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Cobras na Cabeça
Cobras na Cabeça
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E-book249 páginas2 horas

Cobras na Cabeça

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Sobre este e-book

Cobras na cabeça – crônicas (ir)reverentes é uma oficina literária constituída para escrever um livro homônimo em homenagem aos 40 anos da criação dos personagens As Cobras, de Luis Fernando Verissimo, comemorados em 2015. Faz parte da Master Class da oficina Santa Sede – crônicas de botequim, um grupo seleto de cronistas sob orientação do escritor, músico e publicitário Rubem Penz.A oficina Santa Sede nasceu em 2010 e, desde então, lança uma antologia por ano, sempre com nove novos escritores. Sua primeira Master Class aconteceu em 2014 para a criação do livro Maria Volta ao Bar, tributo ao grande cronista Antônio Maria no ano em que completou o cinquentenário de seu precoce falecimento. Ao enaltecer Luis Fernando Verissimo, a turma dá sequência a seu projeto literário
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de dez. de 2015
ISBN9788583382591
Cobras na Cabeça

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    Cobras na Cabeça - Rubem Penz

    CAPÍTULO 1

    A crônica é o gênero de maior exposição pessoal do escritor. Poucas cortinas, por vezes nenhuma, separam autor e leitor por essa janela. Ao falarmos de nós, corremos o risco do exercício ególatra denunciado por Vinicius de Moraes – um gênio das palavras. Porém, quando o eu se transforma em nós, o poderoso amálgama da crônica posiciona o autor como intérprete da vida de um pseudoautor.

    Rubem Penz

    Tiago Pedroso

    Confesso que ela veio lenta feito um volante trombador, mas chegou. É hora de pendurar minha parceira lilás com travas rosa. Repasso a braçadeira tigresa a quem honrar o posto de capitão. Mas tem que usar bigode! Já não acompanho as pernas rápidas, bronzeadas e musculosas dos atacantes mais jovens. Dos tempos de juvenil, junto a Dondon, lá no Andaraí, ficaram ap enas lembranças. Pois justamente elas, minhas lembranças juvenis, motivaram este livro de memórias. Saio da defesa, pelo atalho, como me ensinou a experiência, e vou ao ataque contra anos e anos de beques no armário. É preciso ser muito bem resolvido pra carregar o número quatro às costas sem descer do salto.

    Recordo-me de um africano corpulento, de nome impronunciável, que formou dupla comigo no Flamengo de Riachinho. Dava carrinho até em gandula e errava mais passe que pai de santo novato. Na semana de jogo, não fazia a barba, não tomava banho e tirava os dentes da frente. A torcida o chamava de Hannibal. Meu estilo sempre foi mais clássico, elegante. Semidelicado, eu diria. Não menos competitivo. Algumas entradas mais duras fizeram parte do meu repertório, sempre visando a bola, é claro, mas um corpo a corpo e aquele agarra-agarra na pequena área antes da cobrança de um escanteio nunca fizeram mal a ninguém. E eu também não sou de ferro, aqueles homens todos suados, sabem como é. Vou sentir falta disso tudo. Até dos jogos. Da torcida. Dos massagistas. O vestiário. Ah, o vestiário!

    Esse estigma de zagueiro machão, malvado e truculento é coisa da Idade Média. Quando, aliás, a palavra saqa entra em campo (de batalha), referindo-se à retaguarda de um exército. Os tempos mudaram. Nesses anos todos de carreira, não vi uma partida em que artilheiros e marcadores não trocassem receitas de creme hidratante, perfumes ou tendências para o cabelo. Tudo em surdina, fugindo da leitura labial. A realidade é outra. Muito mais leve e colorida. Menos preconceituosa e machista. Já existe até casamento de líbero passivo em esquema de três zagueiros. Tenho muito a contar. Vou defender essa bandeira com unhas postiças e dentes de porcelana. Só me falta um pseudônimo que diga por si só: cheguei! Penso em Borboleta da Meia-Lua. Ou Penélope Faltosa, o que acham?

    Giancarlo Carvalho Borges

    Enquanto isso, na sala de um editor qualquer, ávido por um best-seller qualquer:

    – E este trecho, em que você narra sua travessia a nado pelo Canal da Mancha? Espetacular! Aconteceu realmente assim, do jeito que você descreve?

    Do outro lado da mesa, o homem de bronzeado falso coçou o bigode estranhamente grande e fino, de tonalidade indefinida e bastante diferente do cabelo, liso e meio amarelado.

    – Olha, na verdade, não foi bem assim – diz ele –, se aproximando ainda mais da mesa. Para estimular o leitor, eu tive que dar uma enfeitada, sabe? Cá entre nós, eu mal sei nadar.

    – Hum – murmurou o editor, cerrando os olhos e ignorando a piscadela do homem. – Ok, sem problema. Um pouco de liberdade criativa é sempre bom, mesmo numa autobiografia. E sobre esta outra passagem aqui, uma das minhas favoritas, aliás. Deve ter sido complicado quando o avião que você pilotava, junto com seus companheiros, caiu no deserto do Saara, não?

    – Bem – começou o bigodudo, ajeitando o topete que deslizara na cabeça, de modo suspeito. – Tomei mais algumas liberdades aí também. O voo era comercial, na verdade, e estávamos indo para o sertão nordestino. Muito calor, sensação de deserto mesmo. E muita turbulência, mas chegamos e saímos inteiros de lá. Graças a Deus.

    O editor levantou os óculos lentamente e olhou para ele, fazendo uma careta involuntária enquanto o avaliava. O homem cor de laranja meneou a cabeça, levemente, e ensaiou um sorriso sem jeito.

    – Tá bom. E o que me diz sobre essa viagem espiritual ao redor do mundo, em que você conta que entrevistou diversas pessoas sobre o que seria a felicidade?

    – Eu diria que, na verdade mesmo, foi mais tipo uma volta pelo bairro, na qual fui perguntando ao pessoal o que eles fariam se ganhassem na loteria.

    Tentando não parecer mais desconcertado do que estava, o editor deu um longo suspiro e retrucou:

    – Deve ter sido uma experiência inspiradora e tal... Bem, o fato é que gostamos de seu livro. Detalhes sobre veracidade ou não, a gente vê depois. O texto escrito, que é o mais importante, está ótimo. Já estou até imaginando um filme baseado nele.

    – Pois então, o cara que escreveu – a meu pedido, claro – estava mesmo pensando num filme. Ou em vários, acho. Era bem bom de português, o cabra! Pena que sumiu; escritor-fantasma, sabe? – e pigarreou, desviando o olhar.

    – Enfim, nós queremos publicá-lo – desconversou rapidamente o editor. – A história da sua vida tem potencial. Os leitores vão adorar conhecê-lo.

    – Ótimo, ótimo. Mas sabe, sou do tipo reservado, e, apesar de ter sido bem fiel, alguém pode achar que nem tudo é verdade, e não sou muito chegado a processos, entende? E se usássemos um pseudônimo? Ou, melhor ainda: e se vocês divulgassem que o autor morreu, e que o livro é uma autobiografia psicografada ainda em vida?

    O editor, resignado, pensou um pouco e arrematou:

    – Fechado.

    André Hofmeister

    Maria de Lurdes anda revoltada. A foto em seu perfil naquela rede social sugere isso: uma tarja preta num fundo branco. Adotou essa imagem há muito tempo. Aliás, não há nenhuma foto dela mesma em seu perfil. Nada de fotos em família, de viagens, imagens de pratos em restaurantes ou de seu bichinho de estimação. Selfies, então, nem pensar. Maria de Lurdes não vê sentido em nada disso. O importante é usar aquele ambiente para expressar opiniões e tratar de assuntos que realmente sejam relevantes para o país.

    Maria de Lurdes é assídua na rede social e tem nela mais de quinhentos amigos. A grande maioria ela não conhece pessoalmente. Angariou-os ao longo do tempo nas páginas com as quais se identifica – blogs apócrifos, comunidades sensacionalistas, sites de políticos e alguns jornais de pouca tiragem. Seus interesses principais atualmente são as questões raciais, o casamento gay e a pena de morte. E futebol, é claro.

    Maria de Lurdes tem opiniões fortes, muitas certezas e dificuldades com pessoas que pensam diferente dela. Não suporta ver seus posts atacados, ainda por cima por gente que a acusa de não fazer uso de argumentos. Por que haveria de explicar o óbvio? Que estudem mais! Ela fica impressionada como existem pessoas burras nas redes sociais... Volta e meia vê-se forçada a brigar com meio mundo, tentando abrir-lhes os olhos. Está cansada, e por isso acaba xingando muitos. Mas é pela causa. Ela acredita que o debate é que vai mudar ou não o rumo das coisas. Mas, com gente como essa, nunca conseguiu emplacar nenhum debate produtivo.

    Maria de Lurdes gosta de publicar e compartilhar denúncias e tem ódio daquelas pessoas que dizem que podem ser notícias levianas. Desde que o mundo é mundo, sabe-se que, onde há fumaça, há fogo. Na verdade, ela odeia muitas outras coisas também: pessoas exibidas, candidatos da oposição, veganos, religiosos e a Rede Globo.

    Maria de Lurdes extravasa o que pensa na rede social. Suas opiniões são legítimas, ao contrário do sobrenome que adota na página – tão falso quanto acreditar que a diversidade de pensamento é um mal.

    Lurdinha é tranquila. Trabalha em uma escola e vive com o marido e os dois filhos pequenos. Sofre de insônia e acaba passando parte da madrugada no computador. Diz que não tem paciência com quem se expõe nas redes sociais. Costuma alegar que nelas a intolerância e a falta de respeito prestam um desserviço à educação. E que é a educação que um dia vai mudar este país.

    Roberto Marques

    Sentada em um canto próximo ao púlpito, já visitado pela undécima vez, está minha viúva. Derrama seu pranto abundante. Um choro de carpideira. Não poderia ser de outra forma. Homem poderoso que fui, entreguei também a ela, sistemática e impiedosamente, o pior de mim. Suportava tudo por conveniências suas. Entretanto, cumpre o papel que lhe cabe de forma irretocável.

    Observo à volta como se nada de estranho estivesse acontecendo. Exceto o séquito de discursos expelindo uma biografia absurda, desconexa de minha pessoa. Falas cínicas, interesseiras, quase canonizando o resignado defunto. Ouvia as maldições e pensamentos de asco contestando os louvores. Aquele morto não era eu. Não me reconhecia senão pelo rosto pálido e o velho sorriso canalha brotando pelo canto da boca.

    Um momento etéreo de redenção me toca. Olho-me atentamente por um ângulo insólito. Apiedo-me da carcaça combalida. Ensaio um choro. Uma luz se aproxima pelo alto. Seriam anjos enganados pelas manifestações apócrifas? Ou atraídos por um arrependimento fugaz que me acometeu? Nada disso. Foi para a capela ao lado. Considero que meu destino talvez seja outro. Pela primeira vez, temo o que possa vir pela frente.

    Aproximo-me um pouco mais do meu corpo. Bem perto do rosto. Como de costume, transfiro culpas com ira e impropérios: o que você fez da sua vida, seu traste? Agora o teu destino são os vermes e o meu é ficar vagando entre estes desvairados. Para cumprir teus prazeres, tua luxúria, tua ganância, eu é que vou ter que pagar!

    Uma sombra grande e grotesca começa a brotar do chão. Sou tomado pelo pavor. Aquilo agarra firmemente meu pé. Reúno forças para tentar desvencilhar-me. Prendo-me ao caixão. Penso em esconder-me no cadáver. Agora chega! Quero desesperadamente acordar! Tenho que acabar com este pesadelo!

    Começo a retomar a consciência. Suspiro aliviado. Sinto um leve tremor na mão. Os olhos estão pesados. Ouço a voz de minha mulher. Tento erguer-me. O torpor é incontrolável. Meus músculos todos doem pungentemente. Em um esforço hercúleo, consigo sentar-me.

    Ouço gritos histéricos. Uma parte da multidão, com olhos arregalados, me assiste incrédula. Outra corre em debandada. Permaneço estático por um bom tempo, não acreditando no que está acontecendo. Seria um momento de grande felicidade não fosse o ódio, o desprezo e a ojeriza que havia pressentido em todos enquanto estava desacordado.

    Olhando novamente para o chão, vislumbro aquela sombra assustadora. Metade dela para fora espreitando. Uma face monstruosa com um sorriso sarcástico fita bem em meus olhos e sentencia: Volto outro dia. Por hora pode ficar um pouco mais com esta turma.

    Zulmara Fortes

    Sei exatamente o momento em que decidi matá-la. Não foi quando ela me deixou. Foi quando estávamos no auge da paixão. No descanso dos múltiplos orgasmos. Aconteceu como num sonho. Uma visão. Percebi que ela não poderia viver para dar a outro homem o mesmo prazer que me levava à loucura. Embora, naquela época,

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