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Mário de Andrade: Exílio no Rio
Mário de Andrade: Exílio no Rio
Mário de Andrade: Exílio no Rio
E-book315 páginas3 horas

Mário de Andrade: Exílio no Rio

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Sobre este e-book

"Naquele brando inverno carioca de 1938, Mário de Andrade dava os primeiros passos de uma vida nova. Tinha anunciado à família que saía de férias, mas era mudança mesmo. Precisava fugir de São Paulo custasse o que custasse, embora com o sacrifício de arrostar pela primeira vez, já quase aos 45 anos, o afastamento do convívio materno que o aconchegava.

Ir ao Rio de Janeiro ia sempre, com alvoroço de menino. Achava maravilhosa a natureza; a gente o surpreendia e encantava. Cidade enfeada pela miséria, mas rica de humanidade, amava-a à distância, de amor platônico, feito de furtivos contatos. Numa de suas breves temporadas, assistiu ao carnaval carioca. A festa popular inspirou um poema em que botava pra fora sua "frieza de paulista", seus "policiamentos interiores". No Rio, convivia alegre com amigos escritores e artistas, entrava pela noite em discussões, lia e ouvia poemas nascidos de uma nova estética da qual ele, já conhecido como o "papa do Modernismo", era pioneiro. Quem sabe, pensava, não poderia morar lá?

Desta vez trazia uma mágoa muito funda, causada pelo naufrágio de um projeto a que se dedicara todo durante três anos, à frente do Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo. E essa amargura foi o elemento aglutinador de dores esparsas do corpo e da alma, sorrateiramente acumuladas.

Até então costumava dizer, descuidado: 'Eu sou feliz!'. Mas de repente acontecera aquele grande dissabor, que o punha desarvorado diante das armadilhas do destino. Tinha ideia formada: considerava o destino uma conquista, realização perfeitamente controlada de "tendências pessoais", e não trama inelutável dos fatos. Agora, desmoronada essa certeza, tudo ficava muito confuso.

O jeito foi a fuga, o exílio no Rio."
IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de jul. de 2017
ISBN9788582178577
Mário de Andrade: Exílio no Rio

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    Mário de Andrade - Moacir Werneck de Castro

    Mário de AndradeMário de AndradeMário de Andrade - Exílio no Rio

    Copyright © 2016 Herdeira de Moacir Werneck de Castro

    Copyright © 2016 Autêntica Editora

    2ª edição (1ª edição Rocco, 1989)

    Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

    editora responsável

    Maria Amélia Mello

    editora assistente

    Cecília Martins

    assistente editoral

    Rafaela Lamas

    revisão

    Sônia Peçanha

    capa

    Diogo Droschi

    projeto gráfico de miolo e diagramação

    Guilherme Fagundes

    foto da capa 
Arquivo IEB-USP, Fundo Mário de Andrade, código do documento: MA-F-1872.

    foto da contracapa e mioloArquivo IEB-USP, Fundo Mário de Andrade, código do documento: MA-F-1180.

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Castro, Moacir Werneck de,

    Mário de Andrade : exílio no Rio / Moacir Werneck de Castro. -- 2. ed. -- Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2016.

    ISBN 978-85-8217-856-0

    1. Andrade, Mário de, 1893-1945. - Correspondência 2. Andrade, Mário de, 1893-1945. - Residências e lugares habituais 3. Castro, Moacir Werneck de, 1915- - Correspondência 4. Escritores brasileiros 5. Rio de Janeiro (RJ) - Vida intelectual I. Título.

    16-01848 CDD-869.98

    Índices para catálogo sistemático:

    1. Escritores brasileiros : Literatura brasileira 869.98

    Rio de Janeiro

    Rua Debret, 23, sala 401

    Centro . 20030-080

    Rio de Janeiro . RJ Tel.: (55 21) 3179 1975

    www.grupoautentica.com.br

    Belo Horizonte

    Rua Carlos Turner, 420, Silveira . 31140-520 Belo Horizonte . MG

    Tel.: (55 31) 3465 4500

    São Paulo

    Av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, Horsa I 23º andar . Conj. 2301 . Cerqueira César . 01311-940 São Paulo . SP

    Tel.: (55 11) 3034 4468

    A Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza.

    APRESENTAÇÃO

    Em anos passados, deixei esparsas algumas impressões sobre o meu convívio com Mário de Andrade durante o período em que morou no Rio de Janeiro, entre 1938 e 1941. O projeto deste livro surgiu originariamente da ideia de reuni-las num preâmbulo às cartas que ele me mandou, já de volta à sua cidade de São Paulo.

    No começo de 1988, uma bolsa providencial me proporcionou condições de reformular em bases mais amplas esse projeto e trabalhar nele em regime de dedicação integral. Não se trataria de deixar solta no espaço e no tempo apenas uma fatia biográfica. As causas profundas do exílio no Rio se iluminariam com uma breve visão retrospectiva da vida e obra do escritor até as vésperas dos 45 anos, quando ocorreu aquela dramática reviravolta em seu turismo vital. E, como complemento necessário, seriam abordados os anos terminais em São Paulo, para melhor situar o clima das cartas que me enviou.

    Se assim não procedesse, eu estaria apresentando uma imagem parcial do homem que um dia se definiu no famoso verso eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta – espécie de marca registrada da sua personalidade, hoje parte da rotina dos estudos críticos andradinos. Era múltiplo, e como! Poucos expoentes da cultura brasileira reuniram tantos e tão variados títulos: poeta, romancista, contista, crítico de artes plásticas e de literatura, musicólogo, doutrinador de estética, folclorista, etnólogo, defensor do patrimônio histórico e cultural, professor, cronista, jornalista, fotógrafo... Múltiplo na atividade intelectual e na complexidade dos aspectos de sua personalidade, que tiveram relevo diferenciado ao longo das várias fases de sua vida.

    Revisitar Mário de Andrade me trouxe grandes emoções. Esse mergulho de volta aos anos de juventude suscitava um estado de espírito capaz de levar tanto ao saudosismo como à melancolia, ou à pieguice. Havia, de qualquer modo, o risco do subjetivismo, nascido da relação pessoal com o personagem. Em que medida o afeto e a admiração pelo amigo poderiam conduzir à quebra do compromisso de ser rigorosamente fiel à verdade?

    O presente livro é o coroamento de um esforço tenaz nesse sentido de fidelidade. Empenhei-me em oferecer, mais que o meu simples testemunho – prejudicado pela distância no tempo e pelas falhas da memória –, um levantamento de contribuições indispensáveis. Realizei entrevistas com pessoas que privaram da intimidade do autor de Macunaíma. Pesquisei em várias fontes uma série de dados adicionais. Depoimentos de Mário, disseminados em cartas para diversos destinatários – algumas inéditas – ou em crônicas de jornal e textos de caráter autobiográfico, me serviram como importante material de apoio.

    Aventurei-me também a uma interpretação psicológica voltada para esclarecer aspectos da obra do escritor, especialmente da poesia. Tento explicar o seu drama íntimo, o vulcão de complicações de uma personalidade feita, como dizia, de eus em farrancho, e marcada por insuspeitados sofrimentos.

    Busquei, ao mesmo tempo, contribuir para a clarificação de suas posições político-ideológicas, que culminaram numa fase de intenso ânimo participativo e crescente condenação aos donos da vida. Para o reforço dessa tendência, terão concorrido em boa medida os novos enfoques da realidade social e política propiciados pela vida no Rio de Janeiro e, em parte, pela convivência com os moços da Revista Acadêmica, grupo do qual fazíamos parte Murilo Miranda, Lúcio Rangel, Carlos Lacerda e eu. Alguns de nós lhe trazíamos surpreendentes experiências de engajamento em lutas revolucionárias; nossos estilos de vida lhe ofereciam um espetáculo estranhíssimo, de um mundo novo, quase incompreensível, como escreveu.

    Tudo está situado dentro de um contexto histórico: a vida da então capital da República, tão contrastante com a de São Paulo, a atmosfera do país e do mundo naqueles anos de Estado Novo, de ascensão do fascismo no plano internacional e de início da Segunda Guerra Mundial.

    O livro se divide em duas partes: a primeira, de minha autoria; a segunda, constituída pelas cartas de Mário de Andrade, sobre cuja importância no conjunto de seu epistolário o leitor julgará por si mesmo. Ambas as partes trazem notas explicativas, no final de cada capítulo e de cada carta. Ao não colocá-las em pé de página, segui o critério adotado por Mário de Andrade no livro sobre o pintor-padre Jesuíno do Monte Carmelo. Justificava ele: A verdade é que, às vezes, em duas frases de texto vêm três notas longas de duas e três páginas de datilografia, o que torna impossível uma ordenação tipográfica aceitável. Num ou noutro capítulo, as minhas notas, que normalmente deveriam ser curtas, se estenderam demais.

    Na transcrição das cartas, o critério geral foi atualizar a ortografia. Assim, não se mantiveram as idiossincrasias de Mário de Andrade: milhor, si, sinão, siquer, conciente, e a acentuação à portuguesa de palavras proparoxítonas como quilómetro. Para captação fiel da sonoridade da frase, foram, contudo, preservados brasileirismos como álcol, aspeto, nétares, sube. Em respeito ao ritmo da construção, mantiveram-se os substantivos compostos e as locuções por ele criadas, como apesar-de, de-fato, de-noite, maneiras-de-ser, estado-de-poesia. Conservou-se a sílaba tônica fechada em folclôre, à inglesa, como ele pronunciava; e, por fim, a pontuação. O mesmo critério não pôde ser sistematicamente seguido nas citações da primeira parte do livro, onde os textos provêm de edições nem sempre fidedignas.

    Muitos são os agradecimentos a deixar consignados. A família de Mário de Andrade, representada por Carlos Augusto de Almeida Camargo, autorizou a divulgação das cartas e pôs a meu alcance as informações de que necessitava. Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza me deram uma inestimável contribuição documental e não menos valiosa ajuda crítica na discussão de algumas passagens deste trabalho; a eles, toda a minha gratidão. Numerosos subsídios colhi também do vasto conhecimento de Telê Porto Ancona Lopez sobre a biografia e a obra de Mário de Andrade; foi quem me guiou através do precioso arquivo disponível no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Conversei com dois coetâneos de Mário, já falecidos, Francisco Mignone e Antônio Bento; a eles a minha saudade. Yedda Braga Miranda, Maria Amélia Buarque de Hollanda e Maria Portinari me auxiliaram, com muita sensibilidade, na reconstituição da figura humana do nosso amigo. Contei com depoimentos e/ou sugestões de Cícero Dias, Oscar Niemeyer, Bruno Giorgi, Nino Gallo e Carlos Scliar. Ajudaram-me, também, Carmen Portinho, Homero Senna e Carlos Alberto Barreto. Abusei da boa vontade de amigos, pedindo que lessem a primeira versão deste livro; daí me vieram as opiniões muito importantes – além das de Gilda e Antonio Candido, já citados – de Guilherme Figueiredo, Mário da Silva Brito, Francisco de Assis Barbosa, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Darcy Ribeiro e Rubem Braga. Obviamente, nenhum deles é responsável pelo produto acabado.

    O trabalho de Darcilene de Sena Rezende, que datilografou fielmente os originais das cartas, foi relevante. O Projeto Portinari pôs à minha disposição documentos de grande valia.

    Na pessoa de José Mindlin, agradeço a contribuição de Vitae – Apoio à Cultura, Educação e Promoção Social, cujo patrocínio me permitiu a elaboração, sem sufoco, do meu livro.

    Não sendo este um trabalho para eruditos, mas de alguém que aspira a ser lido por um público mais amplo, peço que me perdoem as carências de rigor metodológico e de instrumental teórico. Conforta-me a ideia de que o próprio Mário de Andrade não se enfeitava com esses adornos, tão comuns nas teses acadêmicas atuais. Ele, o moderno-mor, nem chegou a usar a palavra mágica modernidade...

    PRIMEIRA PARTE EXÍLIO NO RIO

    O maior tempo da nossa existência nós o empregamos em nos escondermos do que somos terrestremente.

    Mário de Andrade (Do cabotinismo, 1939)

    I. Um Rio que passou em sua vida

    Viverei com o Catete [...]. Há lá cousas esquisitas...

    Machado de Assis

    (Esaú e Jacó)

    Naquele brando inverno carioca de 1938, Mário de Andrade dava os primeiros passos de uma vida nova. Tinha anunciado à família que saía de férias, mas era mudança mesmo. Precisava fugir de São Paulo custasse o que custasse, embora com o sacrifício de arrostar pela primeira vez, já quase aos 45 anos, o afastamento do convívio materno que o aconchegava.

    Ir ao Rio de Janeiro ia sempre, com alvoroço de menino. Achava maravilhosa a natureza; a gente o surpreendia e encantava. Cidade enfeada pela miséria, mas rica de humanidade, amava-a à distância, de amor platônico, feito de furtivos contatos. Numa de suas breves temporadas, assistiu ao carnaval carioca. A festa popular inspirou um poema em que botava pra fora sua frieza de paulista, seus policiamentos interiores. No Rio, convivia alegre com amigos escritores e artistas, entrava pela noite em discussões, lia e ouvia poemas nascidos de uma nova estética da qual ele, já conhecido como o papa do Modernismo, era pioneiro. Quem sabe, pensava, não poderia morar lá?

    Desta vez trazia uma mágoa muito funda, causada pelo naufrágio de um projeto a que se dedicara todo durante três anos, à frente do Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo. E essa amargura foi o elemento aglutinador de dores esparsas do corpo e da alma, sorrateiramente acumuladas. Até então costumava dizer, descuidado: Eu sou feliz!. Mas de repente acontecera aquele grande dissabor, que o punha desarvorado diante das armadilhas do destino. Tinha ideia formada: considerava o destino uma conquista, realização perfeitamente controlada de tendências pessoais, e não trama inelutável dos fatos. Agora, desmoronada essa certeza, tudo ficava muito confuso.

    O jeito foi a fuga, o exílio no Rio.

    Um Rio que passou em sua vida durante três anos, bem diferente do que conhecera como turista aprendiz, despreocupado hóspede de hotel. Outra cidade, com seu cotidiano cheio de incógnitas e desafios. Grande metrópole, capital da República, centro das decisões nacionais, ganhava ainda por cima uma assustadora densidade política como capital do Estado Novo, presidido por Getúlio Vargas.

    Mário deixava a terra natal roído de inquietações, mas sem o menor amargor regionalista. Escrevia de lá a Rodrigo Melo Franco de Andrade, às vésperas da partida: Seria ridículo afirmar que não gosto de ser paulista, mas seria verdadeira pusilanimidade afirmar que São Paulo me satisfaz [...] Quero ir embora, quero ir embora. O resto, depois, verei.

    Vida nova, pois. Como emprego, ia ser professor de História e Filosofia da Arte e diretor do Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal. Títulos altissonantes, aos quais não correspondiam as modestas proporções da UDF, precariamente instalada num prédio de escola pública, ao lado do palácio do Catete.

    Antes de escolher casa, ficou por uns dias no hotel Natal, no centro, como das vezes anteriores. Só mesmo quando alugasse apartamento – escrevia de lá para a mãe – é que se sentiria morando no Rio. Mas estivesse sossegado, logo iria beijá-la, o Rio era tão perto.¹

    No desconforto do hotel, tomava notas para a aula inaugural, com a ajuda dos poucos livros e fichas que trouxera. E havia requisitos burocráticos a atender. Por exemplo, para tomar posse, naquele regime onde os militares mandavam muito, tinha de apresentar não somente a caderneta de reservista como um atestado formal da Região de São Paulo. Pedia com urgência a papelada. Aos efeitos regulamentares, era inaceitável um documento em forma de livro de sua autoria, o Losango cáqui. Valia para a posteridade, mas não para as autoridades, aquele testemunho comprobatório de sua passagem pelo serviço militar, em termos que se tornariam famosos:

    Mário de Andrade, intransigente pacifista, internacionalista amador, comunica aos camaradas que bem contravontade, apesar da simpatia dele por todos os homens da Terra, dos seus ideais de confraternização universal, é atualmente soldado da República, defensor interino do Brasil.²

    Um paulistano no Catete

    Em meados de julho de 1938 instalou-se no apartamento 46, no quarto andar do edifício Minas Gerais, à rua Santo Amaro, 5. Era um arranha-céu de dez andares, que dominava imponente a velha sobradaria 
em redor. Ficava na esquina da rua do Catete (onde antes funcionara uma pensão de mulheres), a umas quatro quadras apenas da universidade, distância de cobrir a pé.

    Morar sozinho era uma excitante novidade para o irremediável solteirão, com toda a falta que faziam os seus. E ainda por cima morar em apartamento, palavra naqueles anos carregada de emanações de vício e mistério. Segundo os romances urbanos do tempo, eram quase sempre refúgios do pecado, garçonnières penumbrosas, covis de má fama.

    Antecipando-se às preocupações da mãe, mandava dizer que no prédio residia um casal amigo; a senhora iria ajudá-lo nas arrumações domésticas. Estava pensando no compositor Francisco Mignone e sua mulher, a pianista Liddy Chiaffarelli, só que não moravam mais lá. Mignone é quem lhe indicara o edifício. Ali tinha vivido também, pouco antes, o jornalista e escritor Luís Martins, autor de um romance, Lapa (proibido pela polícia do Estado Novo por imoral), um boêmio carioca que fugira para São Paulo, onde casou com Tarsila do Amaral, a musa do Modernismo.

    O apartamento constava de saleta, sala, quarto, banheiro e cozinha, sem área de serviço nem dependências de empregada. Ocupava 65 metros quadrados. O aposento maior, arrumado para living e escritório, tinha uma parede externa que se arredondava em semicírculo sobre a esquina. Da janela se podia contemplar a folhagem vertiginosamente densa da Glória e da praça Paris, de onde escorria uma sombra candente, toda medalhada de raios de sol; depois, a baía de Guanabara e, além, a Serra dos Órgãos. Os edifícios novos do Castelo, todos com a média de dez andares, formavam a vanguarda da invasão dos arranha-céus que, embora ainda tímida, despertava protestos dos precursores do conservacionismo, como o jornalista e futuro acadêmico Raimundo Magalhães Jr.

    O andar não muito alto proporcionava ao novo inquilino o espetáculo inusitado do movimento na rua. Da janela, via desfilar na esquina do Catete a típica humanidade carioca, de uma pobreza que as moças disfarçavam com seus vestidinhos caprichados. Via, e se admirava: Como é que esse pessoal consegue um bom humor que pipoca em malícia e graças!. Anotava também a leviandade escandalosa do mar próximo, responsável pela presença de banhistas quase nus na esquina perfeitamente urbana.

    O edifício Minas Gerais tinha vizinhanças surpreendentes, que, como dizia um literato chegado a francesismos, hurlaient de se trouver ensemble. A uns cem metros, rua Santo Amaro acima, o Clube High Life era cenário de esfuziantes bailes carnavalescos – com generosa sobra de damas folionas, pois cada cavalheiro pagante tinha direito a entrar com duas – e, no resto do ano, antro de jogatina. Quase à mesma distância, pela rua do Catete, em direção ao centro, erguia-se o palácio São Joaquim, de onde o cardeal-arcebispo D. Sebastião Leme zelava apreensivo pelo seu rebanho, exposto à influência nefasta dos licenciosos costumes modernos. Mais adiante, na rua Benjamin Constant, o Templo Positivista, de bonita arquitetura neoclássica, imitação do Trianon de Paris, acolhia os escassos fiéis remanescentes da religião de Auguste Comte, ostentando sobre o portão principal o funéreo lema segundo o qual os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos.

    A poucos passos da nova residência do escritor paulistano ficava a Taberna da Glória, que se tornaria o seu ponto de conversas noturnas – um bar-restaurante com cadeiras na calçada, de freguesia nada canônica, sobretudo de madrugada, quando recebia grupos de farristas e mariposas da noite, egressos dos cabarés e prostíbulos das cercanias.

    A poucos quarteirões começava o famoso bairro boêmio da Lapa, onde tinham pontificado Villa-Lobos, Di Cavalcanti, Jayme Ovalle, Noel Rosa, Orlando Silva e outras figuras do mundo intelectual e artístico. Reduto da malandragem, tinha como expressão mais célebre, nesse terreno, a Madame Satã, um homossexual assumido, notável pela valentia máscula demonstrada nas brigas com a polícia.

    Naquele bairro, batizado por Luís Martins de Montmartre carioca, moravam Manuel Bandeira e Cândido Portinari. O primeiro, na rua Morais e Vale, de onde avistava o beco – das Carmelitas; Portinari, na rua Teotônio Regadas. Ambos vizinhavam em boa paz com os bordéis das ruas Conde de Lage, Taylor e Joaquim Silva, as rues chaudes onde a nota chique era dada pelas francesas; muitas delas, com hábil e gracioso savoir-faire, daí a pouco passavam as mundanas de alto bordo, modistas, concubinas de políticos ou senhoras casadas.

    Para além do largo da Lapa, na avenida Mem de Sá, aquele território mal-afamado ganhava frequência menos braba. Tinha bares de chope, onde músicos meio fantasiados tocavam valsas vienenses e melodias zíngaras: o Danúbio Azul, o Túnel da Lapa, o Viena-Budapeste, o 49 da francesa Raymonde, especialista em siris. Os cabarés com damas de vestido longo se inflamavam ao som de tangos de Gardel e Discépolo, que os pares dançavam com elaborados floreios.

    No Catete, para as bandas do largo do Machado, numerosas casas assobradadas abrigavam pensões de estudantes, pequenos empregados, casais em começo de vida comum, gente instável de moradia, segundo o cronista de Filhos da Candinha. Uma delas, na rua Correia Dutra, 164, hospedou num só quarto Graciliano Ramos, a mulher Heloísa e duas filhas, ao tempo em que escreveu Vidas secas. Ali moraram também Rubem Braga e Lúcio Rangel, e morava eu quando Mário de Andrade chegou ao Rio. Defronte, viviam as irmãs Linda e Dircinha Batista; ao lado, funcionava um rendez-vous de tarifa inacessível, dirigido por uma certa madame Judite.

    Estranho cenário para um paulistano de decoroso padrão pequeno-
burguês, que em mocinho acompanhava procissão, de opa, segurando vela, e só tinha experiência de vida num lar bem estruturado. Fazia suas farras, é verdade, mas como filho-família. A confusão do Rio, vista de perto, o deixava inquieto. Quanta gratuidade descuidosa, quanta leviandade impregnando os costumes, até mesmo a vida literária! Matutava: o espírito paulistano podia ser pesadão, sem graça, mas lá a gente sabia a quantas andava; ao passo que esses cariocas eram completamente imprevisíveis...

    Rotina carioca

    Providências de arrumação da casa encheram os primeiros dias do transplantado. Divertia-se comprando artigos domésticos, roupa de cama, travesseiro, talheres, vassoura, lata de lixo e o indispensável veneno contra baratas. Precisava mandar vir de São Paulo uns poucos móveis, livros (uma pequena parte da vasta biblioteca, o mais necessário), tapetes e objetos de decoração, para tornar habitável o apartamento. O secretário José Bento Faria Ferraz, o Zé Bento, ia anotando de lá as remessas. De uma vez foram mandados sete quadros (os que mais gostava, entre os quais o seu retrato por Segall e A família do fuzileiro naval, de Guignard, e A colona, de Portinari), duas estatuetas, uma dúzia de copos de cristal, uma máquina para banhos de luz, cinco almofadas, um pijama de seda.

    Aos poucos, a nova moradia tomava jeito. Ao gosto do dono, que só sabia viver num ambiente com a sua marca. O confort moderne, como se usava dizer, alcançou nível decente com o telefone e uma geladeira pequena, tipo mascote.

    Por sorte arranjou uma boa empregada. Dona Maria dormia fora; era exemplar na limpeza e servia uma comida caseira bem gostosa. Mas ainda assim as guloseimas preparadas pela mãe faziam falta. Um dia chegaram uns doces, de avião, que ele foi esperar no aeroporto Santos Dumont. Dona Maria adorava o patrão. Seu Mário, às vezes, dava demonstração de ter dentro dele um desgosto muito grande, mas falava macio com ela, tão bom.

    De natural organizado, programou uma rotina. Depois de anos de trabalho intenso no Departamento de Cultura – quando mal conseguia ler um livro inteiro, apenas consultava –, redescobria no Rio a volúpia de estudar. Raramente ia à cidade, nem mesmo para ver uma fita na Cinelândia, por causa das aulas a preparar. Se ia, gostava de passar na Casa de São Paulo, no largo da Carioca, para um dedo de prosa e um café com amigos paulistas, o Nino Gallo e o Gregori. Não frequentava a roda literária da livraria José Olympio, na rua do Ouvidor. Vez por outra almoçava, para os lados do cais Pharoux, alguma moqueca de peixe.

    Custou a se acostumar com o barulho dos bondes na rua do Catete. Sobretudo de madrugada era infernal, eles estrondavam, passando em velocidade máxima, chamada de

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