Ana Cristina Cesar: O sangue de uma poeta
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Sobre este e-book
Guiado pela memória, Italo Moriconi escreve a primeira biografia de Ana Cristina Cesar, que é também um painel daquela geração e de suas ideias em relação às quais Ana teve protagonismo.
Um perfil no horizonte da crítica literária, uma biografia intelectual. Nada de fofocas sobre a vida trágica da escritora que se suicidou em 1983, aos 32 anos.
Uma poeta de grande originalidade ou uma promessa que não se concretizou? Uma espécie de aristocrata convivendo com poetas marginas. "Uma poeta-que-pensa. Uma poeta-crítica. Não apenas mais uma fazedora de versos." Musa e mito da geração dos "filhos da PUC", Ana C. mantinha um certo pudor em um tempo em que todos partiram para o desbunde.
Neste livro aparecem: a poeta precoce que ditava seus versos à mãe quando ainda não sabia escrever; a vida na Inglaterra; as vivências da luta contra a ditadura; os tempos do Opinião e do Beijo; o método de composição de Ana; o conflito com a estrutura masculina da liderança intelectual; a intensidade produtiva e reflexiva que marcou toda a sua vida.
Italo Moriconi é professor de literatura na UERJ e poeta.
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Ana Cristina Cesar - Italo Moriconi
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A epígrafe. A personagem. A geração
A tarefa de traçar o perfil biográfico de Ana Cristina Cesar, situando sua presença num momento determinado da vida do Rio de Janeiro, me faz lembrar trecho bastante conhecido e citado de Antonio Candido. Dele tomo posse como preparação para o ritual de evocação da poeta Ana Cristina e do tempo meteórico em que ela abalou corações e mentes no circuito intelectual jovem do Rio de Janeiro dos anos 70/80 do século passado. Eis o que diz a epígrafe por mim escolhida para este volume, retirada do prefácio que Antonio Candido escreveu para o livro Raízes do Brasil, de seu amigo de vida toda Sérgio Buarque de Holanda:
A certa altura da vida, vai ficando impossível dar balanço no passado sem cair em autocomplacência, pois o nosso testemunho se torna registro da experiência de muitos, de todos que, pertencendo ao que se denomina uma geração, julgam-se a princípio diferentes uns dos outros e vão, aos poucos, ficando tão iguais, que acabam desaparecendo como indivíduos para se dissolverem nas características gerais de sua época. Então, registrar o passado não é falar de si; é falar dos que participaram de uma certa ordem de interesses e de visão do mundo, no momento particular do tempo que se deseja evocar.
A crítica literária contemporânea é unânime em classificar o texto de Ana Cristina como excêntrico em relação ao tipo de poesia que notabilizou sua geração e que passou para os manuais de literatura sob o rótulo de poesia marginal
. Seu trabalho apresenta uma sofisticação distinta da dicção propositalmente antiliterária e formalmente simples de poetas como Chacal, Charles, Bernardo Vilhena, Leila Micolis, entre outros, que forjaram no início dos anos 1970 o tom marginal, a partir de um coloquialismo que misturava Oswald de Andrade, ecos de Manuel Bandeira, ritmos próximos a Caetano e Gil e dicção de Torquato Neto e Waly Salomão.
Não que a poesia de Ana C. recusasse o coloquial, gesto hoje em moda. É que nela o coloquial vinha empacotado em outra economia do verso, em outra dinâmica das relações de som e sentido entre as frases poéticas, deixando transparecer um tipo de formação literária cosmopolita rara no Brasil e que ela radicalizava em sentido inédito, ultrapassando as ousadias nem sempre bem-sucedidas de Jorge de Lima e Mário de Andrade (poetas que leu com atenção) e fornecendo uma alternativa interessante aos silogismos bem arrumados de João Cabral.
E não se tratava também de simplesmente descartar a atitude antiliterária de seus companheiros de geração. Pelo contrário. O antiliterário era incorporado como problema do fazer poético. Se a vontade do literário era efetivamente muito forte em Ana Cristina, o fato é que se defrontava com a necessidade histórica do antiliterário. Necessidade de assumir atitudes e temas que negassem ou desconsiderassem o sublime poético. Necessidade histórica que aproximava o clima estético dos anos 1970 ao modernismo dos anos 1920, na esteira do tropicalismo dos 1960. Momentos dessublimadores, culturalmente revolucionários. Ana Cristina enfrentou essa contingência assumindo a lição de seu amado Baudelaire, paixão que roubou de Drummond e Eliot. Tentar o paradoxo: tornar literário o antiliterário, fazer do antiliterário manifestação, ainda, do belo.
*
olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado entre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas¹
Ana reencetou e levou fundo o gesto existencial e poético definidor do moderno como proposta de transformação da vida e desautomatização dos jogos convencionais da linguagem e da sociabilidade. A maior parte de seus colegas de geração quando muito teve disso experiência apenas intuitiva. Ela viveu a radicalidade da fusão arte-vida no mesmo nível em que a viveram Hélio Oiticica, Torquato Neto, apenas foi mais discreta, mais low profile, atuando na área de convivência humana difícil e acanhada que é a literatura, garota até certo ponto comum, aluna aplicada, professora responsável, loucura em fogo brando, mas persistente, escondida pelas lentes enganadoras de uma lucidez que de tão aguda doía, nela e em quem dela se aproximasse. Louco giroscópio da lucidez. Te acalma, minha loucura’, assim diz o verso de Mário que ela utilizou num poema. Loucura, pássaro que alimentamos com carinho para suportar a melancolia e vencer o tédio infinito. Pão cotidiano. O problema é aprender a contorná-la, domesticá-la.
Se Ana chegou a um impasse e, como Torquato, acabou tendo a biografia identificada à eliminação voluntária da própria vida, e não à sua revolução permanente, como o titânico Oiticica, isso não se deverá exclusivamente a fatores pessoais, mas a inibições impostas por um contexto adverso. Ela era mulher. Ela cresceu no apogeu da ditadura. Ela era Alice através do espelho, querendo exercer uma curiosidade existencial que aos poucos viu não ser possível dentro dos limites estritos em que funciona o tão decantado cosmopolitismo carioca.
Uma futura biografia precisará levantar em detalhe os fatos relacionados ao surgimento e desenvolvimento da depressão que a levou ao suicídio em 1983, aos 31 anos, deixando apenas dois livros publicados, Literatura não É Documento, um ensaio sobre literatura e cinema, e A teus Pés, sua primeira coletânea de poemas em grande editora, lançada em 1982 pela Brasiliense. Passados mais de 30 anos da morte da autora, A teus Pés já superou dez edições. A ele juntou-se em 1985 o volume póstumo Inéditos e Dispersos, organizado pelo poeta Armando Freitas Filho, com quem Ana mantivera sólida e profunda amizade ao longo de dez anos. Posteriormente foram publicadas coletâneas de ensaios sobre tradução (Escritos da Inglaterra) e de artigos jornalísticos (Escritos no Rio), além de um cultuado caderno de desenhos (Portsmouth-Colchester) que chegou ao público graças à iniciativa de Augusto Massi, o poeta e crítico paulista, pertencente a uma geração mais jovem, cujo apreço pela obra de Ana demonstrava seu potencial de sobrevivência, algo confirmado por uma fortuna crítica que não fez senão crescer desde então, destacando-se os estudos e leituras publicados em livro por Maria Lucia Barros Camargo, Ana Claudia Viegas, Annita Costa Malufe, Viviana Bosi, Marcos Siscar, Luciana di Leone, além das muitas teses universitárias e artigos impressos e digitais.
Gaveta de poeta forte morta precoce é fogo. Sai papel feito coelho de cartola de mágico. Ana deixou cadernos e pastas com muitos rascunhos, poemas mais ou menos terminados, traduções e esboços de traduções, deixou malas cheias de agendas, bloquinhos de anotações, diários. Uma primeira remexida nesse acervo permitiu a Flora Süssekind escrever o precioso ensaio Até Segunda Ordem não me Risque Nada (Sette Letras, 1995), um dos mais inspiradores textos da fortuna crítica de nossa poeta. E há muito mais ainda: espalhadas por aí, cartas, Ana deixou muitas cartas, cartões, bilhetes. São escritos sempre tingidos de intenção literária. Há indicadores de que ela queria suas cartas publicadas algum dia, principalmente aquelas escritas durante sua segunda estada na Europa (1979/1980). Tanto num caso como no outro, a curiosidade do público foi satisfeita pelo volume de cartas compilado e publicado por Heloísa Buarque de Hollanda em 1999, e reeditado em e-book em 2016, e pelo volume de antigos e soltos
organizado por Viviana Bosi, lançado em 2008.
Pouco antes de morrer, no início daquele bissexto 1996, o escritor Caio Fernando Abreu, com quem Ana manteve uma intensa amizade num período vertiginoso para ambos (os anos de 1981/1983), fez publicar cartas dela no jornal O Estado de S. Paulo (Caderno Cultura, 29/7/95). Cartas que deixam clara a medida do talento epistolar de Ana. Escritora por vocação e profissão, ela jamais escreveria cartas inocentes. As que enviou a Caio são pura pose, pura malícia, como convém à boa literatura. No entanto, delas é possível extrair verdades fortes de vida, mais cruéis que qualquer intenção documental. Literatura não é documento, foi Ana mesmo quem disse.
Todo esse acervo encontra-se ainda sob a guarda de quem de direito, a família, os destinatários das cartas. Mas já está acertada sua transferência para um local público, sob a responsabilidade do Instituto Moreira Sales, que deverá abrigar os papéis de Ana numa casa situada na Gávea, no Rio. Quanto mais cartas forem chegando a esse futuro local, mais possível será partir para o projeto de uma biografia de Ana Cristina Cesar. Tal não é o propósito deste livro, que se propõe apenas como ensaio interpretativo. Esboço de interpretação de uma vida artística. Depoimento e perfil.
A quem se anime a escrever futuramente a biografia, lembro: deve haver também muitos inéditos esquecidos em fundos de gavetas de amigos, de amigas, de amores. Ana circulou muito, era animal metropolitana. A solidão inextirpável, incurável, que assola de dor e delícia o poeta-escritor na modernidade, nela convivia com a inquietação dos frequentes deslocamentos urbanos, com a busca incessante de inserção em redes de contato humano. Seu corpo navegava a bordo de carros, trens, aviões, lotações, e ia deixando senhas, rastros pelo caminho, papéis.
*
A inspiração baudelairiana. Descer aos infernos do antiliterário, escarafunchar a selvageria aquém dos bons modos civilizados. Enfim, refazer a viagem da transgressão modernista num contexto obviamente pós-modernista. Tudo isso era encarado por Ana Cristina como caminho viável para manter a vigência do belo. Tratava-se então de mais uma vez dissociá-lo das sublimidades convencionais, afastá-lo da organização burguesa dos sentimentos. Em forte contraste com o texto da mineira Adélia Prado, a outra grande poeta mulher surgida nos anos 70, na obra da carioca Ana Cristina a experiência do casamento não é o terreno onde se ancoram o desejo e a paixão. E muito menos há celebração dessa ou de qualquer outra experiência como sinal de transcendência divina. Na poesia cética e filosoficamente atualizada de Ana, a experiência se dá como puro fantasma da linguagem. E o desejo se realiza numa errância que abala os alicerces de qualquer caso, qualquer casa, lembrando a também carioca Nina, do romance Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso. A casa mineira por onde o texto de Ana circula desembaraçado é a poesia de Drummond.
Na solidão do seu quarto de eterna adolescente, e todo adolescente intelectualizado é simultaneamente um velho, no silêncio do apartamento dos pais à rua Tonelero (hoje Toneleros), 261, atravessando as noites em vigília produtiva, Ana desenvolveu desde cedo e ao longo de anos uma fina reflexão sobre a natureza do literário, o que explica o grau de maturidade atingido por seu texto. E é por aí que vamos ressituá-la como parte de uma geração. Geração intelectual, não apenas poética. Pois Ana manteve sempre uma relação reflexiva com sua própria poesia. Ela não foi simplesmente mais uma fazedora