Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

A balada do irlandês
A balada do irlandês
A balada do irlandês
E-book393 páginas5 horas

A balada do irlandês

Nota: 5 de 5 estrelas

5/5

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Uma estranha aliança dominada pelo desejo...

Pippa de Lacey, órfã e lutadora, ganhava a vida nas ruas de Londres graças ao seu engenho e talento como comediante. Metida numa grande confusão por causa da sua língua afiada, teve de pedir clemência ao caudilho irlandês Aidan O'Donoghue. Ele viu em Pippa um entretenimento enquanto esperava audiência com a rainha Isabel, em cujas mãos descansava o destino do seu povo.
Divertido ao princípio, acabou por ficar obcecado com a audaz e travessa vagabunda que acolhera sob a sua protecção. A estranha aliança, precipitada e impetuosa, transbordava de desejo e encerrava a promessa irresistível de uma vida que ambos desejavam desde sempre e que nunca tinham pensado conseguir.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de mar. de 2011
ISBN9788490002308
A balada do irlandês

Leia mais títulos de Susan Wiggs

Autores relacionados

Relacionado a A balada do irlandês

Títulos nesta série (100)

Visualizar mais

Ebooks relacionados

Romance histórico para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de A balada do irlandês

Nota: 5 de 5 estrelas
5/5

1 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    A balada do irlandês - Susan Wiggs

    Editado por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

    Núñez de Balboa, 56

    28001 Madrid

    © 2009 Susan Wiggs. Todos os direitos reservados.

    A BALADA DO IRLANDÉS, N° 225 - avril 2011

    Título original: At the Queen's Summons

    Publicada originalmente por Mira Books, Ontario, Canadá.

    Todos os direitos, incluindo os de reprodujao total ou parcial, sao reservados. Esta edijao foi publicada com a autorizajao de Harlequin Enterprises II BV.

    Todas as personagens deste livro sao ficticias. Qualquer seme-lhanja com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidencia. ™ ® Harlequin y logotipo Harlequin sao marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

    ® e ™ Sao marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licenja. As marcas que tem ® estao registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

    I.S.B.N.: 978-84-9000-230-8

    Editor responsável: Luis Pugni

    Inhalt

    AGRADECIMENTOS

    Primeira parte

    Dos Anais de innisfallen

    Um

    Diario de uma dama

    Dois

    Dos Anais de Innisfallen

    Três

    Diario de uma dama

    Quatro

    Dos Anais de Innisfallen

    Cinco

    Diario de uma dama

    Seis

    Dos Anais de innisfallen

    Sete

    Diario de uma dama

    Oito

    Dos Anais de Innisfallen

    Nove

    Diario de uma dama

    Dez

    Segunda parte

    Diario de uma dama

    Onze

    Dos Anais de Innisfallen

    Doze

    Diário de uma dama

    Treze

    Dos Anais de innisfallen

    Catorze

    Diário de uma dama

    Quinze

    Dos Anais de innisfallen

    Dezasseis

    Dos Anais de innisfallen

    Promo

    Dedicado com carinho a minha amiga,

    Colega e mentora

    Betty Traylor Gyenes

    AGRADECIMENTOS

    Agradego especialmente a:

    Barbara Dawson Smith, Betty Traylor Gyenes e Joyce Bell por todas as horas generosas de crítica e apoio.

    Aos muitos membros do Genie Romance Exchange, um fórum digital de mulheres estudiosas, loucas, sonha-doras e sábias.

    Ao Bord Failte do condado de Kerry, na Irlanda.

    E a sublime Trish Jensen pelo seu olho de águia ao corrigir o texto.

    Primeira parte

    Assemelha-se agora esta coroa de ouro a um pogo profundo

    Com dois baldes que em tempo diferente se enchem de água:

    Danga no ar o vazio;

    O outro, no fundo, cheio de água, é invisível.

    O de lágrimas cheio, sou eu, que bebo as minhas dores;

    Ascende o vosso: é todo riso e flores.

    William Shakespeare

    Ricardo II, acto IV, 1a cena

    Dos Anais de innisfallen

    Segundo uma tradigao antiga e honrada, eu, Revelin de Innisfallen, pego na pena para relatar as aventuras nobres e corajosas do cla O'Donoghue. Esta tarefa já foi comegada pelo meu tio e pelo seu tio antes dele e as-sim desde tempo imemorial.

    Somos sacerdotes da muito sagrada ordem de Santo Agostinho e pela graga de Deus temos o nosso lar numa ilha povoada de faias e chamada Innisfallen.

    Quem me precedeu preencheu estas páginas com historias de heróis fabulosos, batalhas terríveis, roubos de gado e aventuras perigosas. Agora, o papel de Mor O'Donoghue recaiu em Aidan, cujas faganhas tenho o dever de relatar.

    Mas, e desculpe-me o Rei dos Céus pelo meu torpor, nao sei por onde comegar. Porque Aidan O'Donoghue nao se parece com nenhum homem que eu tenha conhe-cido, nem nunca um chefe enfrentou tal desafio.

    O Mor O'Donoghue, conhecido pelos ingleses como lorde Castleross, foi chamado a Londres pela rainha que se acha no direito de nos governar. Pergunto-me com regozijo ímpio e vergonhoso se, depois de pousar os seus olhos em Aidan O'Donoghue e no seu séquito, a sua Británica Majestade nao se arrependerá de os ter chamado á sua presenga.

    Revelin de Innisfallen

    Um

    - Quantos nobres sao necessários para acender uma vela? - perguntou alguém, num tom divertido.

    Aidan O'Donoghue levantou uma mao para parar a sua escolta. Aquela voz de sotaque ingles despertara a sua curiosidade. Na rua de Londres que se prolongava atrás dele, a sua guarda pessoal, formada por uma centena de irlandeses, parou imediatamente.

    - Quantos? - gritou alguém.

    - Tres! - exclamou outra pessoa, do meio do cemité-rio de Saint Paul.

    Aidan agoitou ao seu cavalo e dirigiu-se para a zona que rodeava a enorme igreja. Muitos livreiros, mendigos, estelionatários, mercadores e impostores agitavam-se a sua volta. Já via quem falara: um pequeno relámpago de energia na escadinha da igreja.

    - Um para chamar um criado - continuou a rapariga, embriagada e brincalhona, - outro para lhe dar uma sova, outro para acender a vela e outro para culpar os franceses.

    As pessoas que a ouviam desataram a rir-se. Depois, um homem gritou:

    - Isso sao quatro, rapariga!

    Aidan flectiu as pernas para se erguer sobre os estribos. Estribos. Até há quinze dias, nunca usara aquele artefacto, nem a sela. Talvez, afinal de contas, aquela visita a Inglaterra servisse de alguma coisa. Podia prescindir, no entanto, dos tecidos vistosos com que lorde Lumley tanto insistira que cobrisse o cavalo. Na irlanda, os cavalos eram cavalos, nao bonecos vestidos de cetim e penas.

    Levantado-se sobre os estribos, olhou novamente para a rapariga: um chapéu amassado sobre o cabelo gor-duroso, uma cara suja e risonha, roupas feitas farrapos.

    - Bom - respondeu ela, - eu nao disse que sabia contar, a nao ser as moedas que me dao.

    Um homem de semblante ardiloso, vestido com cal-gas justas, juntou-se a ela na escadinha.

    - Eu poupo o meu dinheiro para comprar o que me en-tretém - segurou descaradamente a rapariga pelo brago e apertou-a contra si.

    Ela levou as maos as faces num gesto de surpresa brincalhona.

    - Senhor! Lisonjeia a minha vaidade!

    O tinido das moedas compassou uma nova explosao de gargalhadas. Perto da rapariga, um homem gordo se-gurava em tres tochas acesas.

    - Aposto seis tostSes em como nao consegue langar as tres ao mesmo tempo.

    - Aposto nove tostSes em como é capaz, tao certo como a rainha isabel sentar o seu rabo branco no trono - vociferou a rapariga e, agarrando habilmente nas tochas, comegou a fazer malabarismos com elas.

    Aidan aproximou um pouco mais o seu cavalo. A enorme égua florentina, a que dera o nome de Grania, conquistou alguns olhares de aborrecimento e algumas blasfémias de quem teve de se afastar para a deixar pas-sar, mas ninguém desafiou Aidan. Embora os londrinos nao soubessem que era o Mor O'Donoghue, o senhor de Ross Castle, pareciam perceber que nao era bom serem inimigos do seu cavalo, nem dele. Talvez fosse devido a envergadura prodigiosa do cavalo ou talvez por causa do azul frio e ameagador dos olhos do cavaleiro. Mas o mais provável era que se devesse a espada que pendia da sua coxa.

    Deixou que seu enorme séquito ficasse fora do cemi-tério e passasse o tempo a intimidar os londrinos. Quando se aproximou, a rapariga estava a atirar as tochas ao ar. As chamas formavam um redemoinho que emoldurava a sua cara sorridente e suja de fuligem.

    Era uma rapariga estranha. Parecia ser feita de sobras: olhos grandes e boca larga, nariz espalmado e cabelo em pé, mais próprio de um rapaz. Tinha uma camisa sem corpete, umas calgas caídas e umas botas tao velhas que podiam ser reliquias do século anterior.

    No entanto, o Todo-poderoso, em virtude de algum capricho, dotara-a das maos mais bonitas e refinadas que Aidan alguma vez vira. As tochas continuavam a girar e, quando a rapariga pediu outra, juntou-a a roda sem di-ficuldade. A rapariga passava-as de mao em mao, cada vez mais depressa. Entao, um homem atirou-lhe uma re-luzente maga vermelha.

    Ela riu-se e disse:

    - Eh, Dove, nao receias que convenga um homem a pecar?

    O seu companheiro deu uma gargalhada.

    - Pippa, pequena, eu gosto das raparigas feitas de mais do que de cartilagem e descaramento.

    Ela nao se ofendeu e, enquanto Aidan pronunciava o seu estranho nome para si, alguém atirou um peixe para a roda.

    Aidan deu um salto, mas aquela rapariga chamada Pippa aceitou o desafio sem se alterar.

    - Parece que pesquei um dos teus parentes, Mort -disse ao homem, que lhe atirara o peixe.

    A multidao gritou, entusiasmada. Alguns cavalheiros atiraram moedas para os degraus. Apesar de estar há duas semanas em Londres, Aidan continuava sem entender os ingleses. Era tao fácil para eles atirar moedas a uma malabarista vadia, como ve-la enforcada por viver nas ruas.

    Sentiu que alguma coisa lhe tocava na perna e olhou para baixo. Uma prostituta de aspecto sonolento desli-zava os dedos para o punhal guardado na sua bota.

    Com um sorriso desdenhoso, Aidan afastou-lhe a mao.

    - Aí só encontrará infortúnios, senhora.

    Ela fez uma careta de desprezo. A sífilis comegava a apodrecer as suas gengivas.

    - Irlandés - disse, recuando. - Casto como um padre, eh?

    Antes de Aidan conseguir responder, um miado agudo rasgou o ar e a égua agugou as orelhas. Aidan viu que um gato voava pelo ar, para Pippa.

    - Vamos ver se aguentas isto! - gritou um homem, gritando e rindo-se.

    - Jesus! - exclamou ela. As suas maos pareciam me-xer-se por vontade própria, fazendo girar os objectos en-quanto ela tentava esquivar o gato voador. Mas conse-guiu agarrá-lo e passá-lo de uma mao para a outra antes de o animal assustado saltar para cima da sua cabega e ficar ali, com as unhas cravadas no seu chapéu desastrado.

    O chapéu caiu sobre os olhos da malabarista, cegando-a.

    As tochas, a maga e o peixe caíram ao chao com um estrondo. Um homem magro a que chamavam Mort apa-gou as chamas com pisadelas. Dove, o gordo, tentou aju-dar, mas pisou o peixe e escorregou e, ao abanar os bra-gos carnudos, as suas mangas rasgaram-se. Exactamente quando perdeu o equilibrio, um dos seus punhos bateu num espectador que se juntou imediatamente a confusao. Os outros juntaram-se a luta entre gritos de júbilo. Aidan achou difícil impedir que a égua se assustasse.

    Ainda cega por causa do gato, a rapariga caiu para a frente com os bragos esticados. Agarrou-se ao extremo da carroga de um livreiro. O gato e o chapéu caíram e o felino enlouquecido subiu por um monte de livros, ati-rando-os para a lama do cemitério.

    - Imbecil! - gritou o livreiro e precipitou-se para Pippa.

    Dove estava a lutar contra vários adversarios. Com um movimento rápido, acertou na cara de um deles com o peixe.

    Pippa agarrou a beira da carruagem e levantou-a. O resto dos livros escorregou e caiu sobre o livreiro, ati-rando-o ao chao.

    - Onde estao os meus nove tostSes? - perguntou, en-quanto estudava os degraus. As pessoas estavam demasiado atarefadas a lutar para responderem. Pippa apa-nhou um tostao perdido e guardou-o no saco volumoso que tinha a cintura. Depois fugiu para Saint Paul's Cross, um monumento muito alto rodeado por uma praceta aberta. O livreiro seguiu-a e agora tinha uma aliada: a sua esposa, uma senhora formidável, com bragos como presuntos.

    - Volta aqui, macaca do diabo! - gritava a esposa. -Este dia será o último para ti!

    Dove estava a desfrutar da luta. Tinha o seu adversá-rio agarrado pelo pescogo e estava a brincar com o seu nariz, esbofeteava-o de um lado para o outro enquanto se ria.

    Com idéntica alegria, Mort, o seu compincha, diver-tia-se com a rameira que se aproximara de Aidan há um instante.

    Pippa corria a volta da cruz, perseguida pelo livreiro e pela sua esposa.

    Outros espectadores juntaram-se a luta. O cavalo re-cuou, com os olhos esbugalhados de medo. Aidan sus-surrou alguma coisa e acariciou-lhe o pescogo, mas nao abandonou a praga. Ficou a olhar para a luta e pensou, pela enésima vez desde a sua chegada, que Londres era um lugar estranho, pestilento e fascinante. Por um instante, esqueceu porque estava ali. Transformou-se num espectador e concentrou toda a sua atengao nas traves-suras de Pipa e dos seus companheiros.

    Entao, aquilo era Saint Paul, o coragao da cidade. Era mais um lugar de reuniao do que um templo onde se ado-rava Deus, o que nao surpreendeu Aidan. Os ingleses eram um povo que se agarrava fracamente a uma fé anémica. Os reformadores, no seu ódio por Roma, tinham despojado a igreja de paixao e pompa.

    O campanario, danificado há muito tempo e nunca reparado, dava sombra a uma panóplia de mendigos e mer-cadores, jogadores e ladrees, rameiras e rufiSes. Do outro lado da praga havia um cavaleiro e um meirinho de libré. Assustados pelos gritos da mulher do livreiro, aproxima-ram-se, contrariados. O livreiro encurralara Pippa no de-grau de cima.

    - Mort! - gritou ela. - Dove! Ajudem-me! - Os seus companheiros desapareceram imediatamente entre a mul-tidao. - Canalhas! - gritou. - Irao ambos para o inferno!

    O livreiro precipitou-se para ela. Pippa baixou-se e apanhou o peixe, apontou e atirou-o ao livreiro.

    Ele baixou a cabega. O peixe bateu na cara do cava-lheiro que se aproximava e, deixando escamas pelo ca-minho, escorregou pelo seu espartilho de brocado e foi cair sobre os sapatos de veludo.

    Pippa ficou paralisada, olhando com horror para o ca-valheiro.

    - Ui! - exclamou.

    - Sim, ui - langou-lhe um olhar feroz e cheio de re-criminagao. Sem pestanejar sequer, fez um gesto para o meirinho. - Senhor - disse.

    - Sim, milorde?

    - Prenda esta... roedora.

    Pippa recuou, rezando para que o caminho estivesse livre e pudesse fugir. Mas chocou de costas com a esposa do livreiro.

    - Ui! - repetiu. As suas esperangas desapareceram por completo.

    - Veremos se consegues sair desta, menina! - gritou-lhe a mulher.

    - Obrigada - disse ela, afavelmente. - Tenciono faze-lo - esbogou o seu melhor sorriso e puxou uma madeixa de cabelo. Cortara o cabelo há pouco tempo para se livrar de uns piolhos particularmente tenazes. - Bom dia, Excelencia!

    O nobre acariciou a barba.

    - Nao é um bom dia para ti - disse. - Ignoras que há leis contra os cómicos ambulantes?

    Ela olhou para a esquerda e para a direita, ardendo de indignagao.

    - Cómicos ambulantes? - repetiu, com raiva. - Quem? Onde? Meu Deus, onde irá parar esta cidade se há tais pes-soas soltas pelas suas ruas?

    Enquanto inchava o peito, estudava a multidao a procura de Dove e Mortlock. Como temerários paladinos que eram, os seus companheiros tinham fugido.

    O seu olhar pousou por um momento no homem a cavalo. Reparara nele antes. Estava ricamente vestido e tinha um bom cavalo, mas tinha um ar estrangeiro que Pippa nao conseguia identificar.

    - Quer dizer que nao é uma cómica ambulante? - gritou-lhe o meirinho.

    - Senhor, morda a língua - queixou-se ela. - Eu... Eu... - respirou fundo e mentiu. - Sou evangelista, milorde. Vim pregar a Boa Nova aos paroquianos de Saint Paul que ainda nao se converteram.

    O cavalheiro altivo levantou uma sobrancelha.

    - A Boa Nova, eh? E qual é essa Boa Nova?

    - Sabe - disse ela, com um excesso de paciencia. - O Evangelho segundo Sao Joao - fez uma pausa e tentou pensar em alguma informagao que acumulara nos muitos dias que passara escondida e aninhada nas igrejas. Uma colecgao de palavras e frases coloridas que gostava de usar. - O sermao de Sao Paulo aos fósseis.

    - Ah... - o meirinho levantou as maos para a frente. Com um gesto rápido, empurrou-a contra a parede, junto da porta. Ela virou-se para olhar, ofegante, para a nave, cujos altos pilares de pedra ladeavam o corredor a que se dava o nome de caminho de Paulo. Como um rato, co-nhecia cada canto da igreja. Se conseguisse entrar, encontraría um modo de sair.

    - Será melhor inventares uma história melhor - disse o meirinho, - ou terás de te preparar para a forca.

    Ela encolheu-se só de pensar nisso.

    - Muito bem - exalou um suspiro teatral. - A verdade é esta.

    Uma pequena multidao reunira-se a sua volta, certa-mente, com a esperanga de ver como a castigavam. O desconhecido a cavalo desmontou, passou as rédeas a um palafreneiro e aproximou-se.

    A sede de sangue era universal, pensou Pippa. Ou tal-vez nao. Apesar do seu rosto selvagem e do seu cabelo preto, aquele homem possuía um halo de esplendor te-merário que a fascinava. Respirou fundo.

    - A verdade, senhor, é que sou uma cómica ambulante. Mas tenho a permissao de um nobre - concluiu, triunfante.

    - Ah, sim? - o cavaleiro piscou um olho ao meirinho.

    - Sim, senhor, dou-lhe a minha palavra - odiava que os cavalheiros comegassem com brincadeiras. A sua ideia de brincar costumava consistir em mutilar pessoas ou animais indefesos.

    - E quem é o teu patrono, se é que pode saber-se?

    - Robert Dudley, conde de Leicester, pessoalmente -Pippa deitou os ombros para trás com orgulho. Que as-túcia a sua, pensar no eterno favorito da rainha. Deu uma boa cotovelada nas costelas do meirinho. - É o amante da rainha, sabe? Portanto, será melhor nao me irritarem.

    Alguns espectadores ficaram com a boca aberta. O cavaleiro ficou cinzento e, um momento depois, o rubor invadiu as suas faces.

    O meirinho agarrou Pippa pela orelha.

    - Perdeste, roedora - apontou para o nobre. - Este é o conde de Leicester e penso que nunca a viu antes.

    - Se a tivesse visto, lembrar-me-ia, nao há dúvida -disse Leicester.

    Ela engoliu em seco.

    - Posso mudar de ideias?

    - Faga-o, por favor - convidou-a Leicester.

    - O meu patrono é lorde Shelbourne, na verdade -olhou para ele, indecisa. - Continua vivo, nao é?

    - Oh, sim!

    Pippa exalou um suspiro de alívio.

    - Bom, é o meu patrono. Agora será melhor ir-me embora...

    - Nao tao depressa - o meirinho puxou-a pela orelha com mais forga. As lágrimas arderam-lhe nos olhos. -Shelbourne está preso na Torre, as suas terras foram confiscadas e o seu título foi-lhe tirado.

    Pippa conteve um gemido de surpresa. A sua boca formou uma «O».

    - Eu sei - disse Leicester. - Ena!

    Pela primeira vez faltou-lhe o aprumo. Normalmente, era suficientemente ágil de mente e de corpo para sair graciosa de tais apuros. Mas, de repente, a imagem da forca apareceu, ameagadora, na sua mente. Desta vez, nao tinha escapatoria.

    Decidiu fazer uma última tentativa de encontrar um patrono. Mas quem? Lorde Burghley? Nao, era demasiado velho e resmungao. Walsingham? Nao, com as suas inclinagSes puritanas. A própria rainha, entao. Quando conseguissem verificá-lo, ela já se teria escapulido.

    Entao, viu novamente aquele desconhecido alto que se levantava ao fundo da multidao. Embora nao hou-vesse dúvida de que era estrangeiro, olhava para ela com um interesse que parecia tingido de simpatia. Talvez nao falasse ingles.

    - A verdade - disse, - é que aquele é o meu patrono - apontou para o estrangeiro. Esperava que fosse holandés, rezou. Ou suígo. Ou bébado. Ou estúpido. Mas que confirmasse a sua história.

    O conde e o meirinho viraram-se e esticaram o pes-cogo. Nao tiveram de se esforgar muito. O estrangeiro sobressaía como um carvalho no meio da relva, estranha-mente tranquilo enquanto a multidao que costumava congregar-se em Saint Paul se agitava e murmurava a volta dele.

    Pippa também esticou o pescogo e conseguiu vé-lo claramente pela primeira vez. Os seus olhares encontra-ram-se. Ela, que vira quase de tudo na sua vida, cujos anos nao conseguia contar, sentiu um arrebatamento de uma coisa tao nova e profunda que nao soube que nome dar aquele sentimento.

    Os olhos do estrangeiro eram azuis e brilhantes como uma safira, mas nao era a sua cor, nem o rosto arrebatador que importavam. Uma forga misteriosa habitava por trás daqueles olhos ou nas suas profundidades. Pippa e ele pareceram entender-se. Ela sentiu que aquela sensa-gao a atravessava e se afundava no seu corpo como o sol a rasgar as trevas.

    Old Mab, a mulher que a criara, teria dito que era magia.

    E, por uma vez, teria estado certa.

    O conde aproximou as maos da boca e gritou:

    - Eh, senhor!

    O estrangeiro levou uma mao enorme a um peito ainda mais enorme e levantou inquisitoriamente uma das suas sobrancelhas pretas.

    - Sim, senhor - disse o conde. - Esta mulher garante que age sob a sua protecgao. É assim, senhor?

    A multidao aguardou. O conde e o meirinho aguarda-ram. Quando desviaram o olhar dela, Pippa juntou as maos e olhou, suplicante, para o estrangeiro. A orelha come-gava a intumescer-se por ser beliscada pelo meirinho.

    Os olhares suplicantes eram a sua especialidade. Pas-sara anos a ensaiá-los, usando os seus grandes olhos claros para pedir moedas e pao aos transeuntes.

    O estrangeiro levantou uma mao. Atrás dele, o beco encheu-se de repente de uma tropa de... Pippa nao sabia o que eram.

    Mexiam-se em grupo, como soldados, mas em vez de capas tinham umas horríveis peles cinzentas que pare-ciam peles de lobo. Tinham machados de guerra. Alguns tinham rapado a cabega e outros tinham o cabelo solto e desgrenhado sobre a testa.

    Todos se afastaram quando eles se aproximaram. Pippa nao achou estranho que os londrinos se assustas-sem. Ela também se teria encolhido de medo, se nao fosse porque o meirinho a segurava com forga.

    - Foi isso que a rapariga disse? - o estrangeiro avan-gou. Bolas, falava ingles. Tinha um sotaque muito estranho, mas falava ingles.

    Era enorme. Normalmente, Pippa gostava de homens grandes. De homens grandes e de caes grandes. Pareciam ter menos necessidade de se pavonear e fanfarronar do que os pequenos. Aquele pavoneava-se um pouco, na verdade, mas Pippa compreendeu que era o seu modo de abrir caminho entre a multidao.

    Tinha o cabelo preto. Caía-lhe sobre os ombros e re-luzia a luz da manha com brilhos de índigo e violeta. Ti-nha uma madeixa fina cor de ébano adornada com uma tira de couro e contas.

    Pippa repreendeu-se por se sentir tao subjugada por um homem alto com olhos de safira. Devia aproveitar aquela oportunidade para fugir, em vez de olhar para o estrangeiro como uma tonta. Ou, pelo menos, devia pensar em algum embuste para explicar como se pusera sob a sua protecgao sem que ele soubesse.

    O estrangeiro chegou aos degraus da porta, onde Pippa esperava entre Leicester e o meirinho. Os seus olhos brilhantes fixaram-se no meirinho até ele largar a orelha de Pippa.

    Suspirando de alívio, ela esfregou a orelha dorida.

    - Sou Aidan - disse o estrangeiro, - Mor O'Dono-ghue.

    Um mouro! Pippa caiu de joelhos imediatamente e agarrou a bainha do seu manto azul-escuro, levando a seda poeirenta aos lábios. O tecido era denso e pesado, suave como a água e tao exótico como o seu dono.

    - Nao se lembra, Excelencia? - ela gemeu, consciente de que os homens importantes adoravam os títulos ho-norários. - Com que bondade acolheu esta pobre infeliz sob a sua protecgao para que nao morresse de fome? -enquanto tagarelava, descobriu um punhal muito interes-sante metido na dobra de uma das botas altas do estran-geiro. Incapaz de resistir, roubou-o com um gesto tao rápido e furtivo que ninguém a viu esconde-lo na sua bota.

    Deslizou o olhar pela perna musculada do estrangeiro. Aquela imagem despertou nela um formigueiro estranho. Presa a coxa tinha uma espada curta, tao afiada e perigosa como o seu portador.

    - Disse-me que nao queria que sofresse as torturas da prisao de Clink, que nao queria ter sobre a sua conscién-cia delicada o peso desta desgragada e recear arder eternamente no inferno por deixar uma mulher indefesa nas maos de...

    - Sim - disse o homem.

    Ela soltou o manto e ficou a olhar para ele.

    - O qué? - perguntou, nesciamente.

    - Sim, na verdade, lembro-me, mistress... Eh...

    - Trueheart - respondeu ela, solícita, extraindo do arsenal da sua imaginagao um dos seus nomes preferidos. - Pippa Trueheart.

    O homem olhou para Leicester. O outro, mais baixo, observava-o, boquiaberto.

    - Aí o tém - disse o cavalheiro moreno. - Mistress Pippa Trueheart age sob a minha protecgao.

    Com uma mao enorme como uma garra, agarrou-a pelo brago e fé-la levantar-se.

    - Confesso que, as vezes, é ingovernável e que hoje me escapou. De hoje em diante, terei mais cuidado.

    Leicester assentiu com a cabega e acariciou a barba.

    - Agradeceria se o fizesse, milorde Castleross.

    O meirinho olhou para a enorme escolta do Mouro. Os seus membros retribuíram o olhar e o meirinho sorriu com nervosismo.

    O Mouro virou-se e dirigiu-se aos seus serventes fe-rozes numa língua tao estranha que Pippa nao reconhe-ceu uma única sílaba. O que era estranho, porque tinha muito bom ouvido para as línguas.

    Aqueles homens cobertos com peles saíram da praga da igreja e desceram por Paternoster Row. O rapaz que servia de palafreneiro levou o enorme cavalo. O Mouro agarrou Pippa pelo brago.

    - Vamos, a storin - disse.

    - Porque me chama a storin?

    - É uma expressao carinhosa. Quer dizer «querida».

    - Ah... Nunca ninguém me tinha chamado querida.

    O sotaque musical do estrangeiro e o cheiro do vento

    do seu cabelo e do seu manto fizeram-na tremer. Nunca a tinham salvado e menos ainda um espécime como aquele cavaleiro de cabelo preto.

    Enquanto se dirigiam para o portao de pouca altura que unia Saint Paul e Cheapside, olhou para ele de sos-laio.

    - Parece bastante amável para um mouro - passou pelo portao, que ele segurava.

    - Um mouro, diz? Senhora, garanto-lhe que nao sou mouro.

    - Mas disse que é Aidan, o Mor de O'Donoghue.

    Ele desatou a rir-se. Pippa parou. Ganhava a vida a fazer as pessoas rirem-se, portanto devia estar habituada as gargalhadas, mas aquilo era diferente. A gargalhada do estrangeiro era tao bonita e profunda que lhe pareceu ve-la ondear como uma bandeira de seda escura impul-sionada pela brisa.

    Ele deitou a cabega para trás. Pippa viu que tinha todos os dentes. Os seus olhos azuis, que ardiam como chamas, atraíam-na com a mesma magia irresistível que sentira há um instante.

    Aquele homem comegava a po-la nervosa.

    - De que se ri? - perguntou.

    - Mor - disse ele. - Sou o Mor O'Donoghue. Significa «grande».

    - Ah... - assentiu sagazmente, fingindo que sabia desde o comego. - E é? - deixou que o seu olhar o percorresse por inteiro, parando nas partes mais interessantes.

    Deus era uma mulher, pensou, com súbita certeza. Só uma mulher podia criar um homem como aquele O'Do-noghue, juntando as suas partes deliciosas num todo ainda mais apetitoso.

    - Para além do óbvio, quero dizer.

    Ele parara de se rir, mas continuava rodeado por um fulgor de alegria. Tocou na face de Pippa com um gesto surpreendentemente terno e disse:

    - Isso, a stor, depende da pessoa a que perguntares.

    Aquela carícia breve e ligeira sacudiu Pippa, embora resistisse a demonstrá-lo. Quando as pessoas lhe toca-vam, era para lhe puxarem as orelhas ou para a expulsa-rem aos pontapés, nao para a acariciarem ou reconforta-rem.

    - E como devo dirigir-me a um homem tao grande como o senhor? - perguntou, num tom brincalhao. - Excelencia? Senhoria? - piscou um olho. - Enormidade?

    Ele riu-se novamente.

    - Para uma pobre comediante, conheces palavras muito pomposas. E insolentes.

    - Colecciono-as. Aprendo muito depressa.

    - Nao suficientemente depressa para te livrares de uma boa confusao, segundo parece - puxou-a pela mao e continuou a andar para o este por Cheapside. Passaram a rede de esgoto e depois Eleanor Cross, repleto de está-tuas douradas.

    Pippa viu que o estrangeiro olhava para elas com o sobrolho franzido.

    - Os puritanos mutilam as efígies - explicou, assu-mindo o papel de cicerone. - Nao gostam das imagens. Ali, em Standard, pode ver corpos a sério, mutilados. Dove disse-me que, na terga-feira, passada executaram um assassino.

    Quando chegaram ao pilar quadrado, nao viram ne-nhum corpo, mas a mixórdia habitual

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1