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Os coletivos criminais de Porto Alegre: Entre a "paz" na prisão e a guerra na rua
Os coletivos criminais de Porto Alegre: Entre a "paz" na prisão e a guerra na rua
Os coletivos criminais de Porto Alegre: Entre a "paz" na prisão e a guerra na rua
E-book550 páginas8 horas

Os coletivos criminais de Porto Alegre: Entre a "paz" na prisão e a guerra na rua

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Sobre este e-book

Este livro, fruto de pesquisa empírica no sistema prisional e nas periferias de Porto Alegre, tem como objetivo analisar o fenômeno dos coletivos criminais da capital. Enfatizando as relações entre facções distintas, bem como entre elas e os agentes do Estado, Marcelli Cipriani recompõe o processo de sua emergência no Presídio Central de Porto Alegre, seu transbordamento para o espaço urbano e a progressiva incorporação, pelos grupos, do sistema prisional na logística do crime. Assinalando uma dinâmica de mutualismo entre facções e Estado, o livro explana os ganhos recíprocos que forjam o precário equilíbrio entre esses atores – sustentando, em última instância, um acordo de "paz" que, no cárcere, prevê a ausência de confrontos entre inimigos e a contenção de turbulências. Porém, como explorado pela autora, do lado de fora os conflitos tendem a resultar de antagonismos entre grupos e não entre eles e o Estado, e foi uma ampla reordenação de suas dinâmicas e formas de organização – direta e indiretamente alimentadas pela "paz" prisional – que levou à guerra das facções gaúchas. O fio condutor do livro, divido em duas partes (a "paz" e a guerra), é os usos e desusos que as facções fazem da violência – certamente permeados por racionalidades econômicas, mas também embebidos em justificações morais, na produção de identidades, nas disputas por legitimidade e na reação às desigualdades sociais e violências institucionais.
IdiomaPortuguês
EditoraHucitec
Data de lançamento28 de out. de 2021
ISBN9788584042210
Os coletivos criminais de Porto Alegre: Entre a "paz" na prisão e a guerra na rua

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    Os coletivos criminais de Porto Alegre - Marcelli Cipriani

    PARTE 1

    A PAZ NA PRISÃO

    Capítulo 1

    A paz entre aspas

    Quando eu comecei a atuar, o Batalhão de Choque era duas vezes por semana dentro do Central, era um tumulto atrás do outro, a gente não dormia. Motim... Tumulto toda hora. Não só no Central, em outros presídios também... Isso aí foi mudando, do final dos anos 90 pra cá. Foi melhorando.

    — Antes, no início que vim pra cá, dava muita morte. Os presos se matavam. Não é mais assim.

    — Os tumultos ocorriam mensalmente. Em 95, chegaram a ser semanais. Isso foi melhorando com o tempo. [...]. Desde o final dos anos 2000, nós não tivemos mais mortes em confronto. [...]. ­Praticamente nenhuma rebelião no Central, nenhuma fuga.

    — Às vezes era duas vezes por dia. E não era coisinha. Era tiroteio, esfaqueamento, coisa violenta. Então, isso foi reduzindo, reduzindo, reduzindo, e aí ficou uns pingados. No ano, uma vez. Ou menos. E coisas que nem iam pra fora.

    — Aquela situação de conflito com o Estado, de guerra ali dentro, isso acabou.

    — Eu passei quatro anos ali [no Central] e não teve nenhuma grande rebelião. Tinham conflitos menores, mas aquela coisa de queimar colchão, ou de um grupo atacar o outro, de preso aparecer morto com estocada, isso não.

    Esses trechos foram extraídos de entrevistas que apliquei com operadores do sistema de justiça e policiais em ofício no Central. O teor dos relatos seria corroborado pelas entrevistas feitas com presos — que endossaram, de diferentes maneiras, que a situação na prisão estava tranquila, na paz e de boa. O processo de mudança sugerido pelos interlocutores começou a ser percebido a partir da virada do século, se aprofundando desde então e alcançando aparente equilíbrio nos últimos anos. Ele se instaurou após um período marcado por incessantes instabilidades nos presídios sul-rio-grandenses — que na capital, onde se encontra o Casarão , chegariam ao extremo no ano de 1995.

    As características que passaram a ser notadas, no ambiente prisional, a partir do início dos anos 2000, sinalizam uma espécie de pacificação das relações nos presídios locais e, fundamentalmente, no Central. Desde então, viu-se uma progressiva queda em conflitos de todo tipo: no âmbito das relações entre os presos, os assassinatos diminuíram consideravelmente, apesar de seguirem, ainda hoje, ocorrendo de maneira episódica — ou mesmo mascarada, como será visto. No âmbito das relações com o Estado, houve redução substancial daquilo que os interlocutores agregam sob a alcunha de tumultos — rebeliões, motins e situações de confronto com a guarda.

    É preciso, entretanto, manter muitas ressalvas à ideia de que uma prisão pode vir a se tornar pacífica — especialmente se a paz for pensada em oposição à presença da violência. A despeito de eventuais boas intenções, a reclusão é perversa em si mesma (Chies, 2009) — e, no Brasil, o sofrimento, as péssimas condições de vida, a tortura e os espancamentos sempre fizeram parte da história do sistema prisional (Góes, 2009). Em Porto Alegre, o declínio das turbulências que marcaram as décadas de 1980 e 1990 conviveu com a manutenção de condições nada novas às prisões do país, sem desviar da tradicional promoção de arbitrariedades, abusos, constrangimentos e violações.

    Na ascensão da paz, denúncias de excessos no uso da força policial, de punições disciplinares injustas ou sem apuração adequada sobre as faltas aplicadas seguiram sendo feitas pelos presos. Uma dessas situações me foi relatada por uma defensora pública enquanto eu a entrevistava. Segundo ela, um apenado do Central havia se machucado após cair de sua jega. Para burlar a falta de espaço nas galerias e a insuficiência de colchões, os presos improvisam jegas amarrando panos nas paredes, como se fossem redes. Os presos avisaram os funcionários do acidente, que não quiseram encaminhar o preso à assistência médica, pois ele não tinha solicitação prévia e seu ferimento não seria grave o bastante. Em solidariedade, um dos moradores da mesma galeria, que já possuía uma requisição para ir até a enfermaria, a doou para o colega machucado. Assim, mais necessitado, ele poderia ser atendido em seu lugar. Como consequência, esse indivíduo teria recebido um ­procedimento administrativo disciplinar, pois seu ato foi entendido como uma espécie de falsidade ideológica.

    Apesar de se tratar de um exemplo pontual, a postura inflexível dos agentes e a punição do preso como consequência pela boa ação já sugerem que, se houve transformações no trato entre esses grupos, contribuindo à paz no universo social do Central, elas permanecem sendo perpassadas por pontos críticos, que não estão necessariamente dados. Embora os presos relatem que os policiais mudaram, para melhor, o jeito de lidar com eles, e que esses agentes descrevam a existência de uma nova cultura na prisão desde sua entrada no estabelecimento, não se pode ignorar as contínuas violações de direitos associadas à experiência prisional no Brasil, tampouco o profundo enraizamento de práticas autoritárias que persiste nas instituições policiais (Pinheiro,

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