Avaliação escolar, gênero e raça
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Sobre este e-book
A pergunta central desse livro é: a definição de critérios de avaliação claros poderia contribuir para equilibrar o desempenho dos alunos, independentemente dos aspectos socioeconômicos, de sexo e de raça, ou da visão dos profissionais acerca deles?
Pesquisas qualitativas indicam que sim, no que se refere à percepção de desempenho entre os sexos e, de forma menos intensa, entre negros e brancos. Mas revelam também que continuam necessárias na escola discussões sobre as relações de gênero, classe e raça – masculinidades e feminilidades racializadas que ali são construídas e reforçadas –, tanto para alterar as trajetórias escolares malsucedidas de um número significativo de meninos, quanto para que a escola possa colaborar no combate às desigualdades dentro e fora de seus muros.
- Papirus Editora
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Avaliação escolar, gênero e raça - Marília Pinto de Carvalho
livro.
1
COMO LOCALIZAR ALUNOS E ALUNAS COM DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM?
Um primeiro estudo exploratório, desenvolvido em uma escola municipal da Região Metropolitana de São Paulo em 1999 e 2000, demonstrou a dificuldade em obter informações confiáveis sobre o desempenho e as trajetórias escolares das crianças, uma vez que as anotações em fichas nem sempre correspondiam à avaliação que a professora efetivamente tinha de cada aluno e que, além disso, as práticas de reforço ocorriam de maneira informal, sem registro sistemático. Essa experiência apontou a necessidade de ouvir diretamente as professoras tanto no que tange à classificação de seus alunos e alunas, quanto no que se refere aos critérios utilizados para avaliá-los.
Uma vez que as questões que orientavam a pesquisa haviam partido de conclusões extraídas de cifras nacionais, foi preciso construir pontes entre esses dados macrossociais e o cotidiano da escola investigada, para compreender o significado das estatísticas sobre desempenho escolar para aqueles sujeitos, o que exigiu uma reflexão sobre o lugar social ocupado pelos testes e informações estatísticas educacionais no contexto brasileiro atual.
Ora, a ênfase na produção de informação estatística é uma das características centrais das atuais políticas educacionais no país, utilizando os recursos da informática e os dados resultantes dos frequentes testes padronizados de desempenho, os quais também caracterizam essas políticas. Ninguém, em sã consciência, seria capaz de negar a importância de produzir e divulgar informação confiável sobre a qualidade do sistema escolar, ou a relevância de construir um processo de avaliação coerente e capaz de ir além dos testes aplicados aos alunos. Contudo, não se pode, da mesma forma, aceitar sem críticas o verdadeiro culto aos números que parece vir ganhando corpo no campo educacional. Estatísticas, taxas, índices, gráficos e tabelas são cada vez mais tomados como sinônimo de verdade final e incontestável, como prova cabal desta ou daquela afirmação ou como arma em disputas de poder, privilégios e prestígio.
Falando com a autoridade de quem vive e pesquisa num dos centros irradiadores desse tipo de culto, Robert Bogdan e Sari Biklen (1994), pesquisadores norte-americanos com vasta experiência em investigação qualitativa na área da educação, convidam-nos a olhar os números e seus produtos por seus significados afetivos e ritualísticos, enfatizando que cada cultura constrói seus próprios critérios de compreensão do cotidiano: Outras sociedades, ao tentar explicar a vida de todos os dias, basearam-se em sistemas rigorosos. Nos EUA, baseamo-nos na ciência, cujo símbolo é o número. Os resultados das computações e a produção de taxas são sinônimos de ser racional
(p. 198).
Com tal referência, esses pesquisadores propõem um conjunto de perguntas sobre o significado simbólico da coleta de dados estatísticos para as pessoas do sistema educacional em seus diversos níveis, da escola à administração nacional, e sobre as funções que esses números cumprem, para além daquelas que comumente lhes atribuímos. Não se trata de buscar melhorar as formas de coleta de dados ou discutir como o processo de geração de estatísticas no interior das escolas deveria se dar, mas sim de perguntar como ele vem acontecendo, de perceber o contexto social envolvido na compilação de informações estatísticas e os efeitos que ela tem na maneira como as pessoas pensam e agem em torno dos temas enfocados. Trata-se, assim, de buscar tanto os pressupostos que as orientam ao compilar e usar os dados, quanto as formas como os utilizam na construção da realidade.
Esse tipo de abordagem não é usual. Numa interessante coletânea, organizada pelo professor francês Jean-Louis Besson e sintomaticamente intitulada A ilusão das estatísticas, encontramos o comentário de que muito pouco se tem produzido na área do que seria uma sociologia das estatísticas
:
(...) ainda que os semiólogos ou os sociólogos não temam se aventurar nos terrenos mais exóticos, eles examinaram muito pouco as estatísticas em seu cotidiano; seja porque se deixam impressionar por toda a maquinaria que está por detrás delas, seja porque compartilham os preconceitos do público a seu respeito e não as vêem como objeto de estudo. (Besson 1995, p. 261)
Besson nos chama a atenção para o fato de que a legitimidade das estatísticas foi conquistada por meio de uma imagem de rigor e infalibilidade, que se busca manter a todo custo, com uma discrição excessiva em matéria de erro
, isto é, deixando fora do debate o fato de que toda estatística é afetada por alguma inexatidão (idem, p. 29). Ora, trata-se ali da discussão sobre estatísticas sociais e econômicas (recenseamentos, cifras econômicas, pesquisas de opinião etc.), construídas por meio do trabalho meticuloso de técnicos que buscam, na medida do possível, estimar até mesmo o grau de confiabilidade de seus cálculos. Mesmo assim, os autores não hesitam em atribuir à estatística uma dimensão qualitativa, na medida em que toda contagem parte de uma modelação da realidade, de uma classificação e de uma codificação que produzem o esquema por meio do qual a ‘realidade’ será percebida e quantificada
(idem, p. 257). Por isso, esforçam-se por mostrar que os índices e as cifras são apenas sinais indicadores da realidade social
, traços que determinadas ações produziram e que foram observados, codificados e contados. Esse indicador pode ser uma aproximação mais ou menos satisfatória, dependendo de seu grau de ligação com o objeto que se deseja conhecer. A confusão entre índices e realidade
costuma ter consequências profundas sobre as interpretações e os usos que são dados às estatísticas.
No caso das taxas escolares brasileiras – com exceção dos resultados de testes padronizados –, as cifras de desempenho escolar são produzidas pelos próprios professores e professoras, com base em critérios, codificações e classificações que ainda precisam ser conhecidos e explicitados, ao contrário do que se poderia supor. Mais ainda, são produzidas no interior da própria máquina administrativa interessada em seus resultados e podem ter consequências imediatas para seus produtores, como fruto de uma melhor ou pior avaliação da escola ou do sistema escolar a que ela pertence.[1] Que resultados esse contexto traz para os números de aprovação e repetência divulgados pelos governos e reproduzidos pela mídia? Em que medida está presente a substituição da ação pelas taxas que medem a eficácia dessa ação?
Em busca das crianças com dificuldades escolares
Inspirada por esse olhar, debrucei-me, ao longo de 1999, sobre a produção de estatísticas de desempenho escolar no interior de uma escola pública, que chamarei de Escola 1. Trata-se de uma escola municipal que atende às quatro primeiras séries do ensino fundamental na periferia da Região Metropolitana de São Paulo, num município vizinho à capital. Em 1999, atendia a pouco mais de mil alunos em três períodos diferentes: 13 classes pela manhã, 13 à tarde e 3 classes noturnas de supletivo. Além de 4 funcionárias da secretaria, 5 da merenda e da limpeza e 1 casal de zeladores, havia naquele ano 1 diretora, 1 vice-diretora, 1 coordenadora pedagógica e 29 professoras.
A Escola 1 contava com prédio de alvenaria em boas condições de uso, apesar de pequeno para a grande quantidade de alunos. Afastada do centro do município, situava-se a algumas quadras da avenida central do bairro, onde circulavam ônibus e havia um comércio intenso, mas estava no limite entre as ruas asfaltadas, com casas de alvenaria, e as ruas de terra que subiam morro acima, com moradias cada vez mais precárias. Muitos de seus alunos, diziam as professoras, vinham desse lado mais pobre do bairro.
Foram realizadas observações na sala de professores, no pátio de recreio, na quadra de esportes e na sala de aula da professora Denise,[2] da 4ª série, que concedeu duas entrevistas gravadas. Escolhi estudar uma das classes de 4ª série por serem estas as únicas que exigiam das professoras, ao final do ano, que decidissem sobre a promoção ou a retenção dos alunos, dada a adoção do sistema de ciclos de quatro anos, na rede municipal em questão. E a escolha de Denise decorreu de sua disposição em participar da pesquisa. Muitas informações importantes foram fornecidas por Paula, uma das professoras das atividades de reforço, então aluna do Curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da USP, que atuou como informante privilegiada dentro e fora do espaço escolar.
Além disso, foram consultados materiais existentes na secretaria da escola: os livros chamados localmente de Livro Fare
, que significa Ficha de Avaliação do Rendimento Escolar
, nos quais constavam os conceitos atribuídos a cada bimestre aos alunos, por disciplina, e suas faltas; e estatísticas comparativas entre as 26 escolas da rede municipal em questão, fornecidas à Escola 1 pela Secretaria Municipal de Educação, abrangendo dados sobre total de matrículas, transferências, evasão, retenção e