Vida cristã: A existência no amor
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Vida cristã - Valeriano Santos Costa
Valeriano Santos Costa
Vida cristã
A existência no amor
www.paulinas.org.br
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Considerações iniciais
Para contribuir com o aprofundamento da fé no momento atual, este estudo se apoia em dois focos. O primeiro é a solidez do amor de Deus, segundo a Escritura e a Tradição, que, na promessa feita a Abraão, fundamentam a obra de Cristo. Por isso Abraão tem especial relevo em nossa pesquisa. O segundo é a liquidez dos valores no mundo atual, segundo Bauman. É no contraponto desses dois focos que a vida cristã se apresenta como proposta de uma existência consolidada no amor de Deus, na contramão da liquidez
do consumismo atual.
A capacidade operativa do amor de Deus na transformação do ser humano estabelece um processo em cuja dinâmica agem inseparavelmente duas metas salvíficas: a deificação¹ e a humanização. Parece paradoxo! No entanto, é compreensível, pois são duas metas integradas que resultam na síntese que Paulo chama de nova criatura: Se alguém está em Cristo, é uma nova criatura
(2Cor 5,17). Se está em Cristo, está deificado; se é nova criatura, é plenamente humanizado. Tanto a deificação quanto a humanização é ação da fé agindo pelo amor (cf. Gl 5,6). Paradoxalmente, deificar é dar plenitude ao humano.
A deificação, como fruto da ação direta do amor que existe por si mesmo, é um dado completo por natureza, enquanto a humanização se dá na ação que se completa ao longo do tempo e do caminho, pois envolve a colaboração humana na dinâmica histórica que a deificação promove na pessoa. O amor de Deus tem existência real, e no Batismo realiza uma mudança ontológica, criando o novo ser filial. É por isso que o Batismo imprime caráter, ou seja, não pode ser repetido novamente. Assim também é com a Crisma, completa por si mesma, é um sacramento que se coloca teologicamente entre o Batismo e a Eucaristia. Portanto, a existência filial, fundada no ser filial adquirido pelo Batismo, se aperfeiçoa a cada dia. Isso significa que envolve a participação ético-moral e o agir em busca da identificação com o ser filial. Em outras palavras, é preciso caminho e tempo para a existência se aperfeiçoar no amor. Esta verdade tem milênios de história, pois remonta à Criação e está estampada em cada página da Bíblia, mas, infelizmente, o amor não tem sido um tema estudado com a relevância sistemática de outros temas da Teologia.
A deificação e a humanização têm como alvo o ser humano, independentemente de sua condição moral, sempre a partir do ponto comum: a sede de amor filial em busca da saciedade de sentir-se amado em plenitude. É o mesmo anseio que gera a busca de Deus. Foi nesse ponto comum que Deus tocou o coração de Abraão, despertando-o para iniciar o caminho da fé. Naquele momento, Abraão aceitou o desafio de uma promessa que se realiza no tempo e ao longo do caminho. Recebeu um toque de Deus que lhe possibilitou crer e caminhar por dias e noites aprendendo a existir como filho de Deus. Buscava ser pai, e Deus o fez filho, pois esta é a condição existencial de todo ser humano, e é nesta condição filial que encontramos a felicidade de existir. Isso não quer dizer que os seres humanos não devam ser pais e mães, chefes etc. Porém, a paternidade e a maternidade são fundadas na única paternidade de fonte: a paternidade divina. Para alguém amar enquanto pai e mãe, é preciso sentir-se profundamente amado como filho. Esse é o dom filial que nos vem da parte de Deus, o qual sustenta a capacidade de servir com amor, isto é, de dedicar-se com inteireza.
Então, só se alcança o dom do amor filial pela verdade da fé, que nos introduz no mistério da Santíssima Trindade, dando-nos uma nova identidade filial² pelo Batismo. Essa nova identidade filial³ não é apenas um documento de identidade, mas é o reflexo do ser filial,⁴ assumido de forma pessoal, a ponto de clamarmos Abbá, Pai, que é a palavra mais característica da experiência de Jesus e, ao mesmo tempo, o centro da experiência cristã.⁵ Quando a experiência cristã chega ao eixo da intimidade com Deus Pai, Abbá, a vida de fé se torna uma existência toda filial.⁶ Daí se modula um cristão de fato, um novo cristo, como os gentios de Antioquia chamaram os seguidores de Jesus.⁷ Então os cristãos são transformados em novos cristos, depois de passarem por uma mudança ontológica, na qual adquirem um novo ser filial e assumem uma identidade filial, para viver uma existência toda filial. Por isso, o culto cristão é um culto filial.
Faz bem notar desde já que a moral cristã, com suas virtudes próprias, não é senão uma consequência assumida da mudança ontológica operada gratuitamente pela transmissão da fé. Nesse sentido, a pregação e a transmissão sacramental da fé não se ocupam em primeiro plano com os códigos morais da vida cristã, mas em anunciar e transmitir uma fé que transforma a pessoa inteira, precisamente à medida que ela se abre ao amor
.⁸ Esse foi o evangelho que Paulo levou aos gentios: uma proposta empolgante de mudança de ser, para adequarem a existência a um novo padrão existencial, com sua nova moral. Em outras palavras, Paulo anunciou o amor de Deus e proporcionou o acesso à graça, a fim de que as pessoas pudessem existir de uma forma diferente e radicalmente nova. Então o novo ser filial gera uma nova identidade filial, que se abre a uma existência toda filial, refletida no culto filial da liturgia cristã. Essa é a nossa linha de raciocínio para descrever a vida cristã.
O segundo foco é o contexto global de liquidez de valores que marca o momento atual, gerando o ambiente líquido em que o cristão deve viver sua compacta existência filial, toda fundada no amor. A fé não pode ignorar a perplexidade do momento atual e o que isso significa para a vida das pessoas de qualquer parte do mundo. Não podemos fazer teologia como se estivéssemos fora de um mundo em que o modus vivendi da modernidade e pós-modernidade redundou em vidas líquidas
, segundo o sociólogo Bauman. É assim que ele define o conceito de vida líquida:
A vida líquida
é uma forma de vida que tende a ser levada adiante numa sociedade líquido-moderna. Líquido-moderna
é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir. A liquidez da vida e da sociedade se alimenta e se revigora mutuamente. A vida líquida, assim como a sociedade líquido-moderna, não pode manter a forma ou permanecer por muito tempo.⁹
Se não enfrentarmos essa situação, corremos o risco de esquecer que as pessoas vivem num contexto cultural em que a própria existência espiritual também pode ser considerada tão líquida como tudo o mais. Por isso nosso estudo mantém