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Diabo e fluoxetina: pentecostalismo e psiquiatria na gestão da diferença
Diabo e fluoxetina: pentecostalismo e psiquiatria na gestão da diferença
Diabo e fluoxetina: pentecostalismo e psiquiatria na gestão da diferença
E-book562 páginas15 horas

Diabo e fluoxetina: pentecostalismo e psiquiatria na gestão da diferença

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Sobre este e-book

De um lado, sujeitos convertidos às igrejas pentecostais, que se engajam na carreira de "pregadores" e vivem do expediente de "dar seu testemunho", narrando seu passado mundano, como experiências com a criminalidade violenta, mendicância, prostituição e homossexualidade. De outro, sujeitos remanescentes das regiões rurais brasileiras, que, ao buscarem atendimento médico, queixando-se de dores difusas, retornaram para casa com o diagnóstico de depressão. Como o pentecostalismo e a psiquiatria amarram essas trajetórias de vida aparentemente tão díspares, a do pregador-itinerante e a do caipira deprimido? No primeiro, o sofrimento é encenado como espetáculo. No segundo, é internalizado como vergonha. Em um, torna-se mercadoria simbólica. Em outro, objeto das intervenções bioquímicas nos neurotransmissores. Do mesmo modo que o mercado atinge de forma inusitada a biografia dos pregadores-itinerantes – o sofrimento torna-se venal –, a psiquiatria chega na biografia dos caipiras agora deprimidos – o sofrimento torna-se doença. Dessa primeira constatação, o livro suscita novas questões: o mercado de pregações e a psiquiatria biológica seriam formas contemporâneas de gestão do diferente, do estranho, do anormal? Na nova forma de governo dos homens, revelada por meio da experiência aparentemente insignificante dos pregadores-itinerantes e dos caipiras deprimidos, os indivíduos não devem mais ser reformados, expurgando-lhes sua odiosa diferença, mas geridos, conduzidos na estranha e tautológica arte de se tornar apenas aquilo que são. Seja pela manipulação das regras dos jogo do mercado religioso, seja pela manipulação das regras do jogo neuroquímico de cérebros irremediavelmente deficitários, a arte de governar os indivíduos da sociedade contemporânea não pretende mais "fazer a cabeça" dos homens, mas conduzi-los insidiosamente, quase imperceptivelmente, em uma tecnologia que age no jogo, e não no jogador.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de jan. de 2017
ISBN9788547304966
Diabo e fluoxetina: pentecostalismo e psiquiatria na gestão da diferença

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    Diabo e fluoxetina - Mariana Côrtes

    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição - Copyright© 2017 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    Agradecimentos

    Quando eu tinha 12 anos, o professor Warwick Stevan Kerr, um dos maiores geneticistas do Brasil, natural de Santana do Parnaíba, mestre na arte de contar causos, pesquisador por vocação e cientista por missão, perguntou-me se eu já havia começado o meu diário de ideias. Surpreendida, só pude perguntar: Diário de ideias? Ao que respondeu:

    Sim. Todo mundo tem que ter o seu diário de ideias. Comece o seu já. Eu tenho o meu há muitos anos. Vou escrevendo as ideias que me veem à cabeça em papeizinhos soltos pelo laboratório e pela casa. Quando se avolumam em quantidade suficiente, costumo enfiar tudo em um saco plástico. Uma vez a empregada viu um desses sacos jogados no escritório, cheio de papeizinhos miúdos, de diversos tamanhos, escarranchados com letras caóticas, e chegou à conclusão: ‘É lixo’. E para o lixo foi

    contou-me o professor Kerr, soltando seu riso gostoso e generoso.

    Aquela história sempre me impressionou. Perdia o sono pensando na quantidade de ideias, com certeza muitas delas brilhantes, dessas que mudam o rumo da ciência, que haviam ido parar no lixo. O professor não parecia importar-se com isso; o destino daquelas ideias era se misturar aos restos do consumo da cidade. Muitas outras continuariam a pipocar naquela cabeça virada para o mundo, aberta para o fora.

    Graças ao professor, tomei gosto pela ideia do diário de ideias. Durante o doutorado, mantive o diário, inspirada por aquela maneira de fazer ciência do geneticista, maneira de menino, que desvenda e inventa o mundo ao mesmo tempo. Tendo a pensar que o livro, este que agora se apresenta aqui, não é o livro de verdade. O verdadeiro é o diário de ideias, com as ideias jogadas como vieram ao mundo, meio desorganizadas, meio em rabiscos, esquemas, desenhos, a escrita tentando acompanhar a pressa do pensamento. Sem o diário de ideias, este livro não existiria. Obrigada, professor.

    Agradeço a todos que me concederam entrevistas e partilharam comigo um pouco de suas histórias. Ao CNPq e à Capes, por financiarem a pesquisa que deu origem a este livro. Aos professores do Programa de Doutorado em Ciências Sociais, Ângela Araújo, Guita Debert, Laymert Garcia dos Santos, Maria Filomena Gregori, Renato Ortiz, Ronaldo de Almeida, e aos professores da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, Marcel Gauchet, Maurice Godelier, Myrian Revault d’Allones, Pierre Manent, pelas disciplinas oferecidas, por terem contribuído com a minha formação e muitas das inspirações deste livro. Aos professores Elisa Cintra e Oswaldo Giacóia Júnior, pelas importantes contribuições; aos funcionários da Secretaria e da Biblioteca da École des Hautes Études en Sciences Sociales e do Programa de Doutorado em Ciências Sociais, especialmente Maria Rita Gandara, pela rara leveza com que nos ajuda a atravessar a burocracia universitária. Aos funcionários da Maison du Brésil, Paris, pela acolhida gentil durante meu estágio doutoral. À professora Amnéris Maroni, pela orientação, pela amizade, pelos ensinamentos, pelos olhares, pelas pausas, pela presença, pela sabedoria, por essa maneira de ensinar e partilhar tão própria, que faz do pensamento uma arte dos sentidos. À professora Claudine Haroche, pela recepção calorosa em Paris, pelas muitas discussões regadas a café, por não me deixar esquecer que o conhecimento é uma aventura coletiva, e por ter me ensinado o valor do reconhecimento. Às professoras Cibele Risek, Elisa Cintra, Jacy Alves de Seixas e Suely Koffes, pela generosidade. À Neli dos Santos e à Branca Puntel, pela revisão cuidadosa do português.

    Aos amigos de infância e longa data, Bernardo Gondim, Caroline Magalhães, Daniela Rosante, Gisele Póvoa, Midian Sobreira, Paulo Nesca, Tatiana Gonçalves. Aos meus amigos do mestrado e do doutorado, Daniel Andrade, Georgia Sarris, João Bittencourt, João Frederico, José Szwako, Ludmila Abílio, Marina Saraiva, Miqueli Miqueti, Michel Nicolau, Silvia Viana. Ao João Marcos Alem, por ter acompanhado a escrita do trabalho e por ter contribuído com sua interlocução cuidadosa na redação. Aos amigos feitos em Paris, Betty Rocha, Cláudia Fontenele (in memoriam), Kleber Rodrigues, Myrian Bahia Lopes, Regina Camargo. Aos amigos da Universidade Federal de Uberlândia, Antônio Almeida, Christina Lopreato, Flávia Teixeira, Gilson Goulart, Josiane Cerasolli. A Leopoldo Waizbort e a Tamara Grigorowitschs. A Teresinha. Obrigada pela presença, pelo afeto, pelas risadas, pelas discussões, pelas inversões, pelas ideias. Pela amizade.

    A toda minha família. Especialmente a minha mãe Roselys, pelo apoio, amor e carinho, por ter me transmitido seu particular gosto pela vida e abertura para o mundo. Aos meus irmãos, Leopoldo, Juliana, Lucas, por fazerem da fraternidade uma invenção do cotidiano. Aos meus cunhados, Luciana, Rodrigo e Flávia. Aos meus sobrinhos, Ana Clara, Davi, Gabriel e José. A minha avó Eleuza (in memoriam), por depositar aquela confiança nos netos que só as avós sabem fazer. Ao meu marido Samuel e ao meu filho Francisco, por serem a luz da minha vida.

    Apresentação

    Este livro é uma edição revista da minha tese de doutorado defendida no Programa de Doutorado em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas em 2012¹ . Na pesquisa do mestrado, havia estudado a conversão de ex-criminosos para o pentecostalismo e seu engajamento na carreira de pregadores-itinerantes. Na ocasião, interessou-me o protagonismo do diabo nas narrativas de conversão e como seu presenteísmo onipresente costurava as histórias de vida em torno de um passado infame que era agora vendido como um testemunho radical. A viração desses pregadores precários se dava em um mercado informal de pregações que valorizava justamente o que o mercado formal de trabalho rejeitava. Após o término do mestrado, durante uma viagem de férias, deparei-me com uma personagem inusitada: um caipira inserido nos recônditos da Serra da Canastra em Minas Gerais diagnosticado com depressão e submetido à ingestão diária de pílulas de cloridrato de fluoxetina. O encontro casual suscitou a motivação da futura pesquisa. A psiquiatria se expandia para além dos centros urbanos e atingia agora a zona rural: o sujeito remanescente do campesinato também tomava Prozac. De um lado, o diabo. De outro, a fluoxetina. Uma pergunta começou a me perseguir desde então: como o diabo e a fluoxetina, o pentecostalismo e a psiquiatria, amarravam essas trajetórias de vida aparentemente tão díspares, a do pregador-itinerante² e a do caipira deprimido? No primeiro, o sofrimento era encenado como espetáculo. No segundo, era internalizado como vergonha. Em um, tornava-se mercadoria simbólica. Em outro, tornava-se objeto das intervenções bioquímicas nos neurotransmissores. A perplexidade em relação aos dois estudos de caso se entrelaçava. Do mesmo modo que o mercado atingia de forma inusitada a biografia dos pregadores-itinerantes – o sofrimento tornava-se venal –, a psiquiatria chegava de maneira improvável na biografia dos caipiras agora deprimidos – o sofrimento tornava-se doença. O trabalho de cinco anos de doutorado é o resultado dessa inquietação.

    Dessa primeira constatação, novas questões surgiram: o mercado de pregações e a psiquiatria biológica seriam formas contemporâneas de gestão do diferente, do estranho, do anormal? A tentativa de responder a essa questão me levou, inspirada no empreendimento arqueológico e geológico de Michel Foucault, a escavar as camadas de administração da diferença que se configuraram na odisseia moderna em sua busca da construção da ordem e da fabricação da pureza. Assimilação ou genocídio? Disciplina ou biopolítica? Formas que variaram em um espectro que contudo guardavam uma mesma obsessão: a diferença ou o diferente deveriam ser banidos. A primeira parte do livro dedica-se a esse empreendimento analítico: decifrar a gestão moderna da diferença. Contudo, os pregadores-itinerantes e os caipiras deprimidos pareciam envoltos em uma constelação societária que não opera mais por esses meios. Pois nas duas experiências, os indivíduos não devem mais passar por procedimentos de conversão, reforma, domesticação, a fim de expurgar sua diferença e torna-los um igual. No pentecostalismo, a diferença é cronicamente fabricada para ser vendida no show de horrores do espetáculo midiático do mercado de pregações. Na psiquiatria biológica, a diferença é cronicamente administrada na dança perpétua dos neurotransmissores. A conversão que marcava de forma clara um antes e um depois na biografia do novo adepto e a cura que sustentava o sonho de eliminação da anormalidade apareciam agora como horizontes inalcançáveis. Na nova forma de governo dos homens, revelada aqui por meio da experiência aparentemente insignificante dos pregadores-itinerantes e dos caipiras deprimidos, os indivíduos não devem mais ser domesticados, mas geridos, levados não mais a atingirem o ideal de um dever ser, mas conduzidos a se tornar aquilo que já são e não poderão nunca mais deixar de ser. Assim, diabo e fluoxetina cruzam-se de forma inesperada nesse novo jogo das diferenças.

    A partir da busca das conexões sociológicas entre os dois sujeitos, o livro pretende interrogar sobre as novas formas de conduzir a conduta dos homens sob o capitalismo contemporâneo. Nos termos de Foucault, quais seriam as modalidades instituintes da governamentalidade hoje visíveis no que se convencionou chamar de neoliberalismo. No final da década de 1970, Foucault viu na arte neoliberal de governar a emergência de um acontecimento: o horizonte de uma sociedade exaustivamente disciplinar ficava para trás ao passo que a governamentalidade não mais se fazia pela mudança de mentalidade de jogadores, mas pela alteração perpétua das regras do jogo. Quase 40 anos depois, o empreendimento inacabado de Foucault se torna mais do que nunca atual. Seja pela manipulação das regras dos jogo do mercado religioso, seja pela manipulação das regras do jogo neuroquímico de cérebros irremediavelmente deficitários, o poder não pretende mais fazer a cabeça dos homens, mas os conduzir insidiosamente, quase imperceptivelmente, em uma tecnologia que age no jogo e não no jogador. Na busca dos nexos entre os pregadores-itinerantes e os caipiras deprimidos, atravessando o diabo e a fluoxetina, mas sem chegar a conclusões definitivas, o livro levanta questões sobre a investigação das formas de condução da conduta na contemporaneidade.

    A autora.

    Uberlândia, 28 de julho de 2016

    Prefácio

    Tecendo nexos, desvendando sentidos

    O ‘caipira deprimido’ e o ‘pregador‐mendicante’ não têm à primeira vista, nada em comum, desafia Mariana Côrtes. Mas a descoberta de práticas, relações e discursos que os atravessam talvez seja o elemento mais surpreendente deste livro. Se o caipira deprimido diz respeito aos remanescentes das regiões rurais brasileiras, inundadas pelo agronegócio, o pregador-mendicante é uma figura que só poderia nascer nas cidades e em suas periferias. O caipira diagnosticado como deprimido com dores difusas e um mal-estar sem nome ganha pelo discurso e prática psiquiátrica uma nova identidade. O pregador mendicante – tipo composto por sujeitos convertidos às igrejas evangélicas sobretudo pentecostais ou neopentecostais − adquire um ganha-pão surpreendente: seu testemunho, seus relatos sobre um passado mundano de crime, violência, homossexualidade, incapacidades resultantes de acidentes e doenças.

    Uma dor atravessa esses dois tipos – um remanescente, outro emergente: o sofrimento nomeado como categoria psiquiátrica, tipificação recebida com estranhamento, resultante de expedientes alheios ao mundo que se nomeia, explica e trata, acaba sendo experimentada como uma categoria fora de lugar; no caso do pregador, o sofrimento ganha o formato de testemunho a partir da conversão, em que o drama passa a ser agenciado como perspectiva de uma nova carreira religiosa. Estranhamento e espetacularização, nomeação exterior e dramatização bizarra da própria experiência de vida articulam subjetivações nos processos de modernização e transformação dos dois momentos ou polos classicamente contrapostos pela análise sociológica: o campo – ou o que restou dele e a cidade ou o que emerge dela, no quadro das injunções contemporâneas, tão distantes de um futuro sonhado pelas teorias da modernização.

    A gramática alheia, que ressignifica o sofrimento contraposta ao estranhamento relativo à identidade pregressa dos ex-tudo, como a autora acaba por denominá-los – mendigos, bandidos, homossexuais, macumbeiros, feiticeiros, prostitutas, drogados −, sofrimento também ressignificado como mercadoria simbólica e como expediente de sedução religiosa, atravessa a condição desse estar no mundo remanescente ou emergente. Esse fio, que aproxima duas experiências aparentemente distantes, conduz a autora a pensar a partir dos dois supostos casos, as formas contemporâneas de gestão das ‘diferenças’. Talvez sejam bem mais do que casos, talvez em cada caso seja possível encontrar uma dimensão transversal que aproxima o mundo em ruínas do caipira de um mundo em constituição dos pregadores – mendicantes –, mundo que, ainda que emergente, já acusa seu estado arruinado, coisificado, mercadorizado. Na melhor tradição das ciências sociais, a transversalidade do sofrimento das formas sociais em dissolução por um lado e emergentes por outro coloca a pergunta sobre o que se transformou e do que permaneceu, bem como a questão de como perceber e explicar esse novo arranjo entre permanências deslocadas, desfocadas e emergências ou indícios do sentido da transformação. Afinal, o que é de fato novo? Afinal, como o que permanece se reconfigura em suas novas constelações? Desenham-se assim, explicitando um conjunto de relações com as marcações teórico metodológicas da pesquisa, as perguntas da pesquisa e da análise, como se pode constatar pela citação que se segue:

    Genocídio, banimento, assimilação, disciplinarização foram soluções encontradas na modernidade como formas de administração das diferenças. Uma pergunta então se coloca: poderíamos dizer que essas continuam sendo, para a sociedade contemporânea, as formas de gestão das diferenças? Se tais soluções continuam, em que medida foram reelaboradas? Se não, em que medida as formas atuais apresentam uma ruptura? Tomando como referencial analítico a história da guerra moderna contra a diferença, interroga-se o que a classificação da estranheza como depressão, de um lado, e a transformação da estranheza em mercadoria simbólica, de outro, apresentam de novidade como formas de gestão das diferenças. O que elas podem desvelar sobre as formas contemporâneas de lidar com o problema da diferença ainda que, evidentemente, estas últimas não se esgotem nos dois casos empíricos?

    A montagem moderna da diferença como problema, bem como das soluções homólogas da conversão religiosa e da integração ao Estado-nação, dá lugar à discussão do vínculo estreito e íntimo, anunciado por Foucault principalmente nos cursos no Collège de France, entre liberalismo e racismo. Trata-se aqui da guerra à diferença como núcleo organizador das questões que desenham o livro. A passagem da guerra à diferença à sua celebração dá origem aos novos usos da diferença como expedientes e dispositivos de poder. Foucault teria reconhecido neles processos e formas de governamentalidade, formas de governo, inclusive e talvez principalmente por meio do expediente da liberdade.

    As relações entre religião e diferença conformam o segundo núcleo de questões. A investigação dessa relação está ancorada nos procedimentos etnográficos de observação e descrição densa, ancorada espaço-temporalmente em uma rua do centro da metrópole paulistana. A pesquisa etnográfica permite perceber que as formas religiosas mais recentes têm como expediente graus acentuados de flexibilidade. Talvez como elemento de uma constelação bastante contemporânea, a palavra flexibilidade tenha podido migrar do campo da descrição dos processos de restruturação produtiva, do campo das formas de trabalho para o campo da análise das práticas religiosos. Desse modo, a conversão não precisa mais significar ruptura radical com o passado, passando a significar um tornar-se o que se é. As reconfigurações religiosas a partir do movimento pentecostal e neopentecostal, aponta Mariana Côrtes, significaram um ponto de inflexão no processo histórico analisado classicamente por Weber. Da graça à predestinação e desta à flexibilização em que se desvanece a separação irredutível entre danados e eleitos. Seus lugares não são mais determinados de antemão. Ao contrário, são lugares em disputa.

    Abriu-se o campo para a concorrência. Como tudo o mais nos novos padrões societários da acumulação flexível, até mesmo a divisão binária entre danados e eleitos sofreu um processo de privatização e desregulamentação. Suas posições não são previamente decididas, elas devem ser encarniçadamente disputadas. Num clima de salve-se quem puder, é na esfera do mercado que se decidem os danados e os eleitos. Cada um fará o possível para salvar-se, disputando, no palco diário da luta pela vida dos cultos neopentecostais, quem é o mais ungido, quem tem mais fé, quem é dotado de mais poder, quem recebeu mais bênçãos, quem pode falar em línguas estranhas, quem tem os dons da revelação e da cura, ou, ainda, quem é o pregador que possui a melhor performance, a maior capacidade de sedução da plateia e de derramamento do fogo do espírito, quem, finalmente, possui o testemunho mais arrebatador, o mais tremendo. No mercado de fiéis ou no mercado de pregadores, vale o mesmo imperativo: salve-se quem puder.

    Até mesmo o monoteísmo, diante de uma acumulação flexível do capital religioso, teria se tornado rígido demais, engessado demais para uma nova religião de serviços. O deus único se multiplica assim conforme as demandas e as igrejas em deuses infinitamente mutáveis e maleáveis, conforme exige a vontade específica de cada cliente. Nem deus está a salvo diante dos imperativos da acumulação flexível desdobrada na lógica das clientelas e dos mercados constituídos pelas igrejas pentecostais.

    Um novo núcleo de questões passa então a se desenvolver tomando como dimensão empírica as relações entre as nomeações psiquiátricas e a depressão. O saber psiquiátrico confrontado com um sofrimento diagnosticado e tratado como depressão foi analisado a partir das narrativas desses sujeitos remanescentes, tratados a partir de medicação que se apresenta de modo alheio ao seu próprio controle. As pílulas tanto mais poderosas quanto mais indecifráveis apontam para uma indicernibilidade entre o normal e o patológico, dimensão a partir da qual se transforma o estado de normalidade em condição permanentemente inacabada. O que escondem esses campos? Essa pergunta, que se baseia na questão que Raymond Williams formulou sobre as paisagens rurais inglesas, dá origem à organização e à análise do material empírico do terceiro momento da pesquisa e da análise que compõe o livro. O trabalho empírico teve como fio condutor as visitas domiciliares de agentes de saúde na região rural e nos pequenos núcleos urbanos de Minas Gerais. Com uma condição camponesa à brasileira – misto de pequenos proprietários e trabalhadores assalariados informalmente – em vias de dissolução, um conjunto de visitas no acompanhamento do serviço de atenção médica e psiquiátrica funcionaram como fio que permitiu o acesso à dimensão pouco visível da caracterização das doenças psiquiátricas e seu tratamento farmacológico. Os relatos são apresentados por meio de títulos que buscam dar conta da riqueza das situações que são narradas. Saudades do diazepan, A Doença, os nervos e a ‘ruindade’, Café, faca e depressão, Suor, choro e mato são alguns deles. O capítulo termina com as considerações sobre o diagnóstico da depressão que interromperia a circulação da palavra.

    Premidos por dores sem localização e angústias sem formulação, os caipiras deprimidos vão ao posto médico mais próximo, marcam consultas com o clínico-geral, descrevem seus sintomas, saem de lá com uma classificação: depressão, síndrome do pânico, esquizofrenia. Dirigem-se à farmácia local com a receita em mãos, compram as pílulas prescritas, voltam para suas casas. Antes de dormir, abrem as caixas dos medicamentos cruzadas com suas tarjas vermelhas ou pretas, retiram as cápsulas das cartelas cor de prata, ingerem o comprimido e deitam em suas camas. Nas semanas seguintes, aguardam ansiosamente os efeitos dos remédios que, contudo, são imprevisíveis. Eles podem elevar o humor, mas também induzir anseios difusos; podem apaziguar aflições, mas fazer os olhos estalarem; podem dar ânimo do mesmo modo que provocar prostração. Suas regras não são claras. Seu modo de operação não é transparente. Seus poderes são misteriosos. Uma batalha invisível acontece no universo microscópico dos neurotransmissores. São suas relações, retrações, propulsões que interessam – e não a dos seus portadores, os seres humanos. Todo o tratamento incide sobre o ser que vive; nada se demanda do ser que fala. Pressupõe-se que este não tem nada a dizer. A psiquiatria biológica se legitima sob a condição da existência de uma distância irrevogável entre essas duas dimensões.

    A grande questão final que se desenha diz respeito então aos fios e nexos transversais que aproximam o que parecia e talvez de fato seja bastante diverso, pelo menos do ponto de vista dos espaços de sua inserção, os dois casos denominados como casos-tipo. Trata-se de um novo regime de governamentalidade que os atravessa e os constitui em um novo jogo identitário. Essas formas de governo se enredam num modo de conceber e compreender o momento neoliberal brasileiro pensado não como política econômica, mas como racionalidade, tal como propuseram Chrstian Laval e Pierre Dardot em A Nova Razão do Mundo ³. E Mariana Côrtes aponta não sem um tom de amargura, que já não se trata de construir uma ordem mais justa, mais igual, mas de gerir as consequências da nova desordem, resultado da desregulamentação da economia e da abertura da ‘caixa de pandora’ do mercado, ou da máquina milagrosa do capital financeiro em cujo rastro é possível detectar ruínas objetivas e subjetivas, daqueles que não puderam acompanhar o ritmo frenético das transformações em curso e da mobilização total que parece ser continuamente ativada.

    É preciso mencionar que, tratando das políticas sociais no chamado ciclo lulista, Mariana Côrtes identifica avanços ainda que marcados pelo que chama de estratégias do diagrama neoliberal: políticas e programas focalizados e seletivos que não teriam escapado dessa mesma racionalidade. Diante do fim desse ciclo, que parece ter começado a se esgotar em 2013, tendo como momento final ou quase final abril de 2016, a reflexão que o livro nos apresenta vai se tornando cada vez mais imprescindível. Os processos vitoriosos que instalam o mercado religioso devidamente flexibilizado até mesmo em seus princípios supostamente definidores da modernidade ocidental, bem como a medicalização hipernatural de uma normalidade permanentemente inacabada, o que vem desaparecendo e se modulando e a emergência de injunções absolutamente contemporâneas afinal se enlaçam na conformação e na gestão da vida nua. Essa jovem pesquisadora, tecelã de nexos, conclui seu livro abrindo um leque de novas questões. Ficamos por aqui com uma de suas tessituras ancoradas teórica e empiricamente na teia de relações propostas como constelação, como se pode ler em um trecho da conclusão, importante demais para não ser mencionado.

    Numa sociedade regida segundo o modelo do mercado e não do Estado-nação, deve-se deixar livre curso para os jogadores. Em oposição às exigências do Estado-nação, a sociedade organizada segundo o princípio do mercado neoliberal não pretende a construção de uma sociedade homogênea, sólida e una. Ao contrário, visa uma sociedade na qual a desregulamentação, a privatização e a diversificação sejam os princípios centrais. A guerra contra a diferença era um objetivo do Estado-nação moderno. Mas ela não é um affaire da governamentalidade neoliberal. Venha como você é!. O jogo te espera. As regras nem sempre serão transparentes, a alavanca que prevenia o choque de ontem pode ser a alavanca que descarrega a eletricidade hoje, mas é importante que se jogue, não importa o quão aparvalhados possam se sentir os jogadores-ratos. É preciso que se jogue e se jogue sempre. Os indivíduos não precisam se tornar algo diferente do que são – ao contrário, o jogo presume que eles sejam quem são⁴, com suas idiossincrasias, suas máculas, seus desesperos. Na multiplicação intensiva de novos mercados, há espaço para todos, para todas as diferenças: para os ex-tudo, há o mercado neopentecostal de sofrimentos; para os favelados, o narcotráfico; para os imigrantes, o trabalho ilegal; para as meninas pobres, o tráfico humano; para mulheres subempregadas, a consultoria de empresas de venda-dieta⁵; para celebridades em decadência, reality-shows; para jovens sem rumo, a aventura-morte dos motoboys; para os catadores de lixo, a reciclagem-responsabilidade social; para os desesperados de todo tipo, as sweatshops. Só uma coisa não se pode tolerar: que os indivíduos não queiram jogar, que os jogadores desistam do jogo e peçam para sair.

    Nessa encruzilhada se encontram como saídas o diabo que habitava o passado transformado em mercadoria simbólica e as drogas contra a depressão, contra aqueles que não jogam ou não querem jogar, contra aqueles que se tornaram intoleráveis porque pediram para sair.

    Como se depreende das observações desse prefácio, Mariana Côrtes é uma pesquisadora que desponta como promessa de uma reflexão densa, crítica, afiada, uma tecelã de nexos que afinal aproximaram, num experimento intelectual ousado, diabo e fluoxetina.

    Cibele Saliba Rizek

    Professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo do IAU/Universidade de São Paulo

    Pesquisadora do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da Universidade de São Paulo

    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO

    PRIMEIRA PARTE

    A GUERRA CONTRA A DIFERENÇA

    CAPÍTULO I

    A religião, o Estado, a nação e o problema da diferença

    A diferença como problema

    Religião e Estado: modelos análogos?

    A desvalorização do mundo

    Do estrangeiro ao estranho: o problema moderno da diferença

    A batalha contra a ambivalência

    CAPÍTULO II

    Racismo e liberalismo: duas estratégias de combate à diferença

    Genocídio ou assimilação: a guerra contra os estranhos

    Disciplina e biopolítica: a guerra contra os anormais

    O estado de exceção e a vida nua: a guerra contra os homini sacri

    CAPÍTULO III

    O novo estatuto da diferença

    segunda PARTE

    religião e DIFERENÇA

    CAPÍTULO IV

    A cidade de Deus e a cidade dos homens na Rua Conde de Sarzedas

    A cidade de Deus de Agostinho

    Deus e homens na Rua Conde de Sarzedasdeus

    A história da Conde

    Entre Deus e os homens: o problema da mediação

    CAPÍTULO V

    O mercado de pregações

    A Conde vicia...

    O pregador-executivo e o pregador-mendicante

    A história de vida como mercadoria

    Do banco dos angustiados ao testemunho performático

    Mancos, bastardos e ambíguos

    A fabricação da diferença

    A vida nua como mercadoria

    CAPÍTULO VI

    A religião contra o Um

    Uma igreja para cada freguês

    Os novos conteúdos da conversão

    A acumulação flexível na expansão neopentecostal

    terceira PARTE

    depressão e DIFERENÇA

    CAPÍTULO VII

    Do panóptico à pílula

    Um mal ronda a sociedade

    Ambivalências da melancolia e loucura

    A invenção do manicômio

    A ascensão do anormal

    A descoberta do afeto

    Das lesões às funções

    A invenção da pílula

    A explosão do patológico

    O império da natureza

    Do manicômio ao Prozac

    CAPÍTULO VIII

    Narrativas do sofrimento

    O que escondem esses campos?

    Romaria e a depressão

    A vontade de saber

    Saudades do Diazepan

    A doença, os nervos e a ruindade

    A cidade, o estranho, o diagnóstico

    Café, faca e depressão

    Suor, choro e mato

    A morte da palavra

    CAPÍTULO IX

    A guerra contra os normais

    A caça aos normais

    A injunção ao visível

    Das lettres-de-cachet à autoacusação

    A produção infinita de normalidade

    CONCLUSÃO

    Diabo e fluoxetina

    O sofrimento como espetáculo, o sofrimento como vergonha

    O diabo e a fluoxetina

    Crise da conversão, crise da cura

    Do plano ao jogo

    Definitivamente, não somos gregos... nem cristãos

    REFERÊNCIAS

    INTRODUÇÃO

    Na Serra da Canastra, Minas Gerais, em uma região chamada Vale da Babilônia, um homem de 40 anos de idade, solteiro, trabalhador rural, morador da mesma casa em que nasceu e hoje usada para acolher visitantes do turismo rural e ecológico, me perguntou se eu queria ver os remédios que tomava. Meio surpreendida com a pergunta, assenti. Ele buscou na cabeceira de sua cama uma caixa de medicamentos, com as cartelas cor de prata para fora, denunciando o seu uso diário nos compartimentos vazios das cápsulas tomadas. Solenemente, em tom de fatalidade, ele disse: É de tarja preta. Constrangida e sem referência de qual código de polidez aplicar naquela hora, esperei-o quebrar o silêncio e romper com o incômodo instaurado. Ele, então, retomou a conversa: O médico disse que era para... não sei direto... parece que é... é... depressão, engasgando na última palavra, como se fosse alienígena ao seu léxico costumeiro, sem lugar na boca, na língua, na garganta, uma palavra que não partilha da mesma familiaridade das demais palavras, das que saem soltas, sem engasgos, ao natural.

    No agitado centro da cidade de São Paulo, bairro Liberdade, na Rua Conde de Sarzedas, hoje em grande parte apropriada pelo comércio de produtos e serviços evangélicos, um homem, também nos seus 40 anos de idade, abordou-me na calçada, em frente a uma loja, e perguntou se eu, a irmã, não estaria interessada em comprar um cartaz com um salmo bíblico. Concordei, e começamos a conversar. Ele me disse que não trabalhava apenas com venda de cartazes, mas que também pregava, dava o seu testemunho. Perguntei então qual era sua história, qual seria seu testemunho. Ele me contou que, antes de aceitar Jesus, chegou a ser várias coisas. Era do candomblé e fazia feitiçarias com defunto, carneiro e bode. Por causa de um trabalho realizado contra ele, tornou-se homossexual. Chegou a esticar os cabelos com ferro de passar roupa para ficar mais parecido com mulher. Aos 12 anos, engajou-se no Comando Vermelho. Roubou, traficou e ajudou a matar muita gente. Viu coisas terríveis e disse que o mundo do crime era um mundo cão. Confessou que havia despachado muito delator, no código nativo, cagueta: para gente que falava demais, ou a gente cortava a língua ou levava para o micro-ondas. Cansado daquela vida, diz que teve que aceitar Jesus na marra. Hoje é crente e trabalha na Rua Conde de Sarzedas, vendendo cartazes de salmos bíblicos. Porém, contou-me que seu sonho era gravar seu testemunho em alguma das muitas gravadoras evangélicas espalhadas pela rua. Falou-me que era bom de pregação e que, se precisasse, abria a boca para pregar. Pregaria na rua, em igrejas, em eventos, em encontros ao ar livre, ou em qualquer lugar para o qual recebesse convites. Tirou um papel do bolso, pegou uma caneta, anotou o seu telefone e me entregou. Estou esperando seu convite, irmã! Despediu-se de mim, deu as costas e logo abordou o próximo freguês.

    O caipira deprimido e o pregador-mendicante não têm, à primeira vista, nada em comum. No primeiro caso, trata-se de sujeitos remanescentes das regiões rurais brasileiras, que vivem em locais de campesinato empobrecido, nas cidades pequenas ou nas periferias das cidades médias. O segundo caso refere-se a sujeitos de origens sociais diversas, habitantes das periferias das grandes metrópoles brasileiras. No primeiro, têm-se sujeitos que, ao buscarem atendimento médico nos postos de saúde, queixando-se de dores difusas e mal-estares difíceis de serem expressos, retornaram para casa com um diagnóstico, um tratamento prescrito e uma nova identidade, com os quais uma relação tensa começa a ser construída e disposições ambivalentes de desconfiança e conformidade passam a ser combinadas. No segundo, sujeitos convertidos às igrejas evangélicas, principalmente em suas variantes pentecostais e neopentecostais, que se engajam na carreira de pregadores e vivem do expediente de dar seu testemunho em igrejas e eventos, narrando seu passado mundano e episódios dramáticos vivenciados, como experiências com a criminalidade violenta, mendicância, prostituição, homossexualidade, vitimização por acidentes e doenças crônicas e incapacitantes. No primeiro, a resposta vem do saber psiquiátrico. No segundo, da religião pentecostal e/ou neopentecostal.

    Em um caso, um sofrimento que até então não era claramente nomeado passa a ser reunido na categoria psiquiátrica depressão; ganha um nome, uma explicação, um tratamento, que, no entanto, são recebidos, pelo próprio sujeito que sofre, com estranhamento, desprovidos de codificação, fora de lugar. Noutro, a narrativa de vida, cheia de episódios de dor, ganha o formato de um testemunho de conversão religiosa, em que os dramas da vida anterior são agenciados em uma carreira emergente de pregador. Em um, o estranhamento em relação ao mundo é diagnosticado na categoria clínica depressão. Noutro, a própria condição de estranho – expressa na escolha da apresentação dos registros bizarros da biografia pessoal – é promovida como narrativa de espetacularização da performance de pregação.

    Esses dois grupos constituem os dois estudos de caso do presente livro. Duas inquietações motivaram a pesquisa. Em relação ao primeiro grupo, o que me instigava inicialmente era como o sofrimento, como conteúdo central de um conjunto de categorias que expressam um tipo de experiência de estar-no-mundo, passou por um processo de ressignificação nas representações difundidas entre sujeitos remanescentes do campesinato. Isto é, como as categorias costumeiras que significavam o estado de espírito associado à dor, ao infortúnio, à solidão, como ensimesmado, amuado, borocochô, muxoxo, se reelaboraram ou ganharam um acréscimo de sentido quando passaram a ser patologizadas como depressão e/ou outros transtornos mentais, cuja linguagem científica é recebida pelos sujeitos que sofrem como uma gramática alheia, o que contribui para a construção de suas identidades como inadequados, desajustados, inaptos.

    Em relação ao segundo grupo, o sofrimento é agenciado de outra maneira. A despeito de sua adesão ao pentecostalismo implicar uma ruptura com a identidade anterior e a aquisição de uma nova identidade religiosa, os pregadores-mendicantes apelam para a estranheza de suas identidades pregressas, como ex-mendigos, ex-bandidos, ex-cangaceiros, ex-assaltantes, ex-traficantes, ex-policiais justiceiros, ex-mestres de capoeira, ex-deficientes físicos, ex-paraplégicos, ex-mudos, ex-padres, ex-judeus, ex-espíritas, ex-bruxos, ex-macumbeiros, ex-puxadores de samba, ex-jogadores de futebol, ex-homossexuais, ex-travestis, ex-prostitutas, ex-garotas de programas, e uma infinidade de outros ex. O passado mundano, que nas conversões clássicas era redimido e purificado na aquisição de um novo estatuto santificado, passa a ser permanentemente agenciado como mercadoria simbólica a ser vendida no mercado religioso. Quanto mais estranha, grotesca e absurda a trajetória biográfica, mais possibilidades de sedução e venda adquire.

    O sofrimento como depressão e o sofrimento como mercadoria revelam duas modalidades emergentes de resposta à diferença, à estranheza, à anormalidade desses sujeitos sociais. Essas duas formas de administração dos diferentes, seja via medicalização psiquiátrica, seja via transformação em mercadoria simbólica, sugerem pensar, a partir da densidade empírica particular dos estudos de caso, como se configuram as formas contemporâneas de gestão das diferenças, em que elas representam uma ruptura, uma inovação e/ou uma reconfiguração das formas anteriores. Historicamente, os sujeitos considerados estranhos, diferentes, anormais, tornaram-se objeto de inquietação política a partir da consolidação da modernidade. A construção do Estado-nação moderno pressupunha a formação de uma sociedade étnica e culturalmente homogênea, em que a produção simbólica de um mito de origem comum fornecia uma unificação simbólica para indivíduos potencialmente iguais e mutuamente previsíveis. No entanto, no projeto de fabricação da sociedade moderna, sujeitos que não se encaixaram nas categorias naturalizadas de pertencimento ou que não preenchiam os quesitos para a aquisição do estatuto de cidadão foram objeto de uma intervenção estatal que, no limite, como conhecemos nos episódios dramáticos dos genocídios modernos, levou à destruição física daqueles considerados irremediavelmente diferentes, estranhos demais para serem objeto de qualquer solução que não fosse a violência mortífera. Num amplo espectro, que tem o assassinato em massa como um dos seus extremos, encontra-se também a formação de guetos, o banimento geográfico, o encarceramento dos delinquentes, loucos, anormais nas instituições totais modernas, como cadeias, hospitais, hospícios. De outro lado, paralela à resposta drástica de eliminação do diferente, seja por destruição física, seja por isolamento espacial, outra estratégia foi também aplicada: a tentativa de abolição da diferença. Nesta, os diferentes não foram considerados irremediavelmente diferentes, eles podiam ser convertidos, assimilados, domesticados, disciplinados, curados. As campanhas de assimilação das populações consideradas abusivamente particulares e os esforços de disciplinarização, assujeitamento e medicalização dos corpos dos inquietantemente anormais preenchem esta segunda modalidade.

    Genocídio, banimento, assimilação, disciplinarização foram soluções encontradas na modernidade como formas de administração das diferenças. Uma pergunta então se coloca: poderíamos dizer que essas continuam sendo, para a sociedade contemporânea, as formas de gestão das diferenças? Se tais soluções continuam, em que medida foram reelaboradas? Se não, em que medida as formas atuais apresentam uma ruptura? Tomando como referencial analítico a história da guerra moderna contra a diferença, interroga-se o que a classificação da estranheza como depressão, de um lado, e a transformação da estranheza em mercadoria simbólica, de outro, apresentam de novidade como formas de gestão das diferenças. O que elas podem desvelar sobre as formas contemporâneas de lidar com o problema da diferença ainda que, evidentemente, estas últimas não se esgotem nos dois casos empíricos?

    Na primeira parte do trabalho, analisa-se a guerra moderna contra a diferença. No primeiro capítulo, discute-se a emergência da diferença como problema. Mostra-se como a religião universal de salvação e o Estado-nação moderno apresentam soluções análogas no combate à diferença: o modelo religioso da conversão e o modelo estatal da assimilação são homológos. No segundo capítulo, argumenta-se como a batalha contra a diferença foi característica tanto dos regimes democráticos como dos totalitários. Por meio das teses de Zygmunt Bauman, Michel Foucault e Giorgio Agamben, revela-se o íntimo – e secreto – vínculo entre liberalismo e racismo, enfocando três modalidades de guerra contra o diferente, respectivamente: 1) a guerra contra os estranhos; 2) a guerra contra os anormais; 3) a guerra contra os homini sacri. No terceiro capítulo, debate-se o novo estatuto que a diferença adquire a partir da década de 70 do século passado: rejeitada durante a maior parte da modernidade, ela recebe uma inesperada valorização. Contudo, por trás da celebração da diferença, institui-se, como se verá ao final do livro, uma nova forma de governo dos indivíduos, que tem justamente nos usos da diferença um de seus veículos de dominação.

    Na segunda parte, discute-se, por meio da experiência social dos pregadores-mendicantes, o surgimento de uma nova relação entre religião e diferença. No quarto capítulo, apresenta-se uma descrição densa da Rua Conde de Sarzedas na cidade de São Paulo, maior centro de comércio evangélico do país e principal campo de atuação dos pregadores emergentes, palco de um jogo cotidiano em que os bens da cidade de Deus são permanentemente negociados segundo as regras da cidade dos homens. No quinto, investiga-se a formação de um mercado de pregações, em que os pregadores-mendicantes se inserem de uma maneira particular: a estranheza de suas histórias de vida, em vez de ser resolvida em um esforço de ordenação, é constantemente mobilizada nas performances de pregação, que agenciam o passado biográfico, em suas dimensões grotescas, como mercadoria simbólica a ser vendida no mercado religioso em expansão. No sexto, mostra-se como a religião evangélica, em sua variante neopentecostal, institui um padrão flexível de arregimentação de fiéis, em que a conversão religiosa deixa de constituir uma ruptura com a antiga identidade para se tornar uma injunção ao tornar-se o que se é.

    Na terceira e última parte, discute-se a relação entre depressão e diferença. No sétimo capítulo, retraça-se a história da formação do saber psiquiátrico, desde a formação do manicômio até a era da psicofarmacologia moderna, mostrando como, a partir da década de 1970, uma psiquiatria biológica, farmaceuticamente orientada, se torna hegemônica no campo da saúde mental. Do manicômio ao Prozac, a psiquiatria se reorganiza em torno do sofrimento e passa a ter na depressão um de seus principais vetores de legitimação. No oitavo capítulo, apresenta-se a pesquisa empírica com os sujeitos remanescentes do campesinato diagnosticados com depressão, enfocando, a partir de suas próprias narrativas de sofrimento, os descompassos da recepção de uma categoria alienígena ao seu léxico costumeiro e a submissão a um tratamento à base de remédios sobre o qual não possuem nenhum controle. Quanto

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