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Bispo S/A: A Igreja Universal do Reino de Deus e o exercício do poder
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E-book359 páginas4 horas

Bispo S/A: A Igreja Universal do Reino de Deus e o exercício do poder

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Sobre este e-book

A Igreja Universal do Reino de Deus, baseada no trinômio, "exorcismo, prosperidade e cura", rapidamente estruturou, do Brasil ao mundo, uma universal igreja. Este neopentecostalismo autóctone, segundo o autor, gestou uma igreja pragmática com sete propriedades: apropriação da cultura popular, sintonia com os Novos Movimentos Religiosos, subversão à matriz evangélica, perfil empresarial, segmentação da clientela, conquistas extra-eclesiais, comando de líder excepcional. Este livro é fruto de uma investigação bibliográfica cuidadosa e de verificação de campo deste neopentecostalismo. É explanado o vasto contexto do pluralismo religioso, o iurdiano manejo da fé e do dinheiro, a trajetória de "ação-poder" do autoproclamado bispo Macedo. Entender os meandros e a solidez do exercício do poder dessa megaorganização religiosa, cujo perfil mais se assemelha a um conglomerado empresarial e político, é o objetivo desta obra.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento30 de mai. de 2012
ISBN9788527613835
Bispo S/A: A Igreja Universal do Reino de Deus e o exercício do poder

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    Bispo S/A - Odêmio Antonio Ferrari

    sociais.

    Capítulo I

    O Fenômeno Religioso na Pós-Modernidade

    Introdução

    O perfil do campo religioso, na pós-modernidade, apresenta-se variado e múltiplo. A religião como fato e fator humano e social, cooptada pelos ideólogos do mercado neoliberal globalizado, passou a ser compreendida como fonte de legitimação de mecanismos econômicos. O sagrado teve sua dimensão religiosa reduzida a mercadoria e a produtor de bens simbólicos para o comércio, como também gerador de inúmeras formas institucionais, crenças e ritos. Vivemos envoltos numa multiplicidade de ofertas de sentido concorrendo entre si. Os elementos religiosos são explorados como produtos no moderno mercado, despertando desejos e interesses de consumo.

    Observando a realidade pós-moderna, percebemos sua crise e sua dificuldade de oferecer sentido à vida humana, que se encontra carente de perspectivas teóricas e práticas. A humanidade está emaranhada na conjuntura atual pela dominação técnica e econômica. Nesse ambiente, os Novos Movimentos Religiosos (NMR), com sua pluralidade de fisionomias, encontram plausibilidade e transitam pelos mais diversos enfoques religiosos, filosóficos e comportamentais, independente dos vínculos institucionais.

    A Nova Era com sua perspectiva holística veio ocupar esse vazio de sentido e oferecer alternativas aos desencantamentos humanos nesse mundo globalizado. Sua proposta torna-se fascinante pelo seu hibridismo religioso, permitindo atender às diversas demandas e valorizar a dimensão subjetiva. Essa dinâmica novaerista, que encarna um sincretismo religioso em movimento, mostra-se como portadora do essencial, buscando a ‘imanência perfeita’ do ser humano no aqui e agora e um viver satisfatório integrado ao ‘todo’. A circulação difusa entre o local e o global, o passado e o futuro, a evolução sob o enfoque mítico do ‘bom selvagem’ e da harmonia da criação, o sagrado no natural, a ênfase às origens e ao ‘puro’ ajuda a consolidar a sua proposta. Esse fenômeno torna-se, assim, um atrativo pelo grau de satisfação que promete diante dos desencantos do mundo, um mundo que idolatra a economicidade com sua produção e consumo de bens materiais.

    Este capítulo quer salientar as peculiaridades do fenômeno religioso na atualidade e as características que possui. Por isso, uma visão mais ampla do contexto se faz necessária, observando suas múltiplas interações e mutações, as quais ocorrem no âmbito da pós-modernidade.

    A pós-modernidade

    ¹

    A sociedade moderna, em sua racionalidade científica centralizadora, guiou-se pelo saber especulativo, quantificando o viver humano pelo mito do progresso e da evolução. Isso foi viabilizado pela produção técnica e sua lógica instrumental de eficiência mensurável, tendo desempenho e procedimentos planificados. O ser humano e suas relações pessoais e sociais foram reduzidas a fatores de causa e efeito, dentro do processo mecanicista de produção em escala. As dimensões intersubjetivas foram reprimidas; a vivência-convivência do ser humano foi normatizada; e seus valores essenciais foram relativizados. Enfim, a realidade nos mostrou:

    O impacto de três grandes forças dinâmicas da modernidade – a separação de tempo e espaço, os mecanismos de desencaixe e a reflexividade institucional.(…) A cosmologia religiosa é suplantada pelo conhecimento reflexivamente organizado, governado pela observação empírica e pelo pensamento lógico, e focado sobre tecnologia material e códigos aplicados socialmente.²

    O saber especulativo da ciência positiva e sua técnica objetivista, os quais se apresentavam como libertadores, entraram em declínio ao negar os valores simbólicos, estéticos e culturais do viver. A vida e suas relações, em nome da emancipação do gênero humano, foram vistas de modo secularizado. Essa mentalidade moderna com sua utopia racionalista, pragmática e totalitária, ambicionava substituir a religião, oferecendo objetividade às finalidades e sentido à vida humana. Criticou, então, as tradições. A religião foi rechaçada das esferas sociais e relegada a morrer no obscurantismo da vida privada. Segundo Giddens:

    Um tipo de certeza (lei divina) foi substituído por outro (a certeza de nossos sentidos, da observação empírica), e a providência divina foi substituída pelo progresso providencial. Além disso, a ideia providencial da razão coincidiu com a ascensão do domínio europeu sobre o resto do mundo.³

    O espírito humano e sua compreensão do direito natural passaram a reger a organização da sociedade e a estabelecer critérios padronizados. Formou-se a imagem do ‘super-homem’, o ator social capaz de criar organizações autorreguláveis, sempre que o indivíduo fosse integrado à estrutura social, permeada de papéis e de condutas funcionais. É a noção de ‘corpo social’ e sua solidariedade interna a definidora da superação de eventuais finitudes dos membros, via integração orgânica na vida coletiva (Durkheim). A sociedade e seus ‘indivíduos livres’ passaram a ser regidos e julgados pelas suas normatividades dentro de um círculo vicioso, tendo fins secularizados. Houve o rompimento com os ‘encantamentos místicos’, questionamentos aos valores transcendentais, tidos como hierárquicos, verticais e fantasiosos. Justificou-se que na horizontalidade do ‘consenso social’ estava presente o poder coletivo, não havendo súditos à vontade de ninguém, exceto na vontade de todos.

    Porém, a verdade nos mostrou que a pluralidade e a centralidade de hierarquias e poderes difusos, tão característicos nos sistemas modernos, ocorrem, também, nos ditos modelos democráticos. Na modernidade, ocorreu o domínio do sistema sobre os atores sociais, o que os levou a serem submissos ao todo e a sufocarem a sua subjetividade, acontecendo dominação em nome da razão esclarecida: O homem esteve tão ocupado tentando tornar-se um deus que acabou fascinado por seu próprio poder, identificando-se às suas obras⁴.

    Touraine ainda afirma:

    Assim a humanidade, libertada da submissão à lei do universo ou de Deus, permaneceu submissa à lei da história, da razão ou da sociedade. A rede das correspondências entre o homem e o universo não foi rompida: esta semimodernidade sonhava ainda construir um mundo natural porque racional.

    Sabemos que não há consenso em relação à compreensão da pós-modernidade. Entre observações, estabelecendo críticas e definindo consequências da modernidade, notamos que existem divergências quanto a já estarmos ou não na pós-modernidade. Apesar disso, gostaríamos de ressaltar algumas categorias básicas de análise, a partir de dois pensadores.

    Anthony Giddens expõe as descontinuidades (fragmentação), a superação de espaço e tempo (vazio, presença / ausência), os desencaixes (reflexividades), os sistemas abstratos (fichas simbólicas, sistemas peritos) e a confiança (compromissos com e sem rosto, riscos). Já, Alain Touraine faz referência à sociedade programada (massificação), à destruição do ego (morte do sujeito), à dissociação do sistema e atores (individualismo, guetos de resistência) e aos aparelhos de poder (leis e forças impessoais).

    Giddens e as consequências da modernidade

    Giddens, sociólogo e cientista social inglês, afirma que nossa época está na modernidade em estágio avançado, em mutação. Vivemos as consequências radicalizadas e universalizadas da era moderna. Independente das divergências entre os analistas, percebemos certas categorias básicas que permitem uma compreensão de nossa civilização planetária. Essas categorias permeiam as relações de poder e os domínios nas organizações e nas esferas sociais; encontram-se em constante dinamismo, gerando concentração econômica e massificação cultural. Apresentamos a seguir algumas das categorias propostas por Giddens.

    Descontinuidades - Os sistemas sociais e a história, envolvendo sua cultura e suas tradições, têm um desenvolvimento fragmentado, heterogêneo e dinâmico, nos quais observamos permanentes movimentos e intersecções de fatores. Ultrapassam-se, assim, as concepções teleológicas que enfocavam o viver social como linear, providencial, tendo um fim determinado e totalizante. Vivemos uma ‘historicidade’, na qual o passado é em parte conhecido, acolhido e rompido sob diversos aspectos, mantendo-se apenas os fundamentos cabíveis aos interesses do momento, dentro do sistema em mutação e avanço. A modernidade rompe e imprime mudanças em ritmos diferenciados e distanciados, apresentando saltos qualitativos e quantitativos na evolução histórica e social.

    Superação de espaço e tempo - Essas noções foram rompidas e relativizadas pela universalização das intencionalidades e dos alcances das estruturas corporativas. Ocorrem ocupações de locais e de momentos e exercício de influências sem estrutura geográfica e visualidade definida. Ocorre entrelaçamento entre o particular e o geral. Nesse relativismo marcado pelo ‘vazio’, oculto e difuso, o global é sinalizado pela sua ‘presença/ausência’ física, fazendo permanente recombinação de fisionomias. Percebemos essa globalização não só restrita ao econômico, mas atrelada também à dominação cultural e política através da ideologia presente nas comunicações, ou seja, (…) os mercados monetários globais de hoje envolvem direta e simultaneamente acesso à informação concentrada da parte de indivíduos bastante separados espacialmente uns dos outros⁶.

    Desencaixes - A sociedade-mundo passa a ser regida por contínuas mudanças em seus sistemas sociais, formando simbiose pelo permanente fluxo de novos conteúdos, frutos da ‘reflexividade’, em que a sociedade busca seu autoaperfeiçoamento. Novos ‘feixes organizacionais’ vão se formando a partir do conhecimento sistematizado, trazendo renovadas conexões e intersecções. O viver social torna-se movediço, em constante reformulação e apropriação progressiva de outros conhecimentos, construindo o aprendizado no âmbito das pessoas e dos grupos sociais. As legitimações ocorrem pelo crivo da razão, sendo aceitas via análise experimental e não pela tradição e pelo conservadorismo. Conforme afirma Giddens, (…) os mecanismos de desencaixe tiram as relações sociais e as trocas de informação de contextos espaçotemporais específicos, mas ao mesmo tempo propiciam novas oportunidades para sua reinserção⁷.

    Sistemas abstratos - A ‘complexidade’ do sistema abrangente e reflexivo ordena-se formando novas ‘engrenagens’ interligadas por uma organização racionalizada que supera as interações de contextos locais, atingindo amplitudes indefinidas. Formam-se relações anônimas, impessoais, permeadas por ‘situações de risco’ que se tornam, em parte, compreendidas e aceitas pela formação de relações de fé e de confiança devotada, depositando ‘crença entre ausentes’ no tempo e espaço planetário. Numa visão laica de ‘providência’, nutre-se a esperança de que a sociedade em sua ‘reflexividade’ é capaz de vigilância sobre si mesma, gerando um sistema autorregulado. Nas interações com estranhos e seus contatos efêmeros, marcadas por conexões desencaixadas e reencaixadas, a modernidade apresenta o seu característico esforço de produção e de controle, tendo os seguintes mecanismos:

    • ‘Fichas simbólicas’ (dinheiro, títulos, contratos…): representam elementos materiais nas relações humanas e sociais. Fazem a mediação e o intercâmbio entre contextos locais e imediatos e entre o global e o distante nas relações sociais que se encontram desencaixadas;

    • ‘Sistemas peritos’ (profissionais, cientistas, líderes…): envolvem a formação técnica, a especialização competente, o reconhecimento público de si e dos resultados de suas teorias de ensino, e as construções de objetos ou as prestações de serviços próximos ou distantes. Nutre-se uma fé pragmática, confiante e portadora de expectativa na eficiência e funcionalidade, legitimada pela experiência acumulada e rotinizada, como também pelo permanente aperfeiçoamento que acontece, impulsionado pela competição no mercado e na opinião pública.

    Confiança - O sistema social moderno está envolto por ‘complexidades’ em sua estruturação global descontínua, rompendo espaço e tempo com permanentes desencaixes e abstratos sistemas. Essa organicidade dinâmica do sistema necessita de um ente unificador e transmissor de sentido que dê a sensação de segurança em pessoas ou em organizações, ente no qual o indivíduo e a coletividade atribuam valor. Há a formação de uma expectativa com garantias e promessas envolvidas por atributos positivos e crédito em qualidades. Quando estabelecemos relações de confiança com um sistema, estamos nos envolvendo num tipo de ‘compromisso sem rosto’, imbuídos de referenciais preexistentes de funcionalidade satisfatória. Já ao firmarmos confiança com pessoas, estamos diante de um ‘compromisso com rosto’, tendo como base a boa conduta de outrem. Isso tem reflexo na confiança do indivíduo em si e no processo de correspondências mútuas, sinais de sintonia de envolvimentos e de respostas, o que revela as identidades dentro de uma interação de resultados e de compromissos comuns.

    Com o desenvolvimento dos sistemas abstratos, a confiança em princípios impessoais, bem como em outros anônimos, torna-se indispensável à existência social (…) Há uma forte necessidade psicológica de achar outros em quem confiar (…) o tecido e a forma da vida cotidiana foram remodelados em conjunção com outras grandes mudanças sociais. As rotinas que são estruturadas por sistemas abstratos têm um caráter vazio, amoralizado – isso vale também para a ideia de que o impessoal submerge cada vez mais o pessoal (…) A vida pessoal e os laços sociais que ela envolve estão profundamente entrelaçados com os sistemas abstratos de mais longo alcance (…).

    Estamos envolvidos por relações de liberdade e de responsabilidade entre o local e o global, entre conhecidos e anônimos. Não temos conhecimento pleno de todos os elementos de ‘encaixes e reencaixes’ desse sistema de relações sociais, em grande parte virtuais e nada palpáveis. Por isso, a avançada reflexividade humana, amparada por uma ultramoderna tecnologia e seus contínuos novos conhecimentos, não garante controle da complexidade que envolve os difusos ‘feixes’ de relações públicas e privadas em nossa época. Então, a confiança é relativa e permeada de ‘riscos’ e perigos de contingências humanas ou tecnológicas. Vive-se em permanente vigilância, buscando aprimorar mecanismos de segurança e controle de informação e de supervisão feitas por agentes sociais especializados e controladores. Há um incutir do potencial de eficiência dos sistemas abstratos, estabelecendo relações de confiança nos peritos entre si e em relação aos leigos. Há também mecanismos de camuflagem das vulnerabilidades, fazendo controle nos bastidores e na opinião pública. Mantém-se um círculo fechado no conhecimento técnico em nome da ‘ética profissional’, fato que gera no âmbito popular uma ampla gama de respeito e de zelo pelos ‘especialistas’. Cria-se a distância, podando o leigo de uma possível apropriação de elementos estratégicos, teóricos e técnicos. O apoio em dados positivos ocorridos numa rotina de resultados estáveis na aplicação dos sistemas abstratos torna-se fonte de legitimidade e transmissão de segurança.

    Como a massa encontra-se desprovida de erudição, só lhe resta ter crença, ignorando as possíveis finitudes e danosas falhas do sistema enigmático e envolvente, o qual, em nome do ‘controle dos meios de violência’ e segurança do Estado-Nação, no âmbito externo e interno, chega à ‘industrialização da guerra’, acentuando a ‘globalização dos riscos’. Perante as ansiedades existenciais e medos catastróficos em meio à modernidade racionalizadora e secularista, a sociedade envolve-se no paradoxo de se voltar à irracionalidade das compreensões míticas do passado, alimentando a passividade.

    Um senso de ‘destino’ de tonalidade positiva ou negativa – uma vaga e generalizada sensação de confiança em eventos distantes sobre os quais não se tem controle – alivia o indivíduo do fardo do engajamento numa situação existencial que poderia de outra forma ser cronicamente perturbadora. O destino, uma sensação de que as coisas vão seguir de qualquer forma seu próprio curso, reaparece assim no centro de um mundo que se supunha estivesse assumindo controle racional de suas próprias questões (…).

    Touraine e a crítica da modernidade

    Alain Touraine, sociólogo e cientista social francês, faz uma análise crítica da modernidade. Conclui que a evolução da humanidade, guiada pelo ‘reino da razão’ e ‘mito do progresso’, trouxe em si muitas relações de dominação e de submissão dissimuladas, superando as épocas anteriores. A modernidade deixou-se envolver pelo equívoco do ‘direito natural’, o qual priorizava o poder do homem sobre a natureza e sobre si mesmo. Criaram-se outras versões do sagrado, sendo os mitos modernos do poder da razão e da ciência instrumental responsáveis pelo processo de secularização, envolvendo o humano, o social e o divino em imanência. A modernidade, não conseguindo eliminar o sagrado, o substituiu pelo ascetismo de mudança e de transformação do mundo natural pelo desenvolvimento da razão científica. O ser humano é desafiado a desenvolver suas virtudes numa prática eficiente e produtora do progresso. Isso resulta num projeto de padronização social, no qual o legalismo justificou a repressão em nome da ordem. O valor da consciência direciona-se na interiorização de normas em nome de um pretenso consenso e reprodução da estrutura social, dirigido pela elite intelectual e dita esclarecida. Ignora-se a capacidade do indivíduo de ser sujeito capaz de transcender sua realidade momentânea e estabelecer nexos entre a sua liberdade individual e a coletiva.

    A ideia de modernidade sempre esteve associada à construção de uma sociedade primeiramente mecânica, depois transformada em organismo, corpo social cujos órgãos constituem para seu bom funcionamento, corpo sagrado e alma eterna que transformam o homem selvagem em civilizado, o guerreiro em cidadão, a violência em lei.¹⁰

    Touraine, tal como Giddens, propõe algumas categorias que servem como instrumento para o entendimento da sociedade em transição. São elas:

    ‘Sociedade programada’ - Vivemos na sociedade pós-industrial, que não é mais regida pela produção de bens estruturais (maquinarias), mas por uma geração de ‘micros’ de grandes potencialidades. Entramos na era da programação virtual que avança globalmente sobre os seres humanos, tornando o mundo um mercado global móvel. Forma-se a comunicação tecnológica produtora de informação dirigida, cuja linguagem e representações não formam o sujeito, mas o massificam e o dominam culturalmente. É a sociedade de massas regida por uma programação difusa de controle e cerceamento subjacente dos indivíduos. Há um planejado querer conquistador regido pelo senso do utilitário e dos resultados imediatos no consumo e no lucro. Nessa sociedade produtora do ‘descartável’ é incutida a necessidade de acesso às novidades tecnológicas produzidas e comercializadas na globalização. Conforme afirma Touraine:

    (…) uma sociedade dominada pela produção, consumo e comunicação de massa tende a reduzir os indivíduos a preencher papéis que outros definiram a eles, e, esta forma moderna de dependência, muito diferente daquela das sociedades tradicionais que submetiam o indivíduo a regras e ritos, é igualmente temível, mas é preciso acrescentar que é menos exigente e que a imagem da sociedade-máquina, sujeita a determinantes estritos, corresponde mais a representações antigas da ciência do que a suas expressões modernas (…).¹¹

    Destruição do ego - Numa sociedade em que a ideologia fecha os indivíduos numa rede regida pelo racional, técnico e pela padronização material, a formação da subjetividade é bloqueada. Vulgarizam-se os valores humanos, flexibilizando e padronizando novos comportamentos despersonalizados, ao mesmo tempo em que destrói a possibilidade de ser sujeito. Isto é, nega-se à pessoa a possibilidade de ser construtor de sua autonomia e identidade, tendo princípios próprios que norteiam o seu pensar e o seu agir. Há uma fragmentação do viver, no qual são cerceadas as possibilidades do indivíduo ser aberto ao histórico e formador de ‘subjetivação’, como ator social transformador, vivendo com identidade própria e não sendo mero reprodutor de relações. A modernidade é envolvida pela ideologia de ‘morte do sujeito’, o que inviabiliza a formação de uma visão crítica e o construir de um viver consciente, apoiando a liberdade pessoal numa razão dinâmica de abertura aos variados valores e dimensões do existir. O triunfo da modernidade tecnificada significa seu enfraquecimento humanitário e libertador, devido ao desprezo às culturas locais e aos seus sujeitos. O sujeito perdeu-se no domínio generalizado do individualismo e na cultura de massas com seus desencantamentos. Ainda, segundo Touraine,

    o esgotamento da modernidade transforma-se com rapidez em sentimento angustiante do sem sentido de uma ação que não aceita outros critérios que os da racionalidade instrumental (…) numerosos intelectuais denunciaram o domínio do instrumentalismo e do culto à técnica e à eficiência. Essas críticas se baseiam sobre a consciência do declínio da razão objetiva da visão racionalista do mundo, comandada ou não por um deus racional, fiador da capacidade da nossa razão de compreender as leis do mundo (…).¹²

    Dessa forma, não houve diálogo, mas rompimento com a tradição (memória histórica) e a preservação de valores transcendentais que permeiam a dinâmica das pessoas em sociedade. Rejeitou-se a necessidade de formação do sujeito que tenha como projeto viver em comunhão com o sentido racional, inerente à natureza humana: Sem a Razão, o Sujeito se fecha na obsessão da sua identidade; sem o Sujeito, a Razão se torna o instrumento do poder¹³.

    Dissociação sistema e atores - Em nome da liberdade e concepções democráticas camuflam-se os mecanismos de submissão e de dominação, crescendo a influência do sistema sobre os atores sociais. Ocorre ‘comunicação dirigida’, que leva ao consumo de bens e à absorção da ideologia de concordância ao todo, integrando os indivíduos na estrutura mecanicista do sistema. Passa-se do controle tradicional de autoridade ao enfoque moderno racionalizado e também centralizado, criando-se relações instrumentais. O indivíduo é ator se, em seu individualismo, conquistar espaço e exercer papéis estratificados no conjunto da sociedade, fazendo conexão entre seu desenvolvimento pessoal e a conquista de integração social. Este projeto seccionado torna-se permeado de relações tencionadas. Enquanto não eclodir uma crise grave, vive-se a tolerância e a resignação ou passividade concordante entre grupos. Assim, as sociedades modernas estão em permanentes tentativas de aperfeiçoar seus mecanismos de segurança repressiva, levando, muitas vezes, às barbáries. Isso reflete a existência de uma ‘sociedade burguesa desorientada’ pelo excesso de zelo atribuído às capacidades de seus especialistas (‘determinismo tecnológico’).

    A sociedade moderna em crise está tão cheia de deuses em guerra quanto de técnicas, e as violências que transtornaram o século XX deveriam nos preservar desta imagem que coloca (…) o profissional no topo da sociedade (…).¹⁴

    Portanto, na modernidade não houve relações de sujeitos, mas tensões da objetivação técnica. O sistema submete os atores formando dicotomia e submissão da pessoa e dos seus valores subjetivos à realidade economicista. O indivíduo tem valor enquanto força produtiva e consumidora dentro da máquina planejada do sistema que manipula a natureza e as pessoas. Nessa lógica corporativa, o indivíduo é estagnado e não tem condições de ser sujeito. A modernidade mostra um processo histórico de ruptura e de dominação entre os indivíduos, a sociedade e a natureza, permeados pelo combate à tradição e seus enfoques místicos. Enfim, a padronização cerceia a abertura de canais de participação popular em sintonia com as diversidades culturais, pluralidades étnicas e direito das minorias. As sociedades modernas, na prática, carecem de parâmetros de organização democrática capazes de criar relações de sujeitos e cidadãos.

    Num incessante fluxo de mudanças, as noções de sociedade estão sendo submersas pelo projeto de mercado globalizado regido pelo consumo e pelo lucro. É o neoliberalismo produzindo um ‘mercado sem atores’. Diante desta sistêmica massificação, a exclusão de contingentes, já subalternos, provoca como reação a formação de ‘guetos’ de resistência contra cultural à ‘anomia’ social. Não se descartam as reações extremadas.

    Enquanto a lei do mercado esmaga sociedades, culturas e movimentos sociais, a obsessão da identidade se fecha numa política arbitrária tão completa que ela não pode se manter senão pela regressão e pelo fanatismo.¹⁵

    Aparelhos de poder - A gestão estratégica racionalizada suplantou as normas tradicionais, realizando um domínio instrumental dos indivíduos em sua subjetividade, através de mecanismos e lógicas de poder em nome da razão. Isso foi regido por ‘leis impessoais’. Na sociedade de massas, as táticas de concentrações difusas de poder tornaram-se o perigo obscuro, já que estabeleceram relações clientelistas e alienantes. Na sociedade das novas tecnologias e comunicações homogeneizadoras, os bens simbólicos seculares ou secularizados superaram a capacidade de mediação, antes exercida por elementos sensíveis e materiais nas relações humanas e sociais. Essa nova força marcada pelo simbólico aparelhou sistemas de dominação cultural e econômica envolvidos pelo fetiche aos bens ultramodernos de alcance massivo e universal, formando relações virtuais de longa distância e anônimas. Consciente ou ingenuamente, todos vão sendo envolvidos pelo ‘espírito de conquista’ e pelo controle que exercem estes mecanismos dissimulados de poder. Colocou-se, no centro diretivo da sociedade, a ciência racional formadora de nova crença guiada pela compreensão naturalista do homem e do mundo. Essa secularização nutriu as novas elites dirigentes em suas convicções iluministas. Dessa forma, a utopia da modernidade rompeu com a tradição, uma vez que tirou o divino como princípio de juízo normatizador e fonte de valores do viver social

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