma idiota, Lolly Bellamy», repreendeu-se, enquanto continuava a andar, sentindo-se mais irritada e suada a cada passo. Todos os anos, chegava ao acampamento Kioga com expectativas ridiculamente elevadas: «Este Verão, será diferente. Este Verão, farei novos amigos, aprenderei um desporto, divertir-me-ei muito».

    Mas a realidade não demorava a desfazer as suas ilusões. Sair da cidade não significava deixar a infelicidade para trás. Acompanhava-a para toda a parte, como uma sombra permanente na sua vida.

    Connor e ela foram os últimos a chegar ao cume. Todos os outros se juntaram à volta do espaço para a fogueira. Não havia nenhum lume aceso, já que o calor era sufocante. Os campistas estavam sentados em troncos grandes. Alguns estavam ali há tanto tempo que tinham adquirido a forma de assentos naturais. Naquele ano, os monitores chefes de Eagle Lodge eram Force McKnight e Gabby Spaulding, que cumpriam o papel na perfeição. Ambos eram atraentes, alegres e dinâmicos, tinham sido campistas em Kioga, andavam na universidade e personificavam o que os avós de Lolly chamavam o «esprit de corps» de Kioga. Conheciam as regras do acampamento em detalhe, sabiam primeiros-socorros, algumas palavras básicas de algonquino e todas as canções que podiam cantar-se à volta de uma fogueira. Também sabiam como aliviar a nostalgia dos campistas, uma epidemia especialmente frequente entre os mais jovens.

    Antigamente, a nostalgia não era um problema, já que as cabanas eram ocupadas por toda a família. Assim que acabava a escola, as mães e as crianças mudavam-se para o acampamento e os pais iam vê-los ao fim-de-semana. A avó de Lolly contara-lhe que algumas famílias regressavam ao acampamento ano após ano. Entre elas nasciam grandes amizades, apesar de só se verem no Verão.

    A sua avó tinha fotografias daqueles dias felizes. Fotografias a preto e branco, com os rebordos desgastados, conservadas nos álbuns do acampamento que remontavam à origem dos tempos. Os pais fumavam cachimbo, bebiam uísque e apoiavam-se nas suas raquetas de ténis. Junto deles estavam as mães, com os seus lenços e blusas, a apanhar sol em cadeiras de vime enquanto as crianças brincavam.

    Lolly desejava que a vida pudesse ser como então. Mas era impossível. As mulheres tinham as suas carreiras e muitas delas nem sequer se casavam.

    De modo que, agora, as cabanas só hospedavam os monitores. Jovens universitários durante o dia, selvagens degenerados à noite. No Verão anterior, Lolly e três das suas primas, Ceci, Frankie e Dare, tinham-se escapulido à noite para espiar os monitores. Primeiro, tinham visto como se embebedavam. Depois, punham música e os casais começavam a enrolar-se em toda a parte: nos alpendres, nas espreguiçadeiras, inclusive no meio da pista de dança. Ceci, a prima mais velha, tinha emitido um suspiro de desejo e tinha manifestado a sua impaciência por ter idade suficiente para trabalhar como monitora. Um desejo que tinha provocado uma careta de asco a Lolly e às outras duas primas.

    Agora, um ano mais tarde, Lolly conseguia compreender um pouco melhor aquele suspiro. O ar entre Rourke e Gabby parecia carregado de uma espécie de electricidade. Era difícil explicá-lo, mas fácil de reconhecer. Lolly conseguia imaginá-los na zona reservada ao pessoal, a dançarem e a beijarem-se.

    Quando se efectuou a recontagem de todos os campistas, Rourke agarrou na sua guitarra omnipresente e todos começaram a cantar. Lolly ficou impressionada com a voz de Connor. Quase todos os rapazes desafinavam e balbuciavam, mas Connor cantava We are the world em alto e bom som. Não o fazia com arrogância, mas com a segurança de uma estrela pop. Quando alguns dos rapazes olharam para ele, ele limitou-se a encolher os ombros e continuou a cantar.

    Algumas das raparigas ficaram a olhar para ele, boquiabertas. E com razão. Connor era tão atraente como lhe parecera ao princípio. Era uma pena que fosse um idiota. E era uma pena que ela tivesse estragado uma possível amizade.

    Depois, chegou a vez das apresentações, que foram tão chatas como Lolly receara. Supunha-se que cada um tinha de expor três dados pessoais sobre o seu companheiro de marcha. A ideia era que desconhecidos pudessem acabar por ser amigos depois de terem partilhado uma pequena aventura.

    Mas Lolly e Connor não tinham aprendido nada um do outro, salvo que seriam inimigos para o resto da vida. Lolly não sabia de onde vinha, se tinha irmãos ou irmãs, nem qual era o seu sabor de gelado favorito.

    Não havia surpresas naquele grupo. Todos andavam nas melhores escolas do mundo: Exeter, Sidwell Friends, Dalton Scholl, TASIS na Suíça… E todos tinham um cavalo, um iate ou uma casa nos Hamptons.

    Patético! Se o mais interessante de um rapaz era a escola onde estudava, não valia a pena saber mais dele. Chamou-lhe ligeiramente a atenção que o rapaz chamado Tarik estudasse numa escola muçulmana e que uma rapariga chamada Stormy estudasse em casa com os seus pais, que eram artistas circenses. Mas, à parte disso, as apresentações só lhe provocavam bocejos que conseguia conter com muita dificuldade.

    O pai de um rapaz era um publicitário com uma lista de famosos na sua agenda. Outra rapariga tinha um certificado de mergulho. Os parentes de outros tinham recebido um Óscar, um Pulitzer, um Clio… E todos exibiam a informação como se fossem medalhas ou condecorações militares.

    Ao ouvi-los, Lolly chegou à conclusão de que uma mentira era sempre mais eficaz do que a verdade.

    Então, chegou a vez dela. Levantou-se e trocou com Connor um olhar semicerrado de advertência mútua. Ele tinha informação suficiente para a humilhar, se quisesse. Esse era o mal de contar uma coisa íntima e verdadeira a uma pessoa. Era como entregar-lhe uma pistola e esperar para ver se apertava o gatilho. Não tinha ideia do que Connor contaria ao grupo. A única coisa que sabia era que lhe dera munição de sobra.

    Mas, primeiro, era a

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