Institucionalização do Enem em Perspectiva Crítica
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Institucionalização do Enem em Perspectiva Crítica - Maria Angélica Pedra Minhoto
Editora Appris Ltda.
1ª Edição - Copyright© 2017 dos autores
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COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO - POLÍTICAS E DEBATES
Para Laurindo.
[...] a formação cultural é justamente aquilo para o que não existe à disposição hábitos adequados; ela só pode ser adquirida mediante esforço espontâneo e interesse
(Adorno)
Fugas, contraponto, Eroica, confusão causada por modulações excessivamente coloridas
, – no fundo tudo aquilo parecia-nos um sussurro de fábulas, mas gostávamos tanto de ouvi-lo com os olhos arregalados, assim como crianças espiam coisas incompreensíveis, virtualmente impróprias para elas. Isso nos diverte então muito mais do que assuntos mais corriqueiros, mais adequados, mais correspondentes a nosso nível. Crer-me-ão, se digo que essa é a maneira mais intensa, mais soberba, quiçá mais propícia, de aprendermos algo – a aprendizagem antecipadora, a que passa por cima de vastas áreas de ignorância?
(Thomas Mann, Doutor Fausto)
APRESENTAÇÃO
Este livro apresenta os resultados de minha pesquisa de mestrado, realizada entre os anos de 2001 e 2003, quando o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) era ainda uma iniciativa recente e sem a importância hoje conhecida, tanto em âmbito nacional quanto internacional. Apesar disso, entendo que as questões aqui tratadas encontram ainda muita ressonância para aqueles interessados em aprofundar as análises dos rumos das políticas educacionais, principalmente no que se refere aos exames e avaliações em larga escala.
Meus objetivos naquele momento eram situar a política nacional de avaliação dos sistemas de ensino, identificando as funções do Enem; realizar um mapeamento da correlação de forças entre os diferentes agentes responsáveis pela concretização das três edições iniciais do exame; compreender a concepção de conhecimento na qual o Enem se assentava e indicar, por meio da análise de uma amostra de questões, o que o exame estava medindo para decifrar a relação entre a prova e a matriz de competências e habilidades que lhe dava origem.
Como chave teórica, respaldei-me em estudos desenvolvidos por autores da primeira geração da Escola de Frankfurt, especialmente os que tratam da ideologia da racionalidade tecnológica e da educação. A adoção dessa referência deveu-se à análise crítica empreendida por essa vertente do pensamento filosófico-social em relação à formação e ao desenvolvimento da razão humana. A crítica dos autores nunca teve como propósito desqualificar a razão, mas recuperar seus princípios e promessas, contrapondo-os à sua verdade imanente e aos limites de seu desenvolvimento ao longo da história. Os frankfurtianos da primeira geração reconheceram a importância do desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e tecnologias para a libertação dos indivíduos, porém indicaram que estão contidas, neste mesmo desenvolvimento, as tendências regressivas de autodestruição da razão. Identificaram uma crise na formação cultural contemporânea, não devida apenas às insuficiências dos sistemas de educação e de seus métodos de ensino, nem passível de ser resolvida por reformas pontuais circunscritas à esfera educacional. Vinculam tal crise aos inúmeros aspectos determinados pela relação que se estabelece entre a educação e a própria estrutura social.
Tendo em vista essa compreensão, realizei a análise dos momentos iniciais de institucionalização do Enem, discutindo a organização técnica do exame, a sua expressão teórica (a matriz que lhe dá origem), as principais características da política de avaliação de sistemas educacionais e a cultura de avaliação fomentada pelos atores que idealizaram e operacionalizaram os exames em larga escala naquele momento.
Cheguei à conclusão de que a ênfase do exame na aferição de competências e habilidades e seu compromisso declarado com a interdisciplinaridade e a contextualização de situações-problema apareciam como elementos que assimilaram parte das críticas dirigidas por inúmeros especialistas à chamada avaliação tradicional. Entretanto, esses elementos inovadores, expressos na matriz do exame, não se concretizaram em uma nova prática educacional capaz de formar indivíduos autônomos, críticos e criativos, tendo em vista o modo concreto de funcionamento dos sistemas educacionais na sociedade contemporânea. A crescente ausência de tensão entre as práticas pedagógicas e as demandas da racionalidade tecnológica acabou fazendo com que a dimensão reflexiva da educação, a interdisciplinaridade e a contextualização operassem de um modo deformado, contrariando as expectativas subjacentes ao exame.
Maria Angélica Pedra Minhoto
PREFÁCIO
Ao reler a pesquisa realizada por Maria Angélica Pedra Minhoto, intitulada Avaliação educacional no Brasil: crítica ao Exame Nacional do Ensino Médio, oportunamente trazida ao público, duas convicções ficaram sedimentadas: uma, específica, refere-se ao tema da pesquisa – a avaliação em educação – e ao objeto de estudo delimitado – o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em suas primeiras três versões. A outra, geral, diz respeito à relevância, consistência e ao valor de verdade do conhecimento científico.
A avaliação educacional é, sem dúvida, um dos temas contemporâneos mais estudados e debatidos na esfera da educação brasileira. O conceito adquiriu uma tal abrangência que atualmente ele é aplicado para identificar tanto as provas elaboradas para verificar o rendimento escolar do aluno em sala de aula – mensal, bimestral, semestral e anual –, quanto as denominadas avaliações em larga escala, as quais visam obter a qualidade
do ensino por meio do desempenho do aluno aferido. Desde a adoção desse tipo de avaliação, com base em suas habilidades e competências, organizadas como matriz de referência para o sistema nacional de avaliação da educação básica, analisada detidamente na pesquisa em pauta. Essa abrangência expandiu-se também longitudinalmente alcançando todos os níveis ou graus de ensino, incluindo a educação infantil, os ensinos fundamental, médio e superior, sem contar os níveis após a graduação. Claro está que a expansão de estudos e pesquisas é indissociável da diversificação objetiva e das modificações introduzidas nas versões vigentes da multiplicidade de exames locais e nacionais, dos quais mencione-se a título de exemplo: Provinha Brasil; Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e sua versão paulista, o Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp); o Exame Nacional de Curso (ENC), mais conhecido como Provão
e o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A distinção apresentada por vários especialistas entre avaliação de sistema e avalição educacional para distinguir aquelas denominadas em larga escala não ajuda muito para esclarecer os impasses persistentes da educação brasileira.
Acrescente-se que a insistência de muitos práticos
, técnicos, administradores e advogados da coisa, em nomear como sistema
a finalidade, os procedimentos técnicos, os destinatários da avaliação, os desdobramentos de cada exame isoladamente, além de não caracterizar propriamente um sistema, não tem contribuído para superar a dispersão de instrumentos concorrentes entre si ou a superposição de uns com os outros. Apenas em 2016, conforme estabelecido no Plano Nacional de Educação (2014-2024), em vigor, resolveu-se instituir de fato o Sistema Nacional de Avaliação, como uma de suas prioridades, visando articular o que está disperso, em relação à educação básica. Esse entendimento sugere que a avaliação educacional permanece, ainda, mais um setor quase que independente de outras esferas igualmente importantes da educação. Lembrando que somente o conjunto articulado de todas elas permitiria a formação de um sistema nacional de educação, na acepção que o termo merece.
À medida que o Enem é analisado com riqueza de detalhes em relação aos aspectos técnicos de sua composição, ao mesmo tempo que tais aspectos são relacionados à formação do indivíduo, como finalidade precípua da educação, e à teoria social que investiga a sociedade administrada do capitalismo tardio, a autora consegue, de um lado, evidenciar o caráter progressivo e regressivo do exame. Progressivo, porque não se trata de simplesmente recusar as avaliações nacionais, nem o núcleo racional que elas contêm, e regressivo, porque exclui, pela forma e conteúdo do que é avaliado, o principal elemento da avaliação: o sujeito. A ilustração, da matriz de referência sob a forma de um pentagrama contendo tão somente traços e linhas, com cinco competências e 21 habilidades – e pouco importa se as competências foram alteradas ou se as habilidades somam atualmente mais de uma centena –, contrasta de modo sintomático com o Homem Vitruviano de Leonardo Da Vinci, representado pela figura de um homem inscrito entre um círculo e um quadrado. Neste, o homem é meticulosamente esquadrinhado, do pentagrama o homem foi expulso.
A segunda convicção decorreu de uma pergunta simples: para além da atualidade do tema – o Enem e a avaliação educacional – qual é o valor de verdade científica da pesquisa de Maria Angélica, finalmente, trazida a lume? Em tempos de relativismo fácil, de aversão à teoria, de presentismo renitente que renega o passado e o futuro e da ideologia como mentira manifesta que pretende apresentar fatos alternativos
aos fatos insofismáveis, a crítica ao exame nacional do ensino médio é um antídoto, na medida em que os principais resultados obtidos com base na análise de conteúdo dos itens das versões de 1998; 1999; 2000; tanto quanto a desdobramentos do exame sobre o ensino médio e repercussões sobre o ensino superior permanecem válidos, certamente em virtude da consistência teórica e empírica da investigação. Em suma, a validade da pesquisa é justificada, porque relaciona com consistência a reciprocidade entre a estrutura e a lógica da sociedade, as quais permanecem substantivamente as mesmas, diga-se, e os meios e fins dos exames nacionais, apesar das várias modificações e oscilações circunstanciais frequentemente introduzidas, sejam elas operacionais ou relativas às finalidades de seus usos. Ao final da leitura, é irresistível registrar que a autora conseguiu repor concretamente uma conclusão tão decisiva quanto importante da teoria social que a orientou: crítica do conhecimento (científico, filosófico, artístico) é crítica da sociedade e vice-versa.
Dr. Odair Sass
Doutor em Psicologia Social.
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação:
História, Política, Sociedade da PUC-SP
Sumário
Capitulo 1
O Enem no Sistema Nacional de Avaliação
1.1 O campo de estudos da avaliação educacional
1.2 A avaliação educacional como política pública
1.3 O Sistema Nacional de Avaliação
1.4 O Exame Nacional do Ensino Médio
1.5 A cultura de avaliação
Capítulo 2
A Matriz de Competências e o Instrumento Cognitivo de Avaliação
2.1 Entre aferição de resultados e indução de mudanças: avaliar para quê?
2.2 A Lei de Diretrizes e Bases da Educação
2.3 As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
2.4 Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
2.5 As Matrizes Curriculares de Referência para o Saeb
2.6 Análise dos objetivos do Enem
2.7 Crítica do instrumento cognitivo de avaliação
considerações finais
Documentação
Referências
Capitulo 1
O Enem no Sistema Nacional de Avaliação
1.1 O campo de estudos da avaliação educacional
A prática da avaliação educacional está, nos dias atuais, em vigorosa expansão, tanto nos limites da sala de aula, centrada no aluno e na verificação de seu desempenho, quanto fora desses limites, como no caso das avaliações organizadas para aferir o grau de consecução dos objetivos dos sistemas educacionais, ou mesmo dos concursos vestibulares e, com isso, acaba por desempenhar um papel central na formação dos alunos, produzindo marcas na relação