Por uma didática da educação superior
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Sobre este e-book
Esse novo cenário requer compreender a educação superior e o seu papel na sociedade, considerando as determinações sociais, políticas, econômicas e educacionais sobre esse nível de ensino. Para isso, discutir a Didática da Educação Superior que se concretiza no ensino, na pesquisa, na extensão e em processos inovadores, contribui para fortalecer as reflexões em torno da Didática da Educação Superior de cunho mais geral e a Didática Geral na formação dos Licenciados. A perspectiva é, a defesa de um projeto de formação docente para a educação básica e superior que atenda à complexidade do exercício da docência no contexto atual de mudanças e de desafios de toda ordem.
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Por uma didática da educação superior - Ilma Passos Alencastro Veiga
Santos
PREFÁCIO
Professores de ensino superior, formadores de professores e pesquisadores em didática, de alguma forma ligados ao tema da docência universitária, são presenteados com este livro Por uma didática da educação superior. Os capítulos abordam as recentes políticas de ensino superior, as finalidades e objetivos da universidade, a questão da didática no ensino superior e a organização do ensino no que se refere a conteúdos, metodologias, técnicas de ensino e avaliação da aprendizagem. O livro foi organizado por Ilma Passos Alencastro Veiga e Rosana César de Arruda Fernandes. Ilma possui uma longa carreira como professora universitária e pesquisadora, tendo se especializado em assuntos da didática, em especial, da docência universitária, da formação de professores, do desenvolvimento profissional de professores e em temas da gestão escolar, especialmente o projeto político-pedagógico. Rosana tem sólida experiência como professora, formadora de professores e gestora na educação básica e, no ensino superior, como professora e pesquisadora, dedicando-se a temas da formação docente, do trabalho docente e do desenvolvimento profissional de professores e também em questões do ensino fundamental e médio.
Ao ensejo da publicação deste livro, quero ressaltar o vigor de Ilma Passos Alencastro Veiga, sua energia e produtividade inesgotáveis, seja como professora, pesquisadora e divulgadora científica. Como professora universitária e pesquisadora sempre envolvida com a didática ao longo de frutíferos cinquenta anos, lecionou em várias instituições de ensino superior e foi visitante em dois importantes programas de pós-graduação do país, levando seu trabalho, suas orientações, sua disposição para colaborar e sua assertividade, ajudando grupos de pesquisa, orientandos e estudantes. Como pesquisadora, seu currículo inclui doze livros organizados e sete de sua própria autoria, sendo este o vigésimo, além de mais de setenta publicações entre artigos e capítulos de livros. Para além de toda essa produção, é imperioso destacar seu papel de divulgadora científica no campo da educação em parceria com grupos de colaboradoras(es). Ilma tem um lugar reservado entre pesquisadores dedicados a atividades de comunicação científica ao reunir nas publicações que organiza a produção acadêmica de seus pares e destiná-las aos formadores de professores, aos professores e aos pesquisadores.
O livro tem uma intenção evidente de buscar a natureza, os conceitos e a dinâmica da didática da educação superior, uma área de estudos de constituição sabidamente recente. Um dos textos de Veiga (2014) identifica a estruturação desse campo a partir de 1990 por ocasião da implantação de processos avaliativos externos no ensino superior, o que levou à constituição de duas tendências nessa estruturação. Do lado oficial, o Ministério da Educação (MEC) passou a produzir textos legais e ações administrativas, incluindo diretrizes curriculares, demarcando atribuições da docência no ensino superior em face das políticas de avaliação. Do lado dos pesquisadores e de movimentos associativos, essas ações do MEC os levaram a repensar os fundamentos da docência universitária considerando peculiaridades epistemológicas, políticas e metodológicas das disciplinas acadêmicas, bem como as dimensões pessoal, experiencial e profissional do professor universitário, as relações do ensino superior com o contexto social e as implicações político-sociais. Foi nesse contexto, em contraposição às políticas oficiais, que o desenvolvimento profissional do professor universitário foi entendido como um processo permanente em que se articulam conhecimentos científicos, éticos, pedagógicos, experienciais e político-sociais, considerando-se a diversidade de cursos ofertados e as funções clássicas da universidade, o ensino, a pesquisa e a extensão.
Nesse movimento, numerosos estudiosos mobilizaram-se em pesquisas com bases em diferentes orientações teóricas, enriquecendo os aportes para delimitar a constituição da didática para a educação superior. No entanto, a despeito dessa movimentação, são notórios os percalços ainda encontrados nessa caminhada. Como constatam alguns autores neste livro, embora contemplada na legislação educacional, institucionalizada em algumas universidades públicas e objeto de estudos de um razoável número de pesquisadores, a formação pedagógica do professor de ensino superior ainda não é valorizada. Com efeito, boa parte das instituições de ensino, quando introduzem programas de formação, o fazem por meio de ações transitórias. Ainda assim, é sabido a ojeriza a essas ações formativas por parte dos professores, especialmente em relação a didática e metodologias de ensino, até mesmo dos que exercem a docência nas licenciaturas. Eis aí uma questão premente e penosa, timidamente levantada em alguns capítulos neste livro: por que os docentes do ensino superior, geralmente, torcem o nariz quando são convidados ou convocados para programas de formação pedagógica? O que explica a exclusão ou a hostilidade à didática em cursos de licenciaturas? E o que explica a ausência de pesquisas sobre escola e ensino em boa parte dos cursos de pós-graduação em educação, como constatado em recente pesquisa empírica? Qual a parte de responsabilidade dos pedagogos a essa situação?
Felizmente, esse diagnóstico adverso em relação à formação pedagógica de docentes do ensino superior não levou as organizadoras e autores(as) deste livro ao desalento, antes, os impulsionaram em seu conhecimento e em sua ação a exporem suas ideias e a produzirem, para este livro, textos sob uma perspectiva crítica e inovadora. Os capítulos aqui apresentados sinalizam uma estrutura conceitual na abordagem dos temas da didática: as finalidades e objetivos da educação superior, as concepções de ensino-aprendizagem, a complementariedade da didática e das didáticas específicas e as formas de organização do ensino (conteúdos, metodologias e técnicas de ensino, avaliação da aprendizagem).
É oportuno o reavivamento do tema das finalidades e objetivos da educação superior em conexão com as concepções de ensino-aprendizagem, questão que, ademais, é extensível a todos os níveis do ensino formal. Pesquisa sobre finalidades educativas escolares levada a efeito em nosso grupo de pesquisa na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás) mostra a carência de estudos tanto teóricos quanto empíricos sobre esse tema, assim como a variedade de concepções sobre finalidades e objetivos da escola conforme interesses de classes e grupos sociais existentes na sociedade (políticos, empresários, dirigentes do sistema escolar, associações e organizações etc.). A pesquisa evidencia, também, a presença no campo educacional de claros dissensos entre educadores e pesquisadores acerca das funções das escolas. É assim que estudos sobre finalidades educativas conduzidos em nosso país e no estrangeiro, incluindo as referências a esse tema em vários capítulos deste livro, vêm ressaltando o impacto nas escolas de todos os níveis de ensino do crescente processo de subordinação da educação brasileira a políticas recomendadas por organismos internacionais, a serviço do mercado. No caso do ensino superior, é evidente a sujeição das instituições de ensino aos indicadores externos de desempenho, inibindo projetos próprios de gestão e de inovações pedagógicas. No que se refere às concepções de ensino-aprendizagem, os autores deste livro afinam-se em torno de teses reconhecidas no âmbito de teorias de caráter emancipador e crítico, tais como a potencialização da aprendizagem dos alunos, um conhecimento mais efetivo da vida dos estudantes, a interdisciplinaridade, a pedagogia colaborativa, o ensino por problemas, a interpretação crítica do conhecimento em sua relação com as realidades sociais, a relação dialógica, a formação para a autonomia e responsabilidade.
Outro tema realçado no livro é a relação de complementaridade entre didática e didáticas específicas, proposição que tem como discussão preliminar a relação e articulação entre os conhecimentos pedagógico-didáticos e os conhecimentos específicos. Os vínculos entre o método didático e o método da ciência ensinada não é um tema familiar aos pedagogos porque, historicamente, no Brasil, a pedagogia privilegiou na formação profissional do professor o conhecimento pedagógico genérico e não os conteúdos específicos. No entanto, não é nova a discussão sobre a indissociabilidade entre forma e conteúdo, sobre a relação entre ciência e matéria de ensino e entre método de ensino e método da ciência. Ou sobre o fato de que aprender ciência é apreender sua construção teórica, ou seja, o modo de construção do objeto da ciência por meio do seu desenvolvimento histórico, o que significa dizer que há correspondência entre os procedimentos investigativos do conhecimento científico e o processo de formação de operações mentais por parte dos alunos. Desconhecer essa correspondência equivaleria a concordar com a opinião de muitos professores de que ensinar consiste, unicamente, em repassar os resultados da ciência. O pedagogo russo Vasily Davydov ajuda a compreender essa relação entre método de ensino e método da ciência ao indicar que a função preponderante das escolas é a de assegurar os meios para os alunos apropriarem-se dos conhecimentos e, assim, formar conceitos adequados acerca do objeto de estudo. Os conceitos, enquanto modos de operação mental, são formados com base nos processos lógicos e investigativos da ciência ensinada. O procedimento didático mais apropriado para isso é pôr os alunos em uma atividade de estudo, propondo problemas instigantes, na qual os alunos apropriem-se dos procedimentos lógicos e investigativos com os quais os cientistas trabalharam. Ou seja, para aprenderem um conteúdo os alunos precisam reconstituir, no seu pensamento, os procedimentos investigativos utilizados pelos cientistas que se transformam, para os alunos, em meios de sua própria atividade, até mesmo para acederem a conhecimentos de nível mais complexo. Disso se conclui que o conhecimento didático do professor (pelo qual o aluno é ajudado a aprender do melhor modo possível o conteúdo) depende do conteúdo e das particularidades investigativas da ciência ensinada, ou seja, depende das características do conhecimento específico. Em outras palavras, o conhecimento específico e o conhecimento pedagógico-didático estão mutuamente relacionados, sendo o conhecimento pedagógico-didático vinculado diretamente aos conteúdos e procedimentos lógicos e investigativos da ciência que está sendo estudada. O tema é não só instigante como, em minha opinião, uma das questões centrais da busca da unidade entre uma didática básica e as didáticas específicas das disciplinas.
O tema das formas de organização do ensino ocupa a segunda parte do livro cujos capítulos abordam a seleção e organização dos conteúdos, as metodologias e técnicas de ensino e a avaliação da aprendizagem. Uma das questões mais reiteradas neste livro e que representa uma linha de investigação dos grupos de pesquisa aos quais estão vinculados os autores, diz respeito ao esforço teórico em justificar, em uma perspectiva pedagógico-didática, a necessidade de prover aos professores universitários o instrumental pedagógico-didático para o desempenho do seu trabalho. Eis aí outro tema ainda pouco amadurecido no campo teórico-crítico da educação fortemente impregnado atualmente de anticonhecimento escolar, antitécnicas didáticas e anti-intervenção pedagógica. Muito embora não haja, também, consenso na área acerca do que seja o educativo, o pedagógico e o didático, neste livro há um entendimento compartilhado entre os autores de que a educação se viabiliza pela pedagogia (sem discutir, no momento, se pedagogia aí equivale a didática) na qual se insere a metodologia de ensino que, por sua vez, inclui a organização e seleção dos conteúdos, os métodos e as técnicas de ensino e a avaliação. Tal proposição conceitual deixa claro que métodos e técnicas não devem ser dissociados da teoria pedagógica e das finalidades e objetivos do ensino. Da minha parte, penso que na formação pedagógica a mera exposição de teorias pedagógicas ou concepções de ensino ou a explicitação de valores e boas intenções educativas não são suficientes para o saber ensinar, pois a atividade requer capacidades e habilidades, ou seja, um saber-fazer. Por mais avançada, atual ou progressista que seja uma proposta pedagógica, dificilmente ela será internalizada por professores se ela não ajuda efetivamente nas práticas. A questão ganha mais complexidade quando sabemos da impregnação, no ensino superior, do paradigma tradicional de ensino, da concepção disciplinar de currículo e da conhecida característica humana de resistência a mudanças, de modo que fica prevalecendo o conhecimento tácito e não o reflexivo. Desse modo, um dos desafios de construção de uma didática para a educação superior, digamos, social e pedagogicamente eficaz, está em uma correta adequação entre meios de ação docente e seus fundamentos teóricos mas a partir do entendimento de que a apropriação de meios de ensino por parte dos professores pode ser um caminho para que revisem suas próprias teorias tácitas ou sustentadas meramente em experiências e assim compreender melhor alternativas de práticas de ensino em relação ao padrão vigente. Enfim, é uma amostra de competência crítica de pesquisadores da docência universitária o reconhecimento de que professores precisam apropriar-se de instrumentos culturais de mediação constituídos na experiencia educativa trazendo, com isso, à discussão ingredientes de uma didática de ensino superior que não subtrai dela fundamentos filosóficos e pedagógicos e, ao mesmo tempo, conecta a eles os métodos e técnicas de ensino-aprendizagem.
Por fim, não é possível concluir este prefácio sem situar a publicação deste livro no atual contexto mundial e brasileiro. Certamente os autores do livro estão a se perguntar se seus capítulos teriam o mesmo conteúdo se escritos durante ou após a pandemia provocada pelo alastramento da Covid-19. Com efeito, o livro chega em um momento dramático no mundo da política, da economia, da educação e da saúde. A pandemia vem impondo medo e insegurança a toda a sociedade, atingindo fortemente a educação escolar ao gerar uma infinidade de incertezas, indecisões, entre eles a ausência do ensino presencial para milhões de crianças e jovens da escola pública e, ao mesmo tempo, a exibição vergonhosa das desigualdades sociais e do seu impacto nas desigualdades educacionais ante a premência, nessa circunstancialidade, do ensino em plataformas virtuais. No campo político, defrontamo-nos com ameaças de toda ordem à universidade e às escolas, incluindo a privatização do ensino, com sinais evidentes de desmonte da educação pública, laica e gratuita, de desvalorização das funções sociais da escola e do trabalho dos professores.
Muitos professores universitários vêm acompanhando as mudanças no mundo contemporâneo associadas à globalização, às mudanças no sistema produtivo, às tecnologias e ao encurtamento do tempo e das distâncias em boa parte vinculadas às tecnologias digitais, assim como são sensíveis a esse forte abalo provocado pela pandemia. No entanto, é preciso que compreendam o impacto dessas mudanças na definição de finalidades educativas e no trabalho em sala de aula e convençam-se de que as aprendizagens já não acontecem apenas nas instituições de ensino mas, também, em outros espaços e situações, dando razão a pesquisadores que anunciavam a multiplicação de formas de educação em vários momentos da vida, nos quais as pessoas são expostas a várias formas de governo do eu, aumentando a importância da formação intelectual crítica.
Este livro põe precisamente o desafio de mobilizar os professores universitários para perspectivas de trabalho docente distintas do que é proposto na agenda neoliberal e do modelo oficial de constituição da docência no ensino superior. O ensino universitário precisa propiciar aos alunos os meios cognitivos e instrumentais para compreender, posicionar-se e lidar com os desafios postos pela realidade contemporânea. A introdução desse tipo de ensino implica tarefas como o desenvolvimento da razão crítica, ou seja, a capacidade de pensar a realidade e intervir nela, por meio de sólida formação cultural e científica; provimento de meios pedagógico-didáticos para o domínio de competências cognitivas que levem ao desenvolvimento do pensamento teórico-científico; fortalecimento da subjetividade dos alunos e a ajuda na construção de sua identidade pessoal, dentro do respeito à diversidade social e cultural e a formação para a cidadania solidária e participativa.
Desejo que este livro seja uma boa bússola na constituição de uma didática da educação superior e uma ajuda efetiva aos professores de ensino superior, formadores de professores e pesquisadores, na teoria pedagógica e nos meios de ensino, em sua responsabilidade intransferível de formação e desenvolvimento humano de seus alunos.
José Carlos Libâneo
Doutor em educação, professor da Pontifícia Universidade Católica de
Goiás, pesquisador em temas de teorias da educação, didática, políticas para a
escola e organização escolar
Goiânia, 6 de julho de 2020, no 113º dia de isolamento social em razão da pandemia por Covid-19
PARTE I
FUNDAMENTOS
1
A EDUCAÇÃO SUPERIOR PÚBLICA:
EXPANSÃO, DEMOCRATIZAÇÃO E NOVOS DESAFIOS
LUIZ FERNANDES DOURADO¹
KARINE NUNES DE MORAES²
INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objetivo analisar o processo de expansão e democratização da educação superior da rede federal, no período de 2003 a 2016, envolvendo os Governos Lula e Dilma, até o impeachment. Para isso o estudo elaborou uma série histórica com dados referentes ao número de matrículas nos cursos de graduação e pós-graduação presencial e a distância, a taxa de escolarização bruta e líquida e o processo de interiorização da educação superior. O estudo lança luz sobre a expansão pública federal em que pese a forte expansão privada no mesmo período. O artigo indica, à guisa de considerações finais, que as atuais políticas e ações do Ministério da Educação (MEC), por meio de políticas de ajustes fiscais, cortes orçamentários e secundarização do Plano Nacional de Educação (PNE), implicam retrocessos no processo de expansão e democratização da educação superior da rede federal, bem como nas dinâmicas político-pedagógicas e de gestão das instituições.
O período de 2003 a 2016 foi marcado por um forte processo de expansão da educação superior, com destaque para a intensificação contínua da expansão da rede federal, envolvendo o aumento dos indicadores quantitativos do sistema – entre eles: criação de novas instituições de ensino superior, de cursos de graduação, de vagas, matrículas, egressos, programas e cursos de pós-graduação – e a alteração no perfil social e racial estudantil, novos formatos institucionais, utilização da educação a distância, processos de interiorização e ampliação do ensino noturno. Soma-se a esse processo de expansão o aumento da pesquisa acadêmica institucionalizada articulada, sobretudo, aos programas de pós-graduação stricto sensu, indicados pelo número de títulos de mestrado e doutorado, número de bolsistas e bolsas concedidas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) de estímulo à pesquisa no país e no exterior. É importante destacar, nesse período, um conjunto de orientações normativas para a organização, regulação, gestão e expansão da educação superior que contribuíram para a alteração dos indicadores do campo.
Neste período, nos Governos Lula e Dilma³, sob o discurso da educação enquanto um direito social e em decorrência da necessidade imperativa de ampliação e democratização do acesso à educação superior, é delineada uma política explícita para sua expansão, envolvendo a implantação de programas e ações especialmente voltados para a expansão do sistema a partir de duas frentes articuladas, a saber, expansão da rede federal incluindo universidades e institutos federais (IF) e, paradoxalmente, ampliação e consolidação do financiamento ao setor privado por meio incremento do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) e da criação do Programa Universidade para Todos (PROUNI). Cabe destacar que o processo de consolidação e privatização da expansão da educação superior, que já estava em curso, consolidou-se, apesar da significativa expansão do setor público, no período em tela, como será demonstrado posteriormente ao analisar os dados da expansão da educação superior pública, em especial da rede federal. É fundamental ressaltar a complexidade desse processo: aliado à manutenção da crescente expansão privada, inaugura-se, paradoxalmente, um novo e efetivo ciclo de expansão da rede pública federal por meio de várias políticas e ações, com destaque para o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI).
1. POLÍTICAS DE REGULAÇÃO, EXPANSÃO E DEMOCRATIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR NO PERÍODO DE 2003 A 2016
Sob o discurso de ampliação e democratização do acesso à educação superior, é delineada uma política explícita para sua expansão envolvendo tanto programas especialmente voltados para a expansão da rede federal de educação superior como para a ampliação do atendimento de estudantes no setor privado, com base em demandas, sobretudo, dos setores mercantis da educação superior. Importante ressaltar ainda a tratativa diferenciada que foi reservada ao setor comunitário (BRASIL, 2013a). Em seu conjunto, as políticas, programas e ações gestadas e implementadas durante esse período apresentaram-se como um esforço para atingir a meta de elevação de matrículas nesse nível de ensino⁴.
O programa de governo Um Brasil para Todos: crescimento, emprego e inclusão social
, apresentado por Lula (SILVA, 2002), começou a sinalizar uma mudança de ordem conceitual e política no campo educacional, ao situá-la junto às políticas de inclusão social. A educação é entendida como instrumento de promoção da cidadania e, sobretudo nos dias de hoje, instrumento fundamental para o desenvolvimento e a inserção competitiva de qualquer nação no mundo
(SILVA, 2002, p. 44). Estabeleceu-se como meta o investimento na ampliação do atendimento em todos os níveis, etapas e modalidades da educação brasileira. No que se refere especificamente à educação superior, o programa apresenta como meta a ampliação significativa das vagas nas universidades públicas e a reformulação do sistema de crédito
educativo (SILVA, 2002, p. 46).
Tendo como diretrizes gerais a democratização do acesso e garantia de permanência; qualidade social da educação e implantação do regime de colaboração e democratização da gestão e, ainda, orientando-se pelos princípios de inclusão social e redução das desigualdades regionais, foi firmado como agenda de governo: a) a promoção da autonomia universitária e da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão nos termos constitucionais (BRASIL, 1988, artigo 207); b) o reconhecimento do papel estratégico das universidades, em especial as do setor público, para o desenvolvimento econômico e social do país; c) a consolidação das instituições públicas como referência para o conjunto das instituições de ensino superior (IES) do país; d) a expansão significativa da oferta de vagas no ensino superior, em especial no setor público e em cursos noturnos; e) a ampliação do financiamento estatal ao setor público, revisão e ampliação do crédito educativo e criação de programa de bolsas universitárias, com recursos não vinculados constitucionalmente à educação; f) a defesa dos princípios constitucionais da gratuidade do ensino superior público (BRASIL, 1988, artigo 206); g) o envolvimento das IES, em especial as do setor público, com a qualificação profissional dos professores para a educação básica, em cursos que garantam formação de alta qualidade acadêmico-científica e pedagógica e associem ensino, pesquisa e extensão (SILVA, 2002, p. 26-27).
Fundamentado nesses compromissos, o Governo Lula apresentou um conjunto de propostas voltadas para a expansão da educação superior e uma política específica para a rede federal. Entre as propostas destacaram-se: ampliação do número de vagas; aumento no número de mestres e doutores; promoção da autonomia universitária; revisão da legislação de escolha de dirigentes nas instituições federais; redução das desigualdades na oferta de cursos e vagas em termos regionais e de interiorização; promoção da oferta de cursos e vagas de graduação e pós-graduação em áreas afetas ao projeto nacional de desenvolvimento; criação de mecanismos, critérios e novas formas de acesso ao ensino superior; implantação de uma rede nacional de educação a distância; ampliação de programas de bolsas; implantação de um sistema nacional de avaliação; revisão dos planos de carreira de docentes e funcionários técnico-administrativos; criação de um novo sistema de crédito educativo⁵; criação de programa de bolsas universitárias (BRASIL, 2005b) no âmbito do Programa Nacional de Renda Mínima; estabelecimento de novo marco legal para as Fundações de Apoio Institucional criadas nas IES públicas.
Uma das importantes medidas tomadas pelo Governo Lula foi a instituição do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES) (BRASIL, 2004b), com o objetivo de assegurar processo nacional de avaliação das IES, dos cursos de graduação e do desempenho acadêmico de seus estudantes. Ressalta-se, neste contexto, a importância do artigo 2º:
Art. 2º O SINAES, ao promover a avaliação de instituições, de cursos e de
desempenho dos estudantes, deverá assegurar:
I – Avaliação institucional, interna e externa, contemplando a análise global e integrada das dimensões, estruturas, relações, compromisso social, atividades, finalidades e responsabilidades sociais das instituições de educação superior e de seus cursos;
II – o caráter público de todos os procedimentos, dados e resultados dos processos avaliativos;
III – o respeito à identidade e à diversidade de instituições e de cursos;
IV – a participação do corpo discente, docente e técnico-administrativo das instituições de educação superior, e da sociedade civil, por meio de suas representações.
Parágrafo único. Os resultados da avaliação referida no caput deste artigo constituirão referencial básico dos processos de regulação e supervisão da educação superior, neles compreendidos o credenciamento e a renovação de credenciamento de instituições de educação superior, a autorização, o reconhecimento e a renovação de reconhecimento de cursos de graduação [BRASIL, 2004b].
O SINAES avança face aos limites do Provão
(Exame Nacional de Cursos), criado em 1996, constituindo-se em referencial fundamental para os processos de regulação e supervisão da educação superior, ainda que não tenha se materializado plenamente⁶.
É importante ressaltar análises críticas do campo relativas às políticas para a educação superior, incluindo o SINAES, que contribuem para a compreensão do complexo cenário da educação superior no Brasil. Entretanto, é fundamental ressaltar a importância de análises realçando os avanços do SINAES e do decreto n. 5.773, de 9 de maio de 2006 (BRASIL, 2006a), a despeito de seus limites para a melhoria e maior organicidade dos processos de avaliação e regulação da educação superior.
Parte das análises teórico-acadêmicas do campo da educação superior sinalizam para a continuidade das políticas, em relação à lógica do governo anterior, encontrando expressão nas normas gerais para a inovação tecnológica, vinculada ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (BRASIL, 2004c), a que instituiu normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada (PPP) no âmbito da administração pública (BRASIL, 2004d) e a que instituiu o PROUNI (BRASIL, 2005b). Essas análises apontam mais para a continuidade que para descontinuidade com as políticas do governo anterior no setor e deslindam que, de modo direto ou indireto, elas condicionavam ou limitavam os eventuais avanços da proposta de fortalecimento do setor público e na regulação do sistema, em especial no setor privado/mercantil. É fundamental avançar, também, em análises que englobem diferentes atores e demandas, bem como os limites e potencialidades interpostos a um governo de coalizão. Tais análises poderiam se beneficiar das ciências sociais, em especial, da ciência política e da sociologia, apreendendo os contornos e limites da formação social brasileira e, portanto, da democracia e da configuração histórica do Estado⁷, sem prescindir nas análises da contextualização de políticas e tensões globais que interferem no campo da educação superior. De maneira geral, as análises evidenciam a complexificação do processo de diversificação e diferenciação institucional, expressos, sobretudo, na crescente mercantilização e, mais recentemente, na financeirização da educação superior. Esse processo não pode ser compreendido como mera decorrência das ações governamentais stricto sensu, sendo, também, expressão de agendas, compromissos e políticas transnacionais para o campo (DOURADO, 2017). Avançar na perspectiva analítica é ainda um grande desafio para a área.
A análise da expansão da educação superior tem indicado, portanto, um processo de complexificação do nível de ensino, englobando tanto os processos de reestruturação como os de reconfiguração. Entendemos que a resultante do processo de expansão, que, paradoxalmente, é produzida e ao mesmo tempo é promotora de processos de reestruturação da educação superior, é intrínseca à própria lógica de complexificação. Isso não quer dizer que nesse processo não ocorram alterações, ajustes e acomodações, mas que até mesmo isso faz parte do processo de expansão, que é dinâmico, não linear, cheio de tensões e conflitos de diferentes ordens (MORAES, 2013, p. 48).
A política de expansão da educação superior, além de ter impacto direto no crescimento quantitativo do sistema (número de instituições, cursos, vagas, matrículas, pessoal docente, discente e técnico-administrativo, entre outros), também tende a impactar na diversificação e diferenciação institucional, na redefinição de atribuições, funções e características de cada tipo organizacional, seu tipo de gestão e nível de autonomia face ao governo central, bem como o financiamento. Além desses aspectos, refere-se também à relação entre a oferta pública e privada desse nível de ensino, às formas de acesso e seleção, aos processos de expansão e interiorização, trabalho e progressão na carreira docente, natureza dos cursos de graduação e pós-graduação, entre outros. Considerando os limites deste artigo, analisaremos a expansão da educação superior pública, especificamente a rede federal, mesmo reconhecendo a importância da discussão sobre a expansão do segmento estadual e municipal. Pelo mesmo motivo não abordaremos a expansão privada no período supracitado e o modelo híbrido de seu financiamento por meio do FIES e PROUNI. A expansão do setor privado tem sido objeto de inúmeras análises, e a expansão da educação superior por meio da educação a distância e a expansão da educação superior estadual contam com alguns trabalhos de referência⁸.
A política de expansão da educação superior da esfera pública federal materializou-se por meio de um conjunto de políticas, programas e ações, sob o discurso de democratização do ensino superior público, gratuito e de qualidade. Entre eles destacam-se o Programa de Expansão das instituições federais de educação superior (IFES); o Processo de Integração de Instituições Federais de Educação Tecnológica, para constituição dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, no âmbito da Rede Federal de Educação Tecnológica; o REUNI e o Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB).
O Programa de Expansão das IFES tinha como meta a implantação de dez novas universidades federais e a criação ou consolidação de 49 campi nas cinco regiões brasileiras, com vistas a ampliar o acesso à educação superior, promover a inclusão social, reduzir as desigualdades regionais e reorientar a organização do ensino superior no Brasil
(BRASIL, 2006, p. 11). Com esse programa, estimava-se que a partir de 2008 haveria o ingresso de mais de trinta mil novos estudantes em cursos de graduação, em especial no interior dos estados, desconcentrando a oferta de cursos e vagas nesse nível de ensino, além de contribuir com o desenvolvimento local e regional, reduzindo as assimetrias entre e intrarregionais.
O decreto n. 6.095, de 24 de abril de 2007 (BRASIL, 2007a), estabeleceu diretrizes para o processo de integração das instituições federais de educação tecnológica, para fins de constituição dos institutos federais de educação, ciência e tecnologia (IFET), no âmbito da Rede Federal de Educação Tecnológica. Tal decreto previa a celebração de acordo entre instituições federais de educação profissional e tecnológica, agregação voluntária de centros federais de educação tecnológica (CEFET), escolas técnicas federais (ETF), escolas agrotécnicas federais (EAF) e Escolas Técnicas vinculadas a universidades federais, localizadas em um mesmo estado. Eles deveriam concentrar-se na oferta especializada de educação profissional e tecnológica em diferentes modalidades e níveis educacionais, incluindo programas de pós-graduação lato e stricto sensu⁹ cujas ações passassem pela formação e qualificação de profissionais para os diversos setores da economia, em estreita articulação com os setores produtivos e a sociedade, estimulando a geração e adaptação de soluções técnicas e tecnológicas a demandas sociais e peculiaridades regionais. Na análise de Pires (2005), as instituições federais de educação tecnológica passariam a assumir um papel de destaque na consecução das políticas de expansão, bem como no redimensionamento da formação do trabalhador. A lei n. 11.892, de 29 de dezembro de 2008