Tribunal dos milagres
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Sobre este e-book
O livro desenvolve-se como uma novela com várias vozes, organizado em uma série de histórias que se alternam e são contadas dos pontos de vista dos personagens e - no decorrer dos eventos - encontram-se e desencontram-se, em um jogo de referências cruzadas complexas e emaranhadas que se forma ao longo do romance.
Dentro de um "Tribunal de milagres" representado por um subúrbio não especificado, de uma cidade sem nome, personagens diferentes se movem em um mundo suburbano de violência e crime. O Distrito - com a letra inicial maiúscula, como é chamado por seus habitantes - é o verdadeiro protagonista do romance, dentro do qual seus "heróis" se movimentam: assassinos, golpistas, chacais, policiais corruptos na carteira ou na alma. Um lugar que destrói e molda à sua imagem quem ali habita, mesmo que este tente desesperadamente se livrar dessa influência. Por meio das histórias de Max, Tony, Valter, Laura e muitos outros, atravessa-se as ruas do Distrito, entrando em contato com a estrutura fundadora da sociedade civil, sobre a qual a hipocrisia diária da vida cotidiana é construída.
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Tribunal dos milagres - Flavio Carlini
Flavio Carlini
O REINO DOS MILAGRES
Só existe um mundo, e é falso, cruel, contraditório, corruptor, sem sentido. Um mundo feito assim é um mundo real. Nós precisamos da mentira para vencer essa realidade
, isto é, para viver. A metafísica, a moral, a religião, a ciência vêm sendo consideradas como diversas formas de mentira: com os seus subsídios é que se acredita na vida.
(Friedrich Nietzsche)
*
***
Voltando à normalidade
*
Nunca procuro melhorar-me ou aprender alguma coisa, permaneço exatemente como sou. Não sou alguém que aprende, sou alguém que evita. Não tenho vontade de aprender, sinto-me perfeitamente normal no meu mundo louco; não quero me tornar como os outros.
Charles Bukowski
1
*
Existe um reino que não respeita as convenções do Estado, suas leis, seus costumes. Um pequeno reino, não muito povoado; para alguns é o inferno, para outros é o paraíso. Quem o visita do mundo exterior, acha-o intolerável, eu, amo-o. Pontos de vista. Um reino implacável e magnífico, chamam-no todos: Distrito.
Estive fora por alguns dias, acho estranho o mundo exterior, tem tudo aquilo que o Distrito oferece, mas é escondido por um consistente manto de hipocrisia.
Finalmente volto para casa.
Dirijo na rodovia em alta velocidade, estou ansioso para mergulhar na atmosfera do meu reino. Um pouco lúgubre, um pouco triste, tudo bem, mas violenta e tremendamente viva. Tudo transpira sangue quente e tudo é forçado ao máximo da própria existência. Quando digo às pessoas onde moro, perguntam-me sempre como faço para viver ali, sorrio para elas e pergunto como não o fazem.
Quando vi o Distrito pela primeira vez, apaixonei-me, é a alma da cidade, a verdadeira essência da humanidade, o coração do mundo. Não existem prisões, redes, correntes, reina o caos anárquico, e isso prova nos homens a florescência da sua verdadeira natureza. Vindo aqui, você pode encontrar a realidade: nua, crua e trágica. Em lugares como esse a história da sociedade moderna começou, e em lugares como esse alcançará o fim.
Vejo as primeiras casa, piso no acelerador.
Não sei porque essa região desde sempre foi chamada Distrito, talvez porque é simplesmente uma parte da cidade.
Acelero mais ainda, estou dentro: casa.
*
2
*
Deixo o carro estacionado em fila dupla, deixo-o aberto, nem me lembro onde o roubei. Respiro a plenos pulmões e entro nas grandes redes de vielas. Mantenho firmemente o revólver em punho. Não o engatilho, mas só de apertá-lo sinto-me em casa, sinto-me vivo. Viro na esquina e deparo-me com uma cena familiar: um grupo de chacais que chuta um vagabundo.
Chamamos de chacais, os pequenos grupos de desgarrados que rodeiam as vielas mais inacessíveis do Distrito, esses bandos são formados, na maior parte, de bêbados, viciados e fracassados.
Um desses bandos está para matar e roubar um homem, eu aproveito o espetáculo.
Apoderam-se dos trapos do homem e depois notam-me, por sorte o chefe do grupo me reconhece, não há nenhum confronto.
– Franco?
– Sou eu, Musta – conheço faz anos aquele simpático velhinho, chacal desde sempre, um querido amigo. Vejo-o sério, testa franzida, tem algum coisa para me dizer: não são boas notícias.
– O Francês, quer te matar
– Qual a novidade? Faz pelo menos uns dois anos que ele tenta.
– Dessa vez é diferente, está organizado, está forte.
– Esse aprendiz de traficante de drogas que se acha o chefão?
– Os Montero estão falindo, a disputa os está separando. Rouge quer tomar o lugar deles, há no ar um cheiro de mudança.
– Ele não conseguirá entrar na elite das famílias, os Lancia e os Villa não levam em consideração fracassados desse gênero.
– Por isso mesmo agora ele quer te matar. Seria uma prova de força, um cartão de visitas: você é um peixe grande nessa área.
A conversa me irita, cheguei a pouco, quero relaxar. Agradeço Musta e me despeço, deixo alguns trocados para ele beber à minha saúde.
*
3
*
Afasto-me do grupo e das vielas mais estreitas. Rouge é presunçoso, se pode fazer uma bela figura com a minha morte é capaz de mandar um exército inteiro contra mim, mesmo que tenha que fechar a loja para pagá-lo. O Francês, assim o chamam, gosta que lhe chamem assim, mesmo não sendo francês de fato. Passaram-se dois anos desde que me diverti com sua mulher, um episódio que ele nunca engoliu.
A prostituta me para, pergunta-me se tenho vontade, pago-a bem e levo-a à minha casa: servirá para relaxar os nervos, e para comemorar dignamente o retorno à pátria.
Na manhã seguinte acordo lentamente, estreitando os olhos atingidos pela luz do dia, a qual não estou mais habituado. Ao redor da minha cama, seis homens armados que esfregam na minha cara meio arsenal. A garota está estendida do meu lado, barriga para baixo e uma faca nas costas. Pobre mulher. No meio dos soldados distinguo o caro Rouge, visivelmente satisfeito por finalmente ter me pegado.
Examino a situação, estou cercado, mas não amarrado: o Francês continua o mesmo demente de sempre.
Enfio a mão debaixo do travesseiro, a metralhadora me faz tremer os ombros, a gentalha de Rouge cai rapidamente, a rajada é impiedosa: dois segundos depois todos por terra a se contorcerem maldizendo o último contrato fechado. O Francês leva dois tiros nas pernas, consegue, de alguma forma, sair do apartamento.
Vejo-o rastejar como um verme, ao longo do corredor, acendo um cigarro, depois coloco um par de calças e o sigo, sem pressa, percorrendo a baba vermelha que ele deixa para atrás, como um grotesco caracol. Alcança o seu carro, arrastando-se pateticamente, tenta disparar contra mim, mas os seus tiros acabam por esburacar o rejunte do prédio. Alguém na vizinhança grita e corre, aproximo-me e ajoelho-me sorridente.
– Você é um desgraçado – rosna, coberto de sangue, queria curspir em mim, mas não consegue.
Uma sirene ao longe, levanto-me e miro na testa.
Pego o seu carro, dirijo até um hotel fora da cidade, tenho vontade de dormir, essa manhã tive um horrível despertar.
De família
Todas as famílias felizes se parecem; toda família infeliz, por outro lado, é infeliz à sua maneira.
Lev Tolstoj
*
1
* As calças grudam nas minhas pernas fazendo-me ter vontade de me mexer, a camiseta espremida, entre a pele e o banco, está fria com o suor que a impregna.
É péssimo ser