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Ética, direito e política: A paz em Hobbes, Locke, Rousseau e Kant
Ética, direito e política: A paz em Hobbes, Locke, Rousseau e Kant
Ética, direito e política: A paz em Hobbes, Locke, Rousseau e Kant
E-book405 páginas8 horas

Ética, direito e política: A paz em Hobbes, Locke, Rousseau e Kant

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Sobre este e-book

O contratualismo moderno é o referencial teórico de análise deste livro. Os autores estudados são Hobbes, Locke, Rousseau e Kant. À luz, especialmente, do seu opúsculo, intitulado À paz perpétua, Kant recebe acento especial neste estudo, que busca investigar e fundamentar a possibilidade da paz e suas consequentes e possíveis implicações à Ética, ao Direito e à Política, tanto no que diz respeito à respectiva época dos autores estudados, como também ao momento atual, caracterizado e marcado, eminentemente, pela globalização, pela tecnociência e por diferentes tipos de violência.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento28 de jul. de 2014
ISBN9788534939973
Ética, direito e política: A paz em Hobbes, Locke, Rousseau e Kant

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    Pré-visualização do livro

    Ética, direito e política - Paulo César Nodari

    PREFÁCIO: O DESAFIO DO LIBERALISMO POLÍTICO

    Prof. Dr. Manfredo Araújo de Oliveira (UFC)

    Oque hoje denominamos Lib eralismo Político, entendido como teoria filosófica, representa uma das formas mais importantes e mais influentes da antiga tradição ocidental da Filosofia do Direito e do Estado que já vem dos gregos e que foi profundamente reformulada na Modernidade. Essa posição havia sido esquecida depois de um período prolongado de hegemonia do positivismo jurídico resultante de uma suspeição radical perante qualquer intento de legitimação normativa dos princípios da ação e das instituições políticas. A partir do final do século XIX, conquistou cada vez mais primazia o projeto procedimental da racionalidade característica das ciências modernas que designam como racionais unicamente os procedimentos com que manuseiam os fenômenos e a solução dos problemas decorrentes desses procedimentos.

    Isso produz um projeto de investigação teórica que difere radicalmente da concepção da estrutura e do objetivo do saber filosófico: a filosofia pretendeu, desde sua origem entre os gregos, ser um saber da totalidade enquanto tematização das estruturas fundamentais da realidade em seu todo, portanto explicitação da inteligibilidade básica de todas as coisas, o que permitia situar toda e qualquer realidade numa ordem universal racional. O quadro teórico específico das ciências modernas não situa sua investigação no horizonte das estruturas universais, mas antes cinde o real em âmbitos determinados e busca explicar a atuação das entidades observadas nesses diferentes domínios com um saber que compreende a si mesmo como um conhecimento hipotético, fundamentalmente falível, permanentemente variável e inovador.

    Neste ambiente teórico, reduziu-se a filosofia à análise conceitual dos elementos constitutivos das ciências da natureza. Uma das consequências dessa reviravolta é que perdeu qualquer sentido o discurso da racionalidade prático-política já que as sentenças normativo-práticas foram tomadas simplesmente como manifestação de sentimentos subjetivos e, por isso, eliminadas dos processos de legitimação racional que constituíram o específico da filosofia política da tradição. Nesse novo horizonte de pensamento, a práxis foi identificada com a técnica, de forma que todas as questões da esfera do político foram limitadas a questões de eficiência e de utilidade. A problemática tradicionalmente tratada pela filosofia política se transformou agora em objeto das ciências humanas.

    É no contexto desse quadro teórico que se elaborou no século XX uma Teoria Realista da Política Internacional que se articulou sobretudo na obra Politics among Nations, de H. J. Morgenthau, que é considerada a obra clássica do assim chamado Realismo Político, que ainda hoje continua muito influente. Depois da experiência trágica da Primeira Guerra Mundial, emergiu uma grande investigação que se concentrou na questão sobre a melhor organização das relações entre os diferentes governos, sociedades, povos e culturas com o objetivo de evitar no futuro uma catástrofe semelhante. Isso significa que a ciência aqui assume como sua função primordial contribuir com seus conhecimentos para garantir a paz mundial.

    Uma afirmação absolutamente central na obra de Morgenthau é que não é possível pressupor que uma ordem política razoável e moral derivada de princípios universais e abstratos tenha a mínima condição de ser efetivada nas condições históricas em que vivem os seres humanos. Realismo nesse contexto significa, em primeiro lugar, que o ser humano é atribulado por forças contraditórias, o que significa dizer que o mundo humano é basicamente dominado por interesses opostos e conflitantes. Dessa forma, é a própria constituição ontológica do ser humano que torna praticamente impossível a efetivação de princípios morais na vida humana.

    A questão central aqui é aceitar a constituição ontológica do ser humano como ele é, o que significa, antes de tudo, entender que a existência humana é uma luta constante pela existência em todas as suas formas, o que tem muitas consequências para a política. Nesse contexto, a política se manifesta como sendo essencialmente uma luta pelo poder político, ou seja, seu núcleo é a dominação de seres humanos por outros seres humanos, o que faz com que seu objetivo fundamental seja conservar e ampliar o poder, e aqui se faz possível uma competição ou um alinhamento de interesses. Onde a colaboração entre os governos é impossível em virtude da contraposição de interesses, os conflitos são inevitáveis. Para atingir a paz, o primeiro caminho é diplomático, mas o emprego da força se faz necessário ali onde a diplomacia nada mais consegue. A paz não é um dado, mas uma conquista que é fruto da estabilidade e do equilíbrio das relações de poder entre os povos.

    A partir da situação de onde ela parte – a catástrofe da guerra mundial –, essa teoria põe a questão da paz logo em nível global, e sua tese fundamental é que, pressupondo a existência de Estados soberanos, uma conquista da modernidade, a sobrevivência dos Estados e do sistema como um todo depende de uma busca inteligente do interesse nacional. Aqui é fundamental avaliar corretamente o poder de cada nação.

    Por volta da década de 1970, a filosofia política ressurgiu na vida intelectual do Ocidente, e isso se fez em primeiro lugar à medida que se empreendeu o restabelecimento do elo de ligação com a tradição moderna da filosofia política. Isso implicou um retorno em formas diferenciadas do modelo de argumentação e das categorias que se gestaram no pensamento político moderno de Hobbes a Kant e Fichte no contexto de um diálogo com as interrogações, os métodos e as produções teóricas do pensamento social contemporâneo.

    Isso significou, em primeiro lugar, resgatar, numa situação epocal nova, as bases teóricas que marcaram o mundo ocidental nos séculos XVIII e XIX e se exprimiram no Iluminismo e Racionalismo modernos sobre as quais este livro de Paulo César Nodari nos propõe refletir. Aqui se pensou a política a partir da liberdade agora concebida como chance e tarefa de autodeterminação do sujeito; numa palavra, a tese básica dessa postura teórica é a afirmação de que o fundamento último do direito positivo e do Estado é o indivíduo, o eu autônomo, como vai explicitar Fichte em completa radicalidade. Desaparece aqui do horizonte do pensamento a tese aristotélica do caráter comunitário como constitutivo do ser humano enquanto tal. A sociabilidade é, dessa forma, antes o resultado da práxis humana, o que faz com que o direito positivo e o Estado se expliquem a partir de uma convenção, portanto, como frutos da criação humana, o que se explicita na tese de Rousseau de que a ordem social não se origina da natureza, mas se funda em convenções.

    Essa corrente de pensamento possui dois elementos centrais que Nodari expôs em todos os autores apresentados em sua obra:

    1) Uma antropologia filosófica que, embora expressa de diferentes formas, não é explicitamente justificada, mas antes pressuposta. Constitui na realidade uma espécie de pressuposto ontológico-normativo de uma teoria que, em última instância, pretende justificar a sociedade organizada de acordo com a lei como a única capaz de garantir efetivamente a paz, portanto tornar possível a efetivação do ser humano.

    O ser humano, ser individual, é aqui concebido como um ser essencialmente livre (a liberdade é constitutiva de seu ser, de sua natureza na linguagem da tradição, e é por isso que Rousseau a denomina de liberdade natural) e por isso portador de direitos que constituem a efetividade de seu ser, o direito natural, a base de toda norma na vida humana. Esse é o fundamento da igualdade estrutural nas liberdades básicas de todos os seres humanos, o que significa por um lado a rejeição de qualquer tipo de hierarquia ontológica que possa legitimar qualquer forma de discriminação de uns por outros (a tese básica de Kant: nenhum ser humano deve ser tratado como coisa, mas sempre como fim em si mesmo).

    Numa palavra, relações simétricas são as únicas relações adequadas entre seres portadores de direitos iguais, como defendeu claramente Fichte. Isso significa dizer que o tratamento igual de todos os seres humanos é a exigência mínima do direito natural a qualquer forma de organização da vida humana; por outro lado, todos, enquanto seres iguais, se encontram confrontados uns com os outros na busca dos diferentes bens necessários para a efetivação de seu ser, que é, em muitos aspectos, um ser carente, o que faz da vida humana um risco permanente.

    2) Articulou-se, então, um novo objetivo para a filosofia política: fundamentar a possibilidade e as normas da vida em comum, isto é, das instituições políticas, econômicas e sociais a partir das leis imanentes (sem nenhuma referência teológica) e das necessidades do sujeito autônomo. É nessa perspectiva que se pode falar de um individualismo liberal, que explica as formações sociais como resultados do contrato (pacto) entre sujeitos livres e iguais. Aqui qualquer poder é submetido à autonomia, racionalmente fundada, do sujeito individual autônomo (pode-se falar de um egoísmo universal simétrico enquanto fundamento de legitimação do direito natural: cf. V. Hösle, Moral und Politik, p. 787).

    Essa nova concepção de liberdade se expressou já em 1688 no Bill of Rights, na constituição americana de 1787, e, na Revolução Francesa de 1789, se tornou o propulsor da história social e consequentemente a pressuposição básica da autocompreensão das sociedades modernas. Daí porque o segundo elemento central dessa tradição de pensamento é um procedimento de legitimação do Direito e do Estado – o Contrato –, instrumento absolutamente necessário enquanto mediação histórica da efetivação do ser humano como ser livre. Isso implica reconhecer que o direito natural não se efetiva automaticamente, mas exige a construção de um mundo institucional (direito positivo e Estado) que medeie sua efetivação. Portanto, a teoria contratual combina a referência a um ideal ontológico-normativo com a busca de mecanismos de sua efetivação histórico-institucional que constituem uma condição necessária de uma vida civil em comum.

    Nodari mostra como Kant, partindo desse pano de fundo, apresenta uma fundamentação no quadro de uma filosofia transcendental do que se poderia chamar uma teoria completa do Direito e do Estado em três níveis: a) o direito estatal, que trata das relações entre indivíduos e grupos; b) o direito dos povos (direito internacional), que trata das relações dos Estados entre si; c) o direito do cidadão do mundo (direito cosmopolita), que trata das relações de indivíduos e grupos de um Estado com outros Estados. Kant vai situar por isso toda essa problemática no horizonte do que hoje se transformou em algo decisivo no contexto de um mundo globalizado: o contexto de uma ordenação global da vida dos povos do planeta.

    No século XX, essa tradição foi retomada como horizonte novo de pensar o direito e a política perante o realismo político dominante. Esse renascimento da filosofia política foi desencadeado pela publicação, em 1971, da Teoria da justiça, do filósofo americano J. Rawls, a que se seguiram, em poucos anos, obras de grande valor para a retomada do pensamento liberal, como as de R. Nozick, J. M. Buchanan, B. A. Ackerman e Th. Nagel. A significação da obra de J. Rawls está, antes de tudo, na reconstituição da tarefa própria da filosofia política da tradição liberal em contraposição agora ao modelo alternativo do utilitarismo.

    Está em jogo aqui a retomada do projeto de legitimar os princípios normativos da vida social, isto é, da estrutura básica da sociedade, portanto de suas instituições sociais principais (que são sistemas públicos de regras), e do programa emancipatório da liberdade e da igualdade como fundamento de uma sociedade bem ordenada. Para ele, isso significa que se trata de uma sociedade contratual, regrada por uma constituição e formada por pessoas livres e autônomas. O liberalismo filosófico reaparece como a forma de reflexão filosófica da modernidade política emancipatória com um modelo próprio de fundamentação, ou seja, o procedimentalismo contratual que é aqui reformulado.

    Faz-se hoje também um debate muito frutuoso sobre a postura fundamental, as formas e os limites do pensamento liberal na filosofia prática. O livro de Nodari veio trazer ao público filosófico de língua portuguesa as bases teóricas, as categorias básicas e os momentos constitutivos dessa tradição de pensamento. Por essa razão, este livro certamente significa uma contribuição importante ao debate que hoje se mostra decisivo no campo da Filosofia do Direito e da Política.

    APRESENTAÇÃO

    Como seres humanos, podemos organizar as nossas relações usando da violência que gera marginalização, exclusão e morte, mas também temos competências para viver pacificamente. O desafio filosófico dos estudos para a paz é a reconstrução normativa das nossas competências para fazer as pazes. Nesse sentido, a primeira constatação, ao analisar o mercado editorial brasileiro, é a ausência de referenciais teórico-filosóficos.

    Oportunamente, o professor doutor Paulo César Nodari nos brinda com a presente obra, que reúne estudos que vem realizando há alguns anos e se verticalizaram no período de pós-doutorado, no qual centrou suas pesquisas na temática da paz, tal como concebida pelos filósofos contratualistas modernos, nomeadamente Hobbes, Locke, Rousseau e Kant.

    Na primeira parte, intitulada O contratualismo moderno e o projeto filosófico da paz: Hobbes, Locke e Rousseau, Nodari efetua um estudo dividido em três capítulos.

    No primeiro capítulo, após esboçar o contexto que antecede o pensamento de Hobbes, analisa o seu raciocínio político defendendo a tese de que o filósofo inglês é um incansável defensor da paz. Para Hobbes, o Estado é necessário de um ponto de vista racional, pois a relação entre proteção e obediência dá aos homens paz e vida. Deduz-se que a filosofia política de Hobbes tem como valor supremo a paz e se baseia no fato de que tal paz só é alcançada mediante a criação de um soberano absoluto que freie as paixões e os interesses individuais.

    A seguir, Nodari passa a analisar o pensamento de John Locke por se tratar, em sua concepção, de uma das fontes notáveis e imprescindíveis à compreensão da arquitetônica política do mundo moderno, especialmente no que se refere à compreensão da teoria contratualista moderna. Apesar de Locke não ter um texto intitulado com referência direta à perspectiva da paz, Nodari defende a tese de que é possível encontrar aspectos no pensamento político lockiano imprescindíveis para fundamentar a tese da convivência pacífica entre os homens. Nodari enfatiza que, segundo Locke, qualquer forma de governo só será legítima se fundamentada no consentimento livre dos indivíduos. Locke tem convicção de que a única condição de um estado de paz entre os indivíduos é a segurança no estado civil.

    Para tratar de Rousseau e sua contribuição para a paz, Nodari parte dos dois questionamentos centrais que dominavam os debates políticos nos séculos XVII-XVIII: a questão do aumento da desigualdade entre os seres humanos e o problema da legitimidade do absolutismo político. O itinerário construído por Nodari parte da análise das causas da desigualdade entre os seres humanos, segundo Rousseau, passa pela exposição de seu pensamento político para, enfim, chegar às considerações rousseaunianas sobre a possibilidade da paz nas relações internacionais. Rousseau prefigurava a futura constituição de uma confederação europeia, de organismos supranacionais que limitem ou superem a ideia de soberania nacional, para chegar a uma paz estável e duradoura. Na base de tal concepção está a convicção iluminista de que a guerra é prejudicial a todos enquanto reduz a liberdade de comércio, arruína as indústrias e interrompe a atividade civil da sociedade.

    Na segunda parte da obra, intitulada Kant e o projeto filosófico da paz, Nodari nos brinda com três estudos acerca do autor ao qual mais se tem dedicado ao longo de sua carreira de investigador.

    Em Kant e os artigos preliminares, após tecer considerações introdutórias à filosofia prática kantiana, Nodari passa a tratar do projeto filosófico kantiano da paz perpétua. Para ele, Kant, após rejeitar veementemente os argumentos para a chamada guerra justa, quer fundar a paz como um dever jurídico do gênero humano, fundar a justiça e a paz como alicerce e garantia à vida de cada ser humano. Mostra um Kant totalmente favorável à fundamentação legal da paz no direito. Nos artigos preliminares, Kant busca estabelecer as condições preliminares para a construção da paz, sendo de responsabilidade dos governos tal preparação.

    No capítulo cinco, intitulado Os artigos definitivos e suas condições de possibilidade à efetivação da paz, Nodari retoma o cerne do projeto kantiano da paz. Neles, Kant apresenta as três teses para a instauração da paz definitiva; trata da relação dos cidadãos com o Estado, da relação entre as nações e do direito dos cidadãos no mundo enquanto seres humanos.

    Por fim, em A garantia da paz, Nodari, não obstante os pontos adversos e difíceis, apresenta uma leitura plausível da compreensão kantiana acerca da concepção da natureza como a garantia à paz perpétua.

    Não espere o leitor encontrar nestas páginas um estudo para iniciantes. Trata-se, antes, de uma apresentação geral das concepções de Hobbes, Locke, Rousseau e Kant, mas com a profundidade que só Nodari lhe sabe dar. É um estudo programático, mas nem por isso genérico. Nele se encontram indicações teóricas para desencadear novas pesquisas, mas também sugestões práticas para empreender um caminho de consolidação da paz.

    Agradeço a oportunidade que me foi dada por meu amigo Paulo César Nodari de apresentar o seu texto e recomendo a sua leitura, na expectativa de que tanto ele quanto outros investigadores se dediquem à temática da paz.

    Prof. Dr. Everaldo Cescon

    PPGFil – Universidade de Caxias do Sul

    Parte1

    Capítulo 1

    HOBBES E A PAZ

    Antes de entrar propriamente na análise da concepção de Hobbes sobre a paz, é importante esboçar algumas ideias centrais do contexto em que efervesceu o pensamento de Thomas Hobbes. Assim, num primeiro momento, faz-se um esboço geral do contexto que antecede o pensamento desse autor tão importante do pensamento político moderno. Num segundo momento, busca-se analisar o raciocínio do edifício político do filósofo inglês, sustentando a tese de que ele é um autor incansável na busca pela paz.

    1.1 O PROJETO MODERNO E THOMAS HOBBES

    1.1.1 Ideias gerais acerca do projeto moderno

    O período denominado moderno não é fruto do acaso. É fruto de todo um processo. Para compreender Thomas Hobbes (1588-1679), que viveu num período muito interessante, para não dizer conturbado, da história do pensamento ocidental, faz-se urgente uma visão além de seu contexto espacial e temporal. Urge compreender também a concepção paradigmática em jogo em seu momento histórico. Ele vive, por assim dizer, um perío­do de transição. Está em jogo, ou seja, em trânsito, a passagem efetiva da concepção clássica, ou seja, antiga e medieval, à nova concepção, pensada, especialmente, entre outras influências, pelo pensamento nominalista e pela concepção renascentista. É também um período marcado por grandes acontecimentos. Lembre-se, aqui, por exemplo, a repercussão das ideias do franciscano Guilherme de Ockham (1285-1347), conhecido como o doutor invencível (Doctor Invincibilis), ou também como o iniciador venerável (Venerabilis Inceptor). Para ele, todo conhecimento racional tem base na lógica de acordo com os dados proporcionados pelos sentidos. Logo, só se conhecem entidades palpáveis e concretas. Para o nominalismo, não há essências, só há nomes. O nominalismo, de certo modo, substituiu a ontologia clássica das essências, pois as coisas só podem ser simples, isoladas e separadas. Os termos gerais têm fundamento na realidade empírica, mas nada significam em si mesmos, salvo um conhecimento imperfeito e incompleto das entidades reais, as quais podem ser chamadas individuais.

    Preocupado em conhecer os fenômenos físicos, o nominalismo permitiu, então, o surgimento da ciência moderna. Com isso, a razão deixa de ser acolhedora da ordem cósmica para transformar-se na fonte articuladora do sentido. A razão dá um novo sentido à liberdade. O ser humano, por meio da sua razão, é livre diante do fático, pois ele pode distanciar-se criticamente dele e só aceitar o que passar pelo tribunal da razão. A razão passa a ser o instrumento de emancipação da humanidade. É a fonte de criação para o ser humano. O mundo não é mais o cosmos, do qual o ser humano era uma parte, mas é o mundo a ser por ele doravante construído. Com efeito, o método, de ora em diante, ganha uma característica nova, é o construtivo. O objeto não é mais dado como na razão clássica. É construído a partir da subjetividade. Agora, o conhecimento é exercido metodicamente como uma operação capaz de construir o seu objeto e de construir uma correspondência entre o sujeito e o seu mundo de objetos. É o penhor da vida autônoma moderna.

    Não obstante, poder-se-ia tomar em consideração outros pontos de vista a partir dos quais seria possível a análise e compreensão da filosofia de Hobbes; busca-se, aqui, nesse primeiro momento, alinhar algumas teses centrais que repercutem na compreensão do ser humano enquanto tal. E isso, sobremaneira, à luz de dois critérios. Primeiro, porque Hobbes, tanto no Do cidadão (1642) como no Leviatã (1651), não se cansa de demonstrar e argumentar seu interesse pela análise do ser humano, isto é, ele quer conhecer a natureza do ser humano. O segundo critério, ligado ao primeiro, ou seja, ao conhecimento da natureza do ser humano, ainda que de maneira e com traços bem gerais, porque só a conhecendo será possível calcular, conjecturar e construir meios e instrumentos capazes de convivência pacífica. Nesse sentido, pode-se afirmar que a concepção moderna do ser humano foi sendo lentamente elaborada, ao longo dos séculos, especialmente, XIII e XIV. No cenário do século XV ao XVIII, ter-se-á o chamado período em que o "chamado homem moderno já ocupa o centro da cena da história e passa a ser a matriz das concepções contemporâneas do homem que se formularão nos séculos XIX e XX".¹ Por sua vez, na época da Renascença, que, grosso modo, estende-se do século XIV ao XVI, quando atinge o seu clímax e declina para dar lugar à idade barroca, têm-se transformações e mudanças de toda ordem na Europa ocidental. Na ordem das ideias, a civilização da Renascença veio a ser conhecida como idade do humanismo. Dá-se uma nova sensibilidade em face do ser humano e a redescoberta e exaltação da literatura clássica, sobretudo latina, considerada a mais alta expressão dos valores preconizados pelo humanismo e o mais apto instrumento para elevar o ser humano à altura da sua verdadeira humanidade. Ele é o homo humanus.² A civilização da Renascença foi a primeira civilização do livro impresso e essa característica influiu decisivamente na difusão do ideal humanista.

    Na Renascença, segundo Lima Vaz, há um esforço de recuperação dos fundamentos metafísicos e teológicos da visão do mundo. Esse esforço se desenvolve em três direções: a) revitalização do pensamento medieval na chamada Segunda Escolástica, que floresce no Século XVI, especialmente na Península Ibérica; b) tendência panteísta, representada, sobremaneira, por Giordano Bruno (1548-1600) e que conhecerá sua expressão plena em Baruch Spinoza (1632-1677).³ Panteísmo é a doutrina filosófica que ensina que Deus e o mundo não se distinguem no ser. Abstratamente podem dar-se duas hipóteses fundamentais, ou se nega o ser do mundo e se afirma Deus ou se nega o ser de Deus como transcendente ao mundo e se identifica Deus com o mundo. Em linhas gerais, ou se reduz a realidade do mundo a Deus ou se reduz a realidade de Deus ao mundo. Doutrina panteísta é, em suma, a doutrina que crê que Deus e o mundo são a mesma coisa, de modo que Deus não é fundamentalmente distinto do mundo; c) tendência panenteísta, representada especialmente por Nicolau de Cusa. Em contraposição ao esquema da transcendência do divino próprio da metafísica clássica, ela dá ênfase à imanência do divino no mundo sem pôr em questão a personalidade divina, mas realçando nesta o predicado da infinidade simbolizada na infinidade do mundo e, sobretudo, da individualidade humana confrontada dinamicamente com a infinitude cósmico-divina. Em outras palavras, ainda que haja uma estreita relação entre mundo e Deus, nenhum desses dois termos absorve o outro e nenhum se identifica com o outro.⁴

    O tema da dignidade do ser humano reaparece na Renascença. Lembre-se, aqui, por exemplo, o filósofo renascentista Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494), cuja vida foi muito breve, de apenas 31 anos. Sua obra intitula-se Discurso sobre a dignidade do homem (De hominis dignitate oratio) (1480). O texto de Mirandola é paradigmático à análise desse período da história. Na Renascença, o tema da dignidade do ser humano assume uma nova repercussão. Ela reaparece, porém, não mais simplesmente como um tema ou um motivo literário à semelhança do lugar comum que ocupava na literatura antiga. Deve responder às novas exigências profundas da nova sensibilidade em face do homem e de suas obras. Para Heller, na Renascença, emergem as condições para que surja uma Antropologia Filosófica no sentido moderno do termo.⁵ Aparece a consciência da humanidade como uma das características essenciais do ser humano na sua universalidade abstrata e não mais limitado pelas particularidades segundo as quais o ser humano antigo ou medieval se considerava. Das profundas transformações do mundo ocidental no tempo da Renascença emerge a imagem do homo universalis.⁶ Os horizontes estreitos e limitados caem por terra diante das novas descobertas do espaço geográfico e do encontro ou confronto com as novas culturas e civilizações. Para Lima Vaz, a antropologia da Renascença aparece como uma antropologia de ruptura e transição. É ruptura com a imagem medieval do ser humano e transição à imagem racionalista que dominará os séculos XVII e XVIII.⁷

    No início da época moderna, com o Renascimento e a Reforma Cristã, ergue-se o protesto do que é individual, único, no ser humano contra toda e qualquer limitação e constrangimento no que diz respeito à natureza geral. O ser humano individual torna-se consciente das suas forças criadoras próprias e reclama sua autonomia. Mesmo na sua relação com o que diz respeito ao Absoluto, ele não quer mais deixar-se limitar por instituições e dogmas que lhe são impostos, por assim dizer, de modo heterônomo. Ele tem consciência de sua consistência própria e de sua força criadora. E essa é uma atitude completamente nova. Ensaia-se, assim, o projeto da constituição de uma nova ordem universal a partir da consciência do próprio sujeito, eixo paradigmático desse contexto e época. Doravante, a atividade livre do sujeito projeta ordens, princípios e normas, dando-se, por conseguinte, uma nova ordem constitucional, cujo centro paradigmático é o sujeito.

    A partir dos começos do século XVII, os sinais do fim da Renascença se tornam visíveis. No entanto, o novo modo de pensar é herdeiro da Renascença. Mas traz também uma forte crítica à tradição antiga e renascentista. A antropologia racionalista prolongará a tradição ocidental aristotélica do ser racional, mas dá-lhe um novo procedimento. Entra em cena muito mais o esquema mecanicista, ou seja, o modelo da máquina se estenderá à explicação da vida e do ser humano. Nessa perspectiva, sem dúvida, em Descartes (1596-1650), a concepção racionalista moderna do ser humano encontra sua expressão paradigmática, de sorte a poder falar do ser humano racionalista como o ser humano cartesiano. Ele convive não apenas com o contexto da crise epistemológica, mas também com o contexto da crise antropológica e política. Ele pensa uma nova fundação para a nova ciência. Ele pensa uma fundação independente dos sentidos, pois a causa principal dos nossos erros provém dos sentidos e da imaginação. Ele foi o grande promotor de uma nova metodologia filosófica e o fundador do pensamento filosófico moderno, buscando os princípios de uma metodologia singular, tendo como modelo a matemática. Ele estava convencido de que se podia transferir a evidência, a clareza e o processo analítico da matemática à investigação filosófica. O filósofo do penso, logo existo aspira chegar à verdade e a uma certeza absoluta na ciência, propondo-se realizar uma construção filosófica sólida, evitando cuidadosamente toda causa de erro e incerteza. Quer evitar o trabalho inútil e dispendioso, buscando, para isso, um caminho fácil, claro e acessível a todos, capaz de preservar do erro, rumando à posse da verdade. Esse caminho é o método que consiste na ordem e disposição das coisas às quais é necessário voltar o espírito para descobrir alguma verdade.⁸ Aspira, portanto, a assentar o edifício da filosofia sobre uma base segura e sólida. Ele crê poder consegui-lo seguindo um método estritamente racional e dedutivo à luz do modelo matemático. Para tanto, ele necessita de um ponto de partida incontrovertível, princípio firme, certo, seguro, uma verdade primeira indubitável, uma ideia que lhe sirva para deduzir dela todas as demais de maneira infalível. Essa ideia deve ser clara, distinta e simples, sendo ela produto do trabalho do intelecto.

    A grande diferença entre o pensamento moderno e o medieval é o metodológico. O homem moderno é diferente do medieval, protagonizando a quebra com a tradição. Busca a identificação do método com a lógica. A lógica ou método é como que uma disciplina instrumental criada pelos filósofos da filosofia prática. É uma forma de raciocinar silogisticamente. A universalização do método é um elemento crucial na constituição da nova mentalidade e sua identificação com a lógica é característica essencial e definitiva do homem moderno e não simplesmente acidental. Para Descartes, o raciocinar metódico é o raciocinar correto. A aplicação do novo método é liderada pela matemática. O novo método deseja tornar possível uma espécie de conhecimento perfeito de todas as coisas que o homem pode alcançar. As principais características dessa nova concepção: crença ilimitada na razão natural, libertação da escravidão e da enfermidade, exclusão da relação do transcendente com a existência natural e o contexto natural. Para o ser humano moderno se torna pouco relevante a relação do ser humano para o bem ou a relação do ser humano para com Deus. Quando, enfim, fala-se de ser humano moderno, em termos de uma visão lógica ou metodológica, envolve basicamente a referência a conceitos como resolução e composição.

    Assim sendo, Descartes, para chegar à verdade e se preservar do erro, confia no uso puro da razão, recolhida em e sobre si mesma, funcionando a portas fechadas, desconectada de todo contato com o mundo da experiência sensível, a fim de que possa fazer rigorosamente suas deduções, partindo das ideias claras e distintas.¹⁰ Na concepção cartesiana há três classes de ideias, das

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