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Uma Comunidade de Afetos: Etnografia Sobre Uma Rua de Um Bairro Popular na Perspectiva da Antropologia das Emoções
Uma Comunidade de Afetos: Etnografia Sobre Uma Rua de Um Bairro Popular na Perspectiva da Antropologia das Emoções
Uma Comunidade de Afetos: Etnografia Sobre Uma Rua de Um Bairro Popular na Perspectiva da Antropologia das Emoções
E-book400 páginas13 horas

Uma Comunidade de Afetos: Etnografia Sobre Uma Rua de Um Bairro Popular na Perspectiva da Antropologia das Emoções

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Sobre este e-book

O livro Uma comunidade de afetos é uma etnografia sobre uma rua de um bairro popular da cidade de João Pessoa-PB (Brasil), na perspectiva da Antropologia das Emoções. Busca apresentar a rua estudada em sua história natural, traçada ao longo dos anos de 1940 a 2018. Os anos 40 são vistos hoje como anos de continuidade de um projeto expansionista da cidade e do seu caminho para a abertura de novas fronteiras e implantação de novos bairros locais. Exemplificam um período também de grande deslocamento de famílias do interior para a capital do estado da Paraíba, expulsas do campo ou em busca de melhores condições de vida e trabalho. O livro conta a trajetória de 13 famílias que chegaram de forma independente à cidade, reuniram- se por acaso, assumiram um pedaço de mata onde construíram suas casas e conformaram a rua que passaram a habitar, além de senti-la como lugar de pertença. Nela teceram uma cultura emotiva e um modo de vida singular, formando uma rede de solidariedade, compartilhamento e pertença que denominam comunidade de afetos, de um lado, e de engolfamentos resultantes da intensa pessoalidade das relações entre os seus membros, de outro. O livro conta a história natural da rua e a lógica constitutiva dessa comunidade de afetos tendo como ponto de partida um momento trágico ocorrido no ano de 2006 no interior da comunidade. Esse momento é acompanhado etnograficamente por meio da percepção da rua sobre o processo que desencadeou a situação-limite geradora da tragédia que atingiu a comunidade de afetos e os seus moradores.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de ago. de 2019
ISBN9788547319731
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    Uma Comunidade de Afetos - Mauro Guilherme Pinheiro Koury

    autor

    SUMÁRIO

    Introdução

    1

    O bairro da Torre: expansão do núcleo urbano da capital e sua periferia

    2

    Uma vista sobre a Rua X e seus moradores

    3

    Cultura emotiva, disposições morais e tensões cotidianas

    4

    Uma tragédia anunciada

    5

    A morte de Arnaldo e a solidariedade da vizinhança

    6

    Tempos atuais: uma tentativa de conclusão

    Referências

    Anexo

    Personagens tratados no texto

    Introdução

    Este livro, de cunho etnográfico, situa-se no interior de uma pesquisa guarda-chuva intitulada Medos Corriqueiros¹. Satisfaz um subprojeto no seu interior², que tem por objetivo desenvolver uma reflexão, a partir de dados etnográficos levantados entre os anos de 2000 e 2017, sobre o problema da pessoalidade, formas de evitação e das estratégias de manutenção e preservação da face ou fachada³ (GOFFMAN, 1980, 2010, 2011), entre moradores de uma rua localizada na periferia do bairro da Torre, na cidade de João Pessoa, Paraíba.

    Os dados que informam essa etnografia foram levantados em três momentos. No primeiro momento de estada em campo, entre os anos 2000 e 2005, o material levantado serviu como suporte para a compreensão dos medos corriqueiros, concebidos como medos cotidianos experimentados nos lugares e espaços interacionais dos moradores da cidade em seu todo, em forma de estratégias diversas utilizadas para aproximações ou afastamentos de situações, de pessoas e coisas na sociabilidade vivida e em processo contínuo de construção.

    Esses dados objetivaram-se posteriormente como um novo problema de pesquisa, atentando para o que chamo aqui de segundo momento de estada em campo, entre os anos de 2007 a 2010, e de forma intermitente, até o ano de 2012. Para essa nova entrada em campo, foi elaborado um subprojeto intitulado Morte entre amigos.

    Esse subprojeto teve o seu desenrolar após eu ter sido abordado em uma rua da cidade por um antigo interlocutor que me comunicou o assassinato de um rapaz, pelo seu melhor amigo, ambos vizinhos e moradores da Rua X⁴. Eu os conhecia e já os tinha entrevistado e acompanhado suas trajetórias, bem como a dos seus familiares.

    Nesse momento, e seguindo a sensibilidade pessoal havida com a notícia do falecimento e da prisão dos rapazes, e da vivência de quase cinco anos com eles e seus familiares, fui até a casa dos pais dos dois rapazes para os votos de pesar e colocar-me à disposição da família. A partir dessa visita, conformou-se toda uma trajetória de acompanhamento das duas famílias, do rapaz preso e das idas ao cemitério, com os familiares, onde o rapaz morto jazia.

    Um novo problema de pesquisa tinha tomado forma naquele momento. A dor das duas famílias, também muito amigas e de longa trajetória em comum, foi, então, por mim acompanhada com o intuito de compreender, de um lado, os formatos morais e os custos emocionais havidos e como foram vividos e refletidos pelas duas famílias como fortalecimento de uma amizade de décadas. Assim como os hiatos existentes, que, vez ou outra, tornavam-se prenhes de pequenos silêncios ameaçadores da continuidade das relações, do outro. A mim interessava ver, sobretudo, como, nesse ambiente tenso, as duas famílias situavam-se na busca de conservação de laços de amizade e na tragédia de ter um filho morto e assassinado pelo filho da outra família, e como esses vínculos foram renovados no cotidiano relacional tenso pós-tragédia que acometeu essas famílias.

    Nesse novo adentrar na vida dessas duas famílias, a partir de uma situação-limite (JASPERS, 1974) ou do momento trágico por eles vivido, eu senti a necessidade de aprofundar a trajetória das duas famílias, e de cada uma, desde a vinda do interior do estado até a ocupação de um pedaço da Mata do Buraquinho, próximo a Estrada dos Macacos, hoje Avenida Pedro II, no ano de 1945. Penetrei mais ainda na conformação familiar e no estreitamento de laços entre eles, com a chegada dos filhos e das lutas pela manutenção do espaço ocupado e conquistado junto a outros na Mata do Buraquinho, com o traçado urbano do bairro da Torre⁵. E, por fim, adentrei na dor pessoal de cada membro das duas famílias a partir do assassinato de um dos filhos pelo outro, por motivo banal, e nos novos ordenamentos morais e emocionais havidos entre essas duas famílias para continuarem unidas após o ato trágico que as abalou.

    Em uma apresentação dos resultados dessa reflexão,⁶ uma pergunta levantada no público presente me fez querer, mais uma vez, ampliar o olhar dirigido ao episódio. Esse novo olhar descentralizou-me das duas famílias amigas que sofreram o impacto do assassinato de um filho – também considerado amigo, mais que amigo, irmão – pelo outro para a rua onde moravam.

    Esse outro deslocamento do olhar abriu o terceiro momento de trabalho de campo na Rua X, de forma intermitente, a partir do final do ano de 2016 e, de forma aprofundada, no ano de 2017 até início de 2018. Teve por objetivo compreender como o impacto causado pelo assassinato foi percebido pelos moradores da Rua X e como eles tentaram justificar e explicar o trágico acontecimento.

    Esse, portanto, é o objetivo central desta etnografia. Ela envolve várias temporalidades da imersão do pesquisador em campo e diversas temporalidades vividas pelos moradores da Rua X. É sobre o jogo cotidiano de experiências e de temporalidades distintas, complementares ou específicas, que envolve a Rua X em uma história natural⁷ de conformação de uma comunidade de afetos e solidária e seus enfrentamentos e tensões que esta etnografia se debruça. O seu resultado é uma colcha de retalhos composta pelas narrativas dos entrevistados da Rua X e recheada pelas situações densas e tensas cotidianas de uma rua imersa em relações de intensa pessoalidade.

    A colcha de retalhos tecida neste estudo, assim, adentra-se nessa composição de afetos, solidariedade, enfrentamentos, receios, esperanças e pertencimento. Situações cotidianas que ampliam a margem de solidariedade entre os moradores e expandem as articulações dessa trama solidária e afetiva, de uma história em comum – mas também individualizada – em uma série de tonalidades, em que a ambivalência cria a escala de tons, desde mágoas, pequenos conflitos, desajustes e crises que põem a comunidade e seus participantes à prova a todo instante, ao mesmo tempo, porém, de ajuda ao outro, do sentimento de pertença ao local e de afetos. Ambivalência que causa tensões e formas de prosseguir, consolidando a rede de amizades local em uma comunidade de afetos e em uma cultura emotiva (KOURY, 2017, p. 10-11) dela e por ela montada, e os processos morais que a cristalizam.

    É interessante notar aqui, embora eu não deva me aprofundar nessa direção, a ideia trazida por Woortmann (1987) e Fonseca (2002, 2004), de que uma comunidade de afetos que envolvem uma rede de solidariedade e histórias comuns de pertencimento pode ser vista como uma ampliação de laços de parentesco. Ambos os autores destacam as relações afetivas e solidárias – embora tensas, porque recheadas de pequenas disputas morais – existentes entre pessoas e famílias em convívio de intensa pessoalidade, como uma forma de ampliação da rede de parentalidade local.

    Para os dois autores, a noção de parente não se restringe, nesses nucleamentos, aos laços de consanguinidade. Na Rua X, porém, se os cuidados de uns com os outros é movido por essa rede intensa de compartilhamentos, a preocupação com a questão da intimidade familiar e as questões do até onde se pode chegar ao outro, é também constante. Apesar dessa preocupação com a intimidade do outro, a relação entre os moradores é de intensa pessoalidade, o que provoca ambivalência de sentimentos e produz uma discreta tensão e mágoas pela não informação, por um vizinho, dos seus problemas aos demais, ou pelos ouvidos moucos aos conselhos dos demais, principalmente, e de forma especial, entre os da primeira geração e construtores da trajetória de lutas, afetos e compartilhamento na Rua X desde 1945.

    Objetivos perseguidos

    Esta etnografia tem por objetivo central compreender a percepção dos moradores da Rua X sobre o impacto causado pelo assassinato de um dos filhos de um casal morador da rua pelo filho de outro casal também morador do local, considerados muito mais do que amigos, irmãos. Evento acontecido no dia 24 de maio de 2006.

    Como objetivos específicos, busca estar atenta, às vezes de forma mais detalhada, outras vezes apenas como pano de fundo compreensivo, a nove escopos analíticos. O primeiro deles diz respeito à busca de entendimento do processo de construção da rede de amizades que compõe as famílias moradoras da rua por eles chamada de comunidade de afetos, a sua montagem e articulações. Comunidade de afetos essa cujos principais componentes são os antigos moradores, poucos hoje vivos e, em sua maioria, com quase ou mais de 90 anos de idade, vindos do processo de ocupação da Mata do Buraquinho em meados de 1940 e da luta pela manutenção de suas casas e terrenos com a formação e desenvolvimento do bairro da Torre.

    O segundo objetivo leva o olhar do pesquisador ao foco de atenção sobre o processo de manutenção dessa rede de amizades, ao longo do tempo, no formato de uma intensa troca solidária entre as diversas famílias que compõem a rua. A ênfase do olhar analítico será dada à cultura emotiva e às formas assumidas pela moralidade que organiza o jogo de solidariedade e apoio mútuo entre eles.

    O terceiro objetivo específico, de um lado, centra-se na percepção da lógica do pertencimento construída em torno dessa longa vivência em comum, a partir da intensa pessoalidade que une os moradores e os mantém como Rua X. De outro, busca compreender a tensão inerente a esse pertencer, no sentido de ganhos solidários pessoais e públicos como rua, e a sensação de perda do privado, apesar de a preocupação com a preservação da intimidade pessoal e do outro estar presente nas narrativas locais, pela constante vigilância de todos em relação a todos os moradores.

    O quarto e o quinto objetivos visam, de um lado, ao entendimento das estratégias de uso da face e formas de evitação de demonstração pública utilizadas no dia a dia pessoal de cada morador e de cada família diante dos demais moradores no cotidiano moral de vivência local. Assim como, de outro lado, as formas de controle social adotadas, as máscaras possíveis utilizadas para escapar deste controle, ou também, muitas vezes, para dele diretamente participar.

    O sexto objetivo específico focaliza os silêncios e os segredos de polichinelo (BOLTANSKI, 2012) resultantes dessas práticas cotidianas em uma comunidade de intensa pessoalidade, isto é, todos sabem que todos sabem que todos sabem, mas se calam no público. Analisa o papel do murmúrio, dos rumores e da fofoca como instrumentos de informação do que se passa, como uma lógica pessoalizada no jogo do controle social.

    O sétimo objetivo busca acompanhar processo cotidiano da situação que redundou no assassinato de um jovem da comunidade por outro muito próximo e como esse processo foi acompanhado pelos moradores da Rua X. Busca verificar o episódio como tragédia, catástrofe e escândalo público (considerando como público, aqui, as famílias moradoras da Rua X), por meio da visão dos moradores entrevistados sobre o caso. Pretende compreender, portanto, como esses moradores acompanharam o episódio que terminou com o trágico evento da morte de um dos rapazes.

    As estratégias utilizadas de acompanhamento, a tensão e as vulnerabilidades (GOFFMAN, 2012) resultantes do segredo (SIMMEL, 1977), para a manutenção das relações pessoais e grupais antes e durante e depois da situação-limite do assassinato, satisfazem o oitavo objetivo específico. Nele se procura acompanhar o jogo de faces ou fachadas, e manutenção do alinhamento⁸, nas trocas interacionais entre os moradores da rua e as duas famílias, bem como dos amigos envolvidos na situação-limite que redundou na tragédia do assassinato, por meio das narrativas dos moradores do local.

    Por último, como o nono objetivo específico que cobre o vasto cenário compreensivo desta etnografia, busca-se perceber as relações entre as famílias da Rua X com as famílias tocadas pela situação-limite, após a tragédia. Tenta, então, debruçar-se no entendimento das tramas e enlaces-experimentos na Rua X em relação ao apoio moral e à solidariedade às duas famílias, assim como às formas de evitação (GOFFMAN, 1963), justificativas⁹ e desculpas¹⁰ no acompanhamento do caso e no relacionamento posterior, como reconstrução da cultura emotiva local, arranhada pelo episódio trágico.

    Aproximando teórica e metodologicamente o problema

    Esta etnografia, assim como o conjunto de trabalhos desenvolvido no âmbito do projeto guarda-chuva MC – e de todos os subprojetos a ele vinculados –, parte de uma abordagem interacionista vinculada à Antropologia e à Sociologia das Emoções. O projeto MC tem por objetivo a análise da construção social dos medos e dos medos corriqueiros na percepção e nas representações dos habitantes urbanos na contemporaneidade brasileira, dando destaque específico à cidade de João Pessoa, Paraíba, tomada como universo sistemático de pesquisa (KOURY, 2008).

    Em seus subprojetos, a cidade tem sido recortada em vários ângulos e problemáticas, tomando os medos corriqueiros como foco do olhar analítico. Os recortes partem desde a análise da relação entre fotografia e cidade, da história social da fotografia em João Pessoa e na Paraíba, da visão dos produtores culturais sobre a cidade de João Pessoa, até a análise de sociabilidades e pertencimento em ruas, praças e bairros da capital; a histórias dos bairros e sua relação com a cidade; a análise de grupos de jovens; a percepção sobre as noções de sujo e sujeira; a questão da violência entre iguais; a discussão das noções de pertença, pessoalidade, individualidade, cultura emocional e moralidades; a relação de estigma e exclusão social entre e intrabairros; entre outros aspectos.

    Os medos, e os medos corriqueiros, como norteadores do projeto em análise, são vistos como significativos para compreender a configuração das formas de sociabilidade e da organização do social na cidade. Os medos, como medos corriqueiros, assim, possuem um caráter dual: de uma parte, podem ser vistos como o elemento que fomenta os estigmas e o estranhamento do outro, causando repulsa, nojo, exclusão, individualização e hierarquização grupal e individual. Mas também, de outra parte, podem ser sentidos como um ou vários elementos de aspecto aventureiro e inovador, lançando formas de aproximação, de solidariedade e afetos, baseadas em laços de amizade, pessoalidade, semelhança e segredo (KOURY, 2000, 2002). Os medos corriqueiros são entendidos como emoções fundamentais para a elaboração do cotidiano entre os homens comuns no urbano, podendo paralisar, aprimorar ou transformar as trocas materiais e simbólicas dos indivíduos e grupos no processo de interação social.

    A produção do projeto MC proporciona, portanto, um olhar específico sobre a cidade de João Pessoa, como universo de pesquisa, a partir da perspectiva dos medos em situações cotidianas. De um olhar sobre a cidade como um todo e sobre algumas de suas partes, e em aspectos temáticos significativos vivenciados por seus habitantes, individualmente ou coletivamente. O projeto MC, nesse sentido, tem ajudado a traçar um panorama amplo da cidade de João Pessoa, em uma espécie de montagem de um mosaico científico sobre a cidade (BECKER, 1993, 2009, 2009a).

    Mosaico que compreende uma apreensão da cidade nunca em um todo estruturado, mas como um conjunto de partes que vão se juntando, arranjando e oferecendo uma composição de cidade. Composição essa como um processo articulado de lugares formados pelas diversas situações experimentadas por seus moradores, quer como atores ou agentes sociais em ação sobre um determinado problema surgido na própria situação¹¹ proporcionada pelo encontro interacional, quer como resposta a atos de fora do cotidiano vivido e que tornam possíveis situações acionais em torno de respostas, justificativas, acusações e desculpas, pessoais ou coletivas a tais atos.

    Compreende, destarte, a cidade como um jogo sistemático de situações em que se realizam encontros e desencontros entre os seus habitantes, quer a partir de ensejos pessoais, quer na conformação de públicos singulares. A noção de público segue, aqui, de uma forma mais aberta. A definição proposta por Gusfield (2014, p. 287-288), que o distingue do privado por sua capacidade de ser observado e pela demonstração de um interesse público, isto é, um interesse comum de indivíduos em relação a grupos ou coletividades maiores.

    Por público, enfim, Cefaï (2014, p. 22) entende, a partir de John Dewey, como o conjunto de pessoas, organizações e instituições diretamente afetadas pela percepção compartilhada de consequências [...] de uma situação [...] e(m) que se envolvem para buscar elucidá-la ou resolvê-la.

    A noção de público, assim, é vivida como um drama compartilhado. Como uma situação que requer uma encenação ou performance de um ou vários públicos em relação a um determinado objeto ou interesse manifesto, em forma de denúncia, em forma de desejo, em forma de controle, em forma de autonomia, em forma de ajuda e solidariedade, em forma de compartilhamento ou de estigma e exclusão. A noção de público, aqui, é tratada também no sentido dado por Freire (2016, p. 108), citando Wirth (1979), como uma modalidade de sociabilidade e/ou modo de vida.

    A cidade, assim, é captada em sua polifonia e em sua dinâmica processual, tensa, conflitual e sempre obtendo respostas várias a partir das situações nela vivida ou por ela geradas em seus habitantes. A cidade de João Pessoa, nos diversos recortes do projeto guarda-chuva MC, é sentida, assim, sempre como uma aproximação. É sempre aproximada, não em relação a uma composição estrutural, mas como redes aproximativas que compõem uma construção. Construção essa composta de peças-repertórios diversas e interpretativas dos múltiplos achados no interior dos subprojetos que conformam o projeto maior MC.

    Esta etnografia, desse modo, é parte do mosaico científico organizado pelo projeto guarda-chuva MC. Foi por meio do projeto que se deu a minha primeira aproximação com Arnaldo, um dos personagens principais da trama narrada neste trabalho.

    Arnaldo, na época, trabalhava como vigilante em um quarteirão do bairro de Tambaú.¹² Eu o conheci por meio de sua namorada, Rita, que trabalhava como empregada doméstica em uma das casas do quarteirão onde o Arnaldo exercia a sua função de vigilante. Rita, por sua vez, foi-me apresentada por sua mãe, Dona Milagres, moradora do bairro do Varadouro. Por intermédio de Rita, entrei em contato não apenas com Arnaldo, mas com a família da casa em que Rita trabalhava, e assim por diante. Desse modo, como em uma bola de neve a rodar, eu atingi quase todos os bairros, camadas econômicas, modos e estilos de vida da cidade João Pessoa.¹³

    Por intermédio de Arnaldo, adentrei no bairro da Torre. Lá chegando, eu fui apresentado à Rua X e a seus moradores. Primeiro, conheci os seus pais e melhor amigo, Noé, por ele chamado de amigo-irmão, e, assim, os pais de Noé. Depois, fui aos poucos apresentado aos demais moradores da Rua X e conhecidos e amigos de Arnaldo e Noé para além da Rua X. Amigos e conhecidos que frequentavam o Bar Beirada de Judá, próximo à rua em que moravam.

    Sem ainda ter em mente a Rua X como objeto de pesquisa e sem o objetivo no momento de uma visão analítica mais aprofundada da rua e seus moradores, a primeira entrada em campo, contudo, tornou-me familiar com a rua e os seus moradores. Fatos registrados no diário de campo, com momentos ricos de informações e de afeto, utilizados por mim nas duas incursões posteriores ao local, agora já provido de novo projeto e de novos interesses analíticos.

    Tempos depois dessa primeira entrada em campo e do conhecimento da Rua X e de seus personagens, eu me vi de volta à rua. O que me trouxe de volta à rua foi um chamado no meio do ruge-ruge do Parque Solon de Lucena, a Lagoa, em um final de tarde, quando a população se aglomera nos pontos de ônibus – que até pouco tempo atrás adentrava o centro do parque.

    No centro da cidade, no meio da Lagoa, um grito ressoa me chamando, olho para trás e um antigo entrevistado, morador da Rua X, aborda-me e me dá, de forma abrupta, a notícia da morte por assassinato de Arnaldo por seu melhor amigo, Noé. Esse chamado levou-me de volta à Rua X para condolências, para prestar solidariedade e me colocar à disposição dos familiares do rapaz morto, Arnaldo, e do outro agora aprisionado, Noé.

    Essa ida à Rua X é aqui avaliada como a minha nova entrada em campo e início do segundo momento de pesquisa, entre os anos de 2007 e 2010, e de forma menos intensiva até 2012, na rua. Essa nova entrada em campo, assim, dedicou-se a compreender como as duas famílias enlutadas se reestruturaram e mantiveram uma sólida amizade, mesmo a partir da situação-limite ou do momento trágico por elas vivido: o assassinato de Arnaldo, filho de uma das famílias, por Noé, filho da outra família (KOURY; BARBOSA, 2016 e 2017). Teve como objetivo específico aprofundar o entendimento da trajetória das duas famílias, de cada uma, e de sua amizade desde a vinda do interior da Paraíba até a ocupação de um pedaço da Mata do Buraquinho, próximo à Estrada dos Macacos, hoje Avenida Pedro II, em meados dos anos de 1940 até a segunda década do século XXI.

    Por último, uma nova entrada em campo deu origem ao terceiro momento desta pesquisa. A minha terceira entrada na Rua X corresponde ao que chamo de terceiro momento de trabalho de campo, entre o final do ano de 2016, intensificado em 2017, prosseguindo até o mês de janeiro de 2018. Teve por objetivo compreender como o impacto causado pelo assassinato foi percebido pelos moradores da rua e como eles tentaram elucidar e justificar o trágico acontecimento.

    A necessidade dessa nova ida à Rua X, com seus personagens, foi despertada no debate do texto sobre a morte do personagem Arnaldo e as consequências, arranjos e estratégias de manutenção dos laços de amizade entre as duas famílias que sofreram o abalo do assassinato de um dos filhos de um casal pelo filho do outro casal (KOURY; BARBOSA, 2016 e 2017). Esse despertar deu-se quando, em um momento do debate, perguntaram-me sobre como os moradores da Rua X reagiram ao episódio trágico.

    Essa pergunta me fez retornar aos diversos depoimentos e notas dos diários de campo, nos dois momentos anteriores da pesquisa, em busca de uma resposta à questão e de caminhos para o seu prosseguir analítico. A partir das respostas e caminhos analíticos possíveis encontrados nos registros das duas outras estadas em campo anteriores, foi construído um novo projeto com o objetivo de entender o acontecimento trágico e a situação crítica (BOLTANSKI, 1990; BOLTANSKI; THÉVENOT, 1991), agora sob a ótica dos processos vivenciados pelos moradores da Rua X no acompanhamento da trajetória dos dois rapazes – que se conhecem desde a mais tenra idade – até a situação-limite que levou ao episódio trágico do assassinato de um deles pelo outro.

    Esse retornar aos depoimentos e notas dos diários de campo levou-me a ampliar os meus horizontes compreensivos, antes restritos às duas famílias, dirigindo-me agora para a rua em questão e seus moradores. Boltanski (1990, p. 105-118) e Boltanski e Thévenot (1991, p. 82) entendem as situações críticas como situações problemáticas nas quais os acordos implícitos que movimentam a normalidade normativa de um lugar são sentidos como ameaçados. São sentidos no momento em que processos considerados como provocadores de possíveis desordens vêm à tona e tais desordens são percebidas pelos relacionais desse lugar – aqui, no caso, a comunidade de afetos da Rua X –, que buscam acompanhar, projetar suas consequências e tentar garantir o retorno à normalidade ou justificativas que levaram à situação, bem como implicações prováveis sobre ela.

    Fez-me adentrar, assim, mais uma vez, na Rua X, agora como universo de pesquisa, e buscar entender o sentido público de um acontecimento aparentemente privado: como uma rua acompanhou, sentiu, reagiu e exprimiu-se sobre um assassinato entre amigos e moradores. Partiu-se para tal de uma concepção ampla de público, das diversas arenas morais que se conformaram em seu interior e como elas interagiram no sentido de preservação ou questionamentos nas diversas situações sociais armadas e vividas pelos moradores do lugar.

    O cenário onde se desenrola essa nova entrada em campo é constituído simbolicamente por uma comunidade de afetos. Comunidade de afetos autodenominada e que tem a sua origem, de acordo com os moradores, no momento da ocupação e da construção da Rua X, e as relações afetivo-comportamentais arquitetadas por seus membros e vividas desde então.

    Comunidade de afetos que constitui um ethos e conforma uma cultura emotiva densa que molda um sentimento de pertença e um código de moralidade hegemônico, às vezes tenso, ao lugar. Da mesma forma que institui a pessoalidade reinante dessa composição e as diversas tensões abertas, ou insinuadas, a cada situação problemática acontecida em seu interior e as arenas que se formam para o debate público local dessas questões.

    Nesse sentido, apresenta-se aqui a concepção de arena pública. O que me permite observar o conceito não apenas para os elementos macros que compõem o jogo entre Estado e público, mas também entre a cultura emotiva e moralidades em espaços micros, como o da Rua X, e a dinâmica processual que se estabelece quando situações críticas emergem no seu interior, permitindo visões projetivas sobre o seu desenvolvimento e finalização (SCHÜTZ, 2012).

    O que me fez, assim, adentrar nos vínculos sociais conformados na configuração moral-afetiva da Rua X, a partir do processo de ocupação, luta por permanência e manutenção de um espaço de vida de cada um, morador, e de cada família nela presente, no aparecimento dos filhos e na lógica de pertencimento local como um jogo de relações solidárias, mas sempre tensas. Fez-me chegar a perceber o estreitamento dos vínculos sociais solidários e a experiência de partilha do pouco – sempre visto como muito, em vários depoimentos – que cada um possuía.

    Permitiu-me, ainda, perceber, nessa troca, a configuração de uma rede interacional cotidiana, que comporta uma vivência comum e amiga aos membros dessa comunidade e que, ao mesmo tempo, procura respeitar o espaço do outro e de cada um. Essa última nem sempre possível e, muitas vezes, atropelada pelas situações cotidianas que emergem e fazem os moradores tomarem posições.

    Fez-me apreender também, como forma de problematização, sobre a sedimentação intersubjetiva que conforma a comunidade de afetos que compõe a rua, Berger e Luckmann (1985, p. 95) afirmam que acontece uma sedimentação intersubjetiva quando vários indivíduos participam de uma biografia comum, como no caso desses homens e mulheres que se encontraram por acaso e juntos construíram uma comunidade de afetos ao partilharem uma mesma trajetória de luta, resistência e manutenção de permanência e integração na cidade de João Pessoa, onde chegaram expulsos do campo e com o medo do que aconteceria com eles dali por diante.

    Juntos, na história natural de suas trajetórias em comum, elaboraram uma cultura emotiva de pertencimento, por meio da construção da Rua X e de sua manutenção, organizando um código afetivo e moral que permitiu que sobrevivessem unidos. Além de uma ética comum para enfrentarem a cidade e, vinculados e fortemente conectados, encararem a si próprios como coletivo.

    De acordo com os dados registrados nos diversos livros que compõem o diário de campo, e em situações específicas dos depoimentos dos moradores da rua, nos três tempos em que se desenvolve esse meu novo olhar e minha nova entrada em campo, tudo o que se passava nessa rua, em suas diversas situações, era, de uma forma ou de outra, vivido por todos intensamente. Muito embora esse compartir, inúmeras vezes, criasse situações de engolfamento (SCHEFF, 1990) nas relações sociais entre os moradores dessa pequena rua.

    Desse modo, mesmo quando o silêncio dava-se transversalmente entre os demais membros da comunidade, em relação a um determinado problema que um dos vizinhos passava, muitos entrevistados relataram, em seus depoimentos, que, se por acaso esse problema não fosse repassado, pelas pessoas em conflito, ao grupo, isso não queria dizer que todos não soubessem nem comentassem o caso. As arenas eram criadas, prognósticos eram feitos, aproximações afetivas eram buscadas e de desafetos eram montadas, além das buscas de solução exigidas e, em alguns casos, formalizadas. Muito embora evitassem uma forma direta, ou um confronto direto, com o vizinho que passava pela situação e que se recusasse a ouvi-los, ou fizessem vista grossa aos seus ditames e se sentissem magoados por estarem sendo colocados à margem da questão.

    Questões compreensivas que perpassam direta ou indiretamente pelo estudo

    Cabe ressaltar, com relativa tristeza, que os moradores da Rua X, em 2018, já não moram mais no lugar. Terminaram cedendo à especulação imobiliária local e se encontram espalhados por vários bairros populares da cidade de João Pessoa.

    Já bem idosos, muitos já morreram – como a Dona Geralda¹⁴, mãe de Noé, e Seu Raposo, pai de Arnaldo, personagens do assassinato entre amigos analisado por Koury e Barbosa (2016 e 2017) –, e outros encontram-se em idade avançada e adoentados. Os sobreviventes continuam, porém – mesmo morando distante um dos outros, com ligeiras exceções – a se ver ou a se falar, e a manter viva, nas trocas eventuais e em suas memórias pessoais, a experiência coletiva da comunidade de afetos por eles construída, bem como os elos de confiança envolvidos e suas tensões.¹⁵

    Desse modo, o meu trabalho, nessa terceira ida a campo, entre o final de 2016 e de forma intensificada durante o ano de 2017, estendendo-se pelo início de 2018, foi o de, ao lado de aprofundar as questões sugeridas nos objetivos gerais e específicos de minha proposta de pesquisa, reencontrar cada um dos casais, personagens singulares de uma trajetória de vida comum, em seus novos endereços, e conversar sobre essa convivência harmoniosa e, ao mesmo tempo, tensa, experimentada na longa vivência na Rua X. Mas também foi o de mergulhar, não apenas nos personagens-fundadores da Rua X e da comunidade de afetos gerada e, do mesmo modo, chegar até os filhos, genros e noras, netos e bisnetos, segunda, terceira e quarta geração da Rua X, e como eles vivenciaram essa comunidade de afetos dos pais e como viveram o dia a dia do crescer na Rua X e dos embates e tensões experimentadas. Essa terceira estada em campo, assim, teve por objetivo buscar narrativas que complementassem ou tensionassem o episódio principal aqui analisado, isto é, como a Rua X narra o trágico acontecimento em que um amigo, Noé, assassina o amigo-irmão, Arnaldo, por um motivo considerado banal.

    É essa comunidade de afetos, portanto, geradora de uma cultura emotiva propensa a um sentido de pertença e de compartilhamento absorvente – de alegrias e sofrimentos, bem como de códigos morais de conduta estreitos e fechados em uma lógica de participação intensa na vida uns dos outros, construída em um processo de vida e luta pela manutenção de um lugar de morada, e nos engolfamentos resultantes da intensa pessoalidade das relações –, que esta pesquisa pretende compreender. Busca a sua compreensão, contudo, a partir do momento trágico que acometeu duas famílias amigas moradoras da Rua X, por meio da questão: como os moradores da Rua X relatam o acompanhamento do processo que levou até a situação-limite geradora do sinistro (o assassinato de Arnaldo pelo amigo-irmão Noé)?

    A partir dessa questão principal, outras emergiram, como as

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