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Brasil e França: Laços literários: Laços literários
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E-book197 páginas2 horas

Brasil e França: Laços literários: Laços literários

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Sobre este e-book

Os laços que unem Brasil e França são longos e plurais e estão aqui representados por análises comparativas de obras de escritores dos dois países, situados nos séculos XIX e XX, período de maior irradiação francesa no Brasil e de introdução e desenvolvimento dos estudos brasileiros na França. Como amostra da recente produção universitária brasileira sobre o assunto, eis o que se oferece ao leitor interessado nos diálogos travados entre Machado de Assis, Émile Zola e Charles Nodier, Lima Barreto, Anatole France, Proust, Sartre e Antonio Candido, Guimarães Rosa e a crítica francesa, Roland Barthes e a crítica brasileira, Horácio Costa, Ferreira Gullar, Ana Cristina César e Mallarmé, Rodin e Cézanne, bem como Michel Butor e o Aleijadinho.
IdiomaPortuguês
EditoraEDUEL
Data de lançamento1 de jun. de 2016
ISBN9788572168236
Brasil e França: Laços literários: Laços literários

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    Pré-visualização do livro

    Brasil e França - Laura Taddei Brandini

    autores

    Laços Literários

    Alcofribas Nasier, narrador de Pantagruel e pseudônimo de seu autor, François Rabelais, ao visitar o mundo contido na boca do gigante que dá título ao livro, conclui: E aí comecei a achar que o que se diz é realmente verdade: uma metade do mundo não sabe como a outra metade vive.¹ Em 1532, ano de publicação do livro, no auge do Renascimento e de todas as suas descobertas – territoriais, culturais, etnográficas e até mesmo humanas, sendo o próprio homem um dos mais férteis terrenos de exploração –, o narrador-personagem encontra dentro de Pantagruel os novos mundos que eram aos poucos desvelados pelos navegadores europeus. Tal imagem sustenta uma metáfora deveras paradoxal, pois localiza a outra metade do mundo, desconhecida, dentro do próprio homem: a fronteira que separa o conhecido do desconhecido parece bastante tênue, e o mundo desconhecido, dentro da boca de Pantagruel, é concebido à imagem e semelhança do mundo conhecido. A comparação, portanto, para Rabelais, aponta para as semelhanças entre as duas metades do mundo e as situa mais perto uma da outra do que imaginamos.

    Tal como acontecia no tempo de Pantagruel, a comparação como método de conhecimento é uma ferramenta essencial no mundo globalizado de hoje. As tecnologias da informação nos proporcionam a vivência de um novo Renascimento, aproximando as diversas metades do mundo. Com isso, permitem o cotejo entre culturas diferentes, acelerando o processo de conhecimento do outro e, consequentemente, de si mesmo.

    Nesse quadro global e, mais particularmente, no contexto brasileiro, os estudos que envolvem as relações literárias entre o Brasil e a França têm lugar de destaque. Datam do mesmo século XVI pantagruélico, quando da passagem de viajantes franceses pela Ilha de Vera Cruz e da tentativa de fundação da França Antártica e da França Equinocial, experiências que forneceram muito material para a redação de relatos sobre as terras e as gentes do Novo Mundo. Esses ilustres desconhecidos, objeto de apreensão, curiosidade e fantasias, eram concebidos ora à imagem e semelhança dos europeus, como os habitantes da boca de Pantagruel, ora como grupos de bárbaros impudentes, sob as lentes do capuchinho Claude d’Abbeville, na História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas (1614), ou ainda eram elevados à condição de verdadeiros civilizados, que muitas lições tinham a dar aos europeus, segundo Montaigne, no famoso texto Os Canibais, dos seus Ensaios (1588). Mario Carelli, em Culturas cruzadas, comparando os discursos dos colonizadores portugueses e os dos franceses, escreve, sobre esses primeiros contatos:

    Os portugueses praticaram a política do segredo (sigilo) e ocultaram sua descoberta. Em troca, os franceses, que só tiveram possessões efêmeras, produziram textos cuja publicação alimentou o debate europeu sobre a América. A uns a tomada de posse material, aos outros, a apropriação de espaços de utopia.²

    Com o passar dos séculos, esses espaços de utopia mostraram-se mais eficazes do que a colonização de fato, portuguesa, na medida em que a França se tornou a pátria de adoção dos intelectuais brasileiros, sobretudo nos séculos XIX e XX, como Pierre Rivas evidencia em seu artigo Paris como a capital literária da América Latina:

    O seu prestígio [de Paris] era grande sobre as elites crioulas, cuja corrente modernizadora, tanto na Espanha como em Portugal, reclamava, ela própria, o modelo francês; daí a tentação dessas jovens nações de beberem diretamente na fonte francesa. Como as revoluções nacionais se faziam contra a península e sobre o modelo francês de ruptura violenta, do Novo Mundo, do início absoluto, impunha-se a homologia francesa. Cortar o cordão umbilical ibérico devia conduzir à elaboração de uma nova filiação, adotiva, para a construção da identidade nacional. Assim se constrói uma genealogia mítica, diferente do modelo ibérico renegado, mas necessariamente próxima do modelo requerido, em seus fundamentos e em seu imaginário. Dupla origem mítica: a idade de ouro dos povos indígenas pré-ibéricos e a sociedade ideal da Revolução Francesa da irmã mais velha latina, entre regressão mítica e projeto utópico.³

    Recusando o modelo do colonizador – português, no caso brasileiro – os intelectuais elegeram a França como pátria-mãe cultural, dela construindo uma imagem idealizada que se tornou um repositório de aspirações de liberdade política e artística, um espelho refletindo o país que eles gostariam de ter, os escritores que eles gostariam de ser. A França, portanto, sempre ocupou um lugar ideal e frequentemente problemático de um modelo cultural escolhido: verificava-se Paris, segundo Brito Broca (A Vida literária no Brasil – 1900, 1956), tão grande era o conhecimento da cidade a partir das leituras que interessavam às elites brasileiras; logo após a Segunda Guerra Mundial, lamentava-se a substituição da língua francesa pela inglesa nas escolas brasileiras (Paulo Rónai, Renascença ou declínio da língua francesa?, O Estado de S. Paulo, 1964); aliás, os mais velhos ainda lamentam essa mudança (Ignácio de Loyola Brandão, Sabendo francês podemos ser mais felizes, O Estado de S. Paulo, 2011).

    Ao longo de toda a história do Brasil, portanto, os modelos franceses de política, de revolução, de pensamento e, claro, artísticos, com destaque para os literários, foram fundamentais para a construção de uma identidade brasileira, em oposição a tudo o que remetesse ao colonizador, Portugal. No século XIX, da independência, o romantismo brasileiro, seguindo a moda parisiense, buscava no passado as raízes da nova nação que tentava firmar suas pernas para caminhar por si só. Passado esse que lembrava os então recentes séculos de submissão colonial, fazendo com que os escritores se voltassem aos primeiros anos logo após o descobrimento, enaltecendo a fauna e a flora do país e, sobretudo, os primeiros brasileiros. Os índios, portanto, pela pena de escritores como José de Alencar (O Guarani (1857), por exemplo), Gonçalves Dias (Os Timbiras, 1857) e, um pouco antes, Santa Rita Durão (Caramuru, 1781), entre muitos outros, adquiriam os mesmos traços dos heróis medievais do romantismo francês. Se, em Paris, Victor Hugo recuperava a Idade Média francesa mediante a catedral de Notre-Dame (Notre-Dame de Paris, 1831), Alencar descrevia as habitações dos primeiros desbravadores brasileiros com a suntuosidade de um castelo medieval em O Guarani. Se os heróis do escritor francês tinham a firmeza de caráter dos cavaleiros medievais, o índio Peri, protagonista do romance de Alencar, não deixava a desejar em matéria de lealdade e dignidade cavaleirescas.

    Já no início do século XX, o modernismo brasileiro, dando continuidade ao projeto romântico de construção de uma identidade nacional, que naturalmente passava pela literatura e pelas demais artes, também se impregnou com a cultura francesa para erigir suas obras mais importantes. Essa cultura fazia parte do cotidiano da elite brasileira, como testemunha Tarsila do Amaral em artigo publicado em 1946 sobre sua infância, vivida no final do século XIX:

    Se eu gosto da França? Escute:

    Cresci numa fazenda de café como a cabrita selvagem, saltando daqui para ali entre rochas e cactos.

    Mas quando voltava para casa encontrava ao piano uma criatura irradiando beleza: era minha mãe tocando Couperin ou Dandrieu.

    À hora do almoço, meu pai, patriarcalmente sentado à cabeceira da mesa, à moda brasileira, servia-se de um bom Château-Lafite, um Lormont ou um Chablis, cuidadosamente retirado de uma adega francesa. Minha mãe tomava água de Vichy Hôpital ou Célestin da qual nós, as crianças, compartilhávamos, e, algumas vezes, a título de prêmio, dava-nos para provar uma gotinha licorosa de Château d’Yquem.

    À hora do café eu repetia papagaiamente com meu pai os versos de Delile:

    "Il est une liqueur au poète plus chère

    Qui manquait à Virgile et qu’adorait Voltaire."

    Sabia então que existia um Voltaire, que existia também um Victor Hugo, um Alfred de Musset e toda uma coleção de poetas e romancistas franceses que eu via carinhosamente encadernados na vasta biblioteca. Conhecia Os Miseráveis: minha mãe lia romances e depois contava com minúcias a história, devidamente expurgada das passagens escabrosas.

    A coexistência dos hábitos da fazenda, bem brasileiros, com os da cultura francesa, por meio de seus produtos, sua música, língua e literatura, expressa na citação, dá a exata medida do quanto a França integrava a vida da elite brasileira. O trajeto entre os portos de Santos e do Havre, na França, era conhecido das famílias abastadas que passavam temporadas em Paris, educando seus filhos ou em férias. Dentro desse contexto, não é de se surpreender a leitura dos poemas simbolistas escritos em francês de autoria do jovem Sérgio Milliet em plena Semana de Arte Moderna de 1922. Ou que o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, contenha referências francesas:

    Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava para as elites. E as elites começaram desmanchando. Duas fases: 1ª) a deformação através do impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne e Mallarmé, Rodin e Debussy até agora. 2ª) o lirismo, a apresentação no templo, os materiais, a inocência construtiva.

    Dentro do processo de revolução artística, Oswald de Andrade enxerga como ponto de partida o repertório francês, compreendendo a pintura, a literatura, a escultura e a música, por meio de alguns de seus mais eminentes representantes. A cultura francesa, portanto, é vista por um dos líderes do modernismo brasileiro como uma base a partir da qual deveria acontecer a renovação artística no Brasil. Mário de Andrade, outro nome maior do período, também integra a França em sua obra, e constata lucidamente, nos versos emblemáticos do poema Inspiração, publicado em 1922 em Paulicéia desvairada: São Paulo comoção de minha vida!/ Galicismo a berrar nos desertos da América!.

    A cidade-galicismo de Mário de Andrade simboliza o completo imbricamento entre as duas culturas, presente também nas demais artes, como, por exemplo, nas composições musicais de Heitor Villa-Lobos, nas esculturas de Victor Brecheret e nas telas de Tarsila do Amaral, que unem as técnicas de vanguarda aprendidas em Paris e os temas e as tradições brasileiras. Esses artistas, assim como tantos intelectuais do mundo todo, passaram a década de 1920 entre Paris e o Brasil, prolongando em sua terra natal a Belle Époque extinta pela Primeira Guerra Mundial na Europa e trazendo na mala as teorias modernas que seriam incorporadas às artes brasileiras.

    Com a Segunda Guerra e a consolidação dos Estados Unidos como potência hegemônica mundial, a língua e a cultura francesas perderam seu lugar no centro da cena artístico-intelectual. No entanto, no final do século XX, o fluxo de interesse Brasil-França parece ter se invertido: renasceu a busca da França pela cultura brasileira graças às traduções de obras de autores como Jorge Amado, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e, mais recentemente, Rubem Fonseca, Cristovão Tezza, Marcelino Freire, entre outros. Autores franceses também passaram a retratar o Brasil em suas obras, notadamente Gilles Lapouge (Equinociais. Viagem pelo Brasil dos confins, de 1977, e Dictionnaire amoureux du Brésil [Dicionário amoroso do Brasil], de 2011) e Jean-Christophe Rufin, prêmio Goncourt de literatura, em 2001, com Vermelho Brasil. O incremento das relações literárias entre os dois países, impulsionado também pelo crescimento econômico brasileiro e por iniciativas governamentais, tais como o Ano do Brasil na França (2005) e o Ano da França no Brasil (2009), favoreceram a criação de espaços de diálogo a respeito do tema, os quais estimularam a produção crítica sobre as duas culturas. Deles nasceu, por exemplo, Cinco séculos de presença francesa no Brasil, fruto de um ciclo de conferências realizado na Universidade de São Paulo (USP) e organizado por Leyla Perrone-Moisés. Esse volume veio se juntar à já significativa bibliografia crítica sobre o assunto, que contempla trabalhos sobre a presença francesa nas obras de Machado de Assis, José de Alencar, Sérgio Milliet, Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e Monteiro Lobato, entre outros intelectuais, bem como análises da presença de autores como Baudelaire, Anatole France, Émile Zola e Roger Bastide na crítica brasileira, além de estudos comparativos de traduções francesas e brasileiras e suas recepções.

    A presente coletânea de ensaios se insere nessa tradição – ainda que bastante recente, mas de indiscutível consistência –, de estudos sobre os laços literários que unem o Brasil e a França, oferecendo aos leitores um apanhado de recentes trabalhos desenvolvidos, em sua primeira versão, sob a forma de pesquisas acadêmicas em nível de mestrado, doutorado e pós-doutorado.⁷ No século XXI, da mundialização digital e da pulverização dos modelos, quais relações literárias se estabelecem entre as duas culturas em questão? Qual literatura francesa interessa aos intelectuais e aos escritores brasileiros de hoje? De qual literatura brasileira a França tem se apropriado? Sob que signos – romance, poesia, conto, ensaio ou tradução? Pesquisadores de vários estados brasileiros se propuseram a refletir sobre essas questões a partir de enfoques distintos, embora sempre de base comparatista, sem incorrer em hierarquizações redutoras.

    Abrem este volume dois estudos sobre Machado de Assis e a França: o primeiro, Hereditariedade e romance: entre Madeleine Férat e Capitu, de Daniel Fonseca, investiga as explicações naturalistas para as supostas traições das personagens femininas de Zola e Machado de Assis, estabelecendo paralelos sem, contudo, perder de vista as diferenças de fatura dos dois romances em questão, Madeleine Férat e Dom Casmurro. Contos e sonhos em narrativas de Machado de Assis e Charles Nodier: pontes entre o Brasil e a França, de Josilene Pinheiro-Mariz, examina uma outra face machadiana, a do universo onírico, em dois de seus contos, relacionando-a à obra do mestre do conto fantástico francês, Charles Nodier.

    O alvorecer do século XX em meio ao crescimento acelerado das cidades propicia o estudo temático Imagens da cidade em Anatole France e Lima Barreto, de Milene Suzano de Almeida, que coloca frente a frente os personagens francês e brasileiro, Bergeret e Gonzaga de Sá, e suas perambulações parisienses e cariocas em busca de um nicho para seu saudosismo e sua melancolia. Seguem-se, século adentro, quatro estudos de recepção. O primeiro, Um Proust mal lido, mas vivo? Nota sobre a recepção do romance proustiano nos decênios de 40 e 50, de Alexandre Bebiano de Almeida, ocupa-se de algumas das primeiras recepções de Em busca do tempo perdido na França e no Brasil, analisando leituras de Jean-Paul Sartre e de Antonio Candido, evidenciando as saborosas e ricas dinâmicas de suas críticas. Segue linha semelhante A recepção de Guimarães Rosa na França: espanto e reconhecimento, de Márcia Valéria

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