Imagens Urbanas: Mangue, Tabuleiro, Cidades
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Imagens Urbanas - Helmir Oliveira Rodrigues
Editora Appris Ltda.
1ª Edição - Copyright© 2018 dos autores
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COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS
À Sergiane, Guilherme e Gabriela (todo amor que houver nessa vida).
Aos meus pais: João Batista e Iracema.
Agradecimentos
À minha companheira, amiga, esposa, Sergiane, pela sua generosidade, amor e apoio incondicional, demonstrados ao longo desses últimos anos e por compartilhar, cotidianamente, junto com nossos filhos Gui e Gabi, a construção de nosso modo de viver em família.
Aos meus pais, Iracema e João Batista, os quais sempre me proporcionaram as condições possíveis para que trilhasse meus passos. E aos meus irmãos: Helder, Hildon e Heviton.
A Luis Antonio Baptista, pela parceria, amizade e pela atenção inquietante na orientação da tese de doutorado, da qual deriva este livro. E, sobretudo, por intensificar em mim as forças que apostam na escrita como ferramenta ético-política de interferências na vida.
A Kleber Matos, grande amigo, parceiro de pensamentos e questões sobre a cidade em que insistimos habitar e pensar de formas outras.
Ao Coletivo Jurema, grande intercessor para a escrita deste livro (Maicon, Pedro, Gabriel, Elton, Joãozinho, Veridiana, Bia, Leo, Poliana e Tiago).
E aos amigos: Bruno, Eder, Hevelyn, Brunão, Ricardo, Diego, Danilo, Suzzi, Mariana, Allyne, César, Kyzze, Leo Shibata, Dido, Kalyne.
Acredito, porém, que os rios que percorrem o imaginário do meu país cruzam territórios universais e desembocam na alma do mundo. E nas margens de todos esses rios há gente teimosamente inscrevendo na pedra os minúsculos sinais da esperança.
(Mia Couto, E se Obama fosse africano?)
Prefácio
A cidade definida como cenário, o solo neutro onde se realizaria o esplendor ou o fracasso do Sujeito; a urbe como o espaço social determinante para a modelagem da ação humana são funções recusadas neste livro. O autor aproxima-se, entre outros escritores, de certa literatura presente na Brasília de Clarice Lispector, na Paris de Charles Baudelaire, no Rio de Janeiro de Manuel Bandeira, na Recife de João Cabral de Melo Neto. Para eles, a cidade não representaria, ou expressaria mazelas, belezas da essência do humano; afastar-se-ia de ser o assentamento onde símbolos da alma estariam à espera de um hermeneuta. Para os autores citados, a urbe recusa definir-se, à semelhança de um espelho, como superfície a refletir os mistérios do espírito, ou de uma abstrata sociedade. A cidade seria um potente artefato humano que os espanta, aturde, corta, como um fio afiado, verdades inquestionáveis. O aturdimento que interfere na função soberana do autor a decifrá-la, ou observá-la como um deus criador. Nesta obra de Helmir Rodrigues, escrita na terceira pessoa, um forasteiro andarilho profana o sagrado espaço acadêmico; o espaço sacro onde pesquisadores encarnam a função de aprendizes de deuses que tudo veem; dos entes artífices da escuta que desvela e decifra. O forasteiro errante recusa assemelhar-se ao escritor protagonista do olhar do qual a metrópole não responderia à sua escrita, não macularia o seu corpo. O andarilho neste livro-ensaio possui a materialidade de um corpo que se deixa contagiar pelos acontecimentos inesperados; a curiosidade dos mortais, movida pelos encontros e desencontros da cidade urdida na imanência.
Para Clarice, Baudelaire, Bandeira e João Cabral, a paisagem urbana dos cartões postais não os satisfaz, não os conforta; desejam mais de uma cidade. A cidade não se localizaria no mundo exterior, solicitando suas habilidades criativas, nem em latência dentro do mundo interior à espera de identificações, projeções ou do autoconhecimento. Desejam a transtornante invisibilidade da urbe. Do invisível das ruas, assim como para Helmir Rodrigues, encontram o estranhamento ao mundo dito real; são contagiados por apelos inusitados, por dores e formas de dissipá-las pondo à prova os limites do perceptível. Almejam o invisível produzido pela ficção que interfere na compacidade das verdades naturalizadas do senso comum, a ficção que multiplica sentidos e inventa formas inusitadas de lutas. Na obra de Helmir Rodrigues, personagens contam histórias cotidianas do passado e do presente de Aracaju; narrativas que seduzem e convidam o leitor a continuar a contá-las ultrapassando as fronteiras da urbe do Nordeste brasileiro. O autor, inspirado em Walter Benjamin, faz o convite para continuarmos a interferir nas histórias que não se esgotam um ato ético.
Neste livro, a visibilidade da capital de Sergipe, apresentada na mídia, nos compêndios de geografia, nos panfletos turísticos é inexistente. Helmir Rodrigues, na aposta de uma escrita ensaística, torna-a estranha a uma região específica, às identidades culturais, à urbe criada pelo mercado da especulação imobiliária. Helmir conta histórias do cotidiano sergipano; relembra mitos da tradição afro-brasileira que persistem no dia a dia; narra histórias dos criadores de utopias do mercado imobiliário para tornar a cidade bela; argumenta sobre os fracassos dessas utopias no passado, assim como as lutas contra a violência do embelezamento urbano na atualidade. O leitor não reconhecerá a pequena cidade do Nordeste; do ensaio, terá como legado o vigor do invisível de uma cidade para pensar sobre os apelos do agora. Refletir acerca das urgências, dos perigos da atualidade também é a aposta ética do autor. Dos mangues, do rio, das ruas, inspirado no desdobramento intensivo legado por certa literatura, Helmir propõe a atenção à barbárie do mercado e os possíveis enfrentamentos a esta lógica de acumulação de capital.
A capital da república, narrada por Clarice no conto Brasília: esplendor, recusa ser um mero objeto de observação: Morri. Morri assassinada por Brasília. Morri para pesquisar. Rezem por mim. Rezem por mim porque eu morri de costas.
Após a morte na pesquisa, afirma a autora: Brasília é alerta. Prestem atenção ao que digo. Brasília não vai terminar nunca. Eu morro e Brasília permanece. Com nova gente, é claro. Brasília é novinha em folha
. A cidade de Aracaju pesquisada por Helmir também é interminável. O não vai terminar nunca
a mostrar o paradoxo do mito do progresso que permanece anunciado pelo novo, ao lado dos embates que indicam a falência das suas promessas. O interminável produzido por mapas nos quais afetos, histórias não oficiais, embates, desenham suas linhas, sempre provisórias. Cartografia que, como em Clarice, também indica o assassinato cometido pela racionalidade do olhar sobre as cidades quando suas bordas são feitas pela arrogância de uma ideia. A permanência de Brasília alerta para as ciladas do novo, para o desejo do mercado em fazer do passado algo a ser ultrapassado. O novo ausente das problematizações da história ao presente; ausente das interpelações do passado inacabado quando despreza a urdidura incansável do cotidiano. O novo, como a utopia modernista que inventou Brasília, como a que criou a Orla Pôr-do-Sol em Aracaju erguida sobre o mangue, sobre as tramas miúdas da história não oficial. Clarice alerta que utopias matam e persistem. Helmir Rodrigues ratifica essa assertiva e acrescenta os embates contra essa violência também.
Charles Baudelaire, na carta ao editor para a publicação dos Pequenos Poemas em Prosa, escreve: Qual de nós, em seus dias de ambição, não sonhou com o milagre de uma prosa poética, musical sem ritmo e sem rima, bastante maleável e bastante rica de contrastes para se adaptar aos movimentos líricos da alma
. Paris mudava drasticamente; o ritmo da circulação nas ruas, demolições, o frenético movimento das multidões anunciavam o fim da harmonia da estabilidade da experiência urbana. Baudelaire, contagiado pelas drásticas transformações, incorporou em sua literatura a fragmentação do tempo e de espaço da nova era. A harmonia das rimas dava lugar ao ritmo fragmentado da Cidade Luz. A cidade projetada pelo barão arquiteto Hausmann para ser a realização da utopia do progresso não foi indiferente ao poeta francês. Na contramão da utopia realizada por Hausmann, Baudelaire incorporou, em sua prosa poética tipos, personagens das ruas banidos pelas luzes do progresso. Helmir Rodrigues, inspirado no poeta francês, também incorpora em sua escrita personagens estranhos à história oficial de uma cidade. O velho negro contador de histórias, entre outros personagens, apresenta ao leitor a urbe noturna não iluminada pelas luzes do mercado.
Manuel Bandeira, no Poema do Beco, afirma: Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? O que eu vejo é o beco
. Do seu apartamento na Lapa, bairro do Rio de Janeiro, Bandeira desloca a atenção do leitor da visibilidade aprazível da paisagem carioca para o espaço embaçado, não sedutor da urbe carioca. O poeta, em um comentário sobre o poema, justifica o porquê do beco percebido da sua janela: becozinho sujo, embaixo, onde vivia tanta gente pobre – lavadeiras e costureiras, fotógrafos do Passeio Público, garçons de cafés
. Neste livro, o beco está presente na contramão dos horizontes urbanos que imobilizam o olhar, impedem a errância, amansam o corpo do pesquisador quando neutralizam o impacto de acontecimentos estranhos a um roteiro determinado. Do beco sujo, a cidade desdobra-se. No beco atravessado pelo acaso, pelo infinito das narrativas cotidianas, Aracaju, Rio de janeiro, Berlim, entre outras cidades, tornam-se irreconhecíveis, intensas, perigosas para as utopias que desprezam histórias sujas de mundo.
João Cabral de Melo Neto, no poema O Cão sem Plumas, afirma: Antes de ir ao mar o rio se detém em mangues de água parada. Junta-se o rio a outros rios numa laguna, em pântanos onde, fria, a vida ferve.
Nesse poema, sobre o rio Capibaribe, o poeta alerta: O que vive incomoda de vida o silêncio, o sono, o corpo que sonhou cortar-se roupas de nuvens. O que vive choca, tem dentes, arestas, é espesso como um cão, um homem, como aquele rio
. Helmir Rodrigues em sua obra relata o avanço das águas do rio Sergipe sobre a calçada da Avenida Beira-Mar, localizada em um bairro nobre da capital sergipana. O mangue aterrado revoltava-se. A utopia da cidade bela, moderna, era maculada por detritos de histórias de tempos dissonantes. A fúria das águas invadia a paisagem sem becos. À semelhança do poeta pernambucano, a vida fervia. Neste livro, a escrita é espessa como um rio, ferve como o mangue.
Luis Antonio Baptista¹
Apresentação
O momento de apresentação de um livro não é tarefa tão fácil. Ocasião em que devemos deixar a par o leitor do que lhe espera nas próximas páginas, ao longo de todo o texto desta obra. Sendo, por isso, motivo de ser a última parte a ser feita. Não caberia a este momento um formato no qual o texto fosse repartido numa linearidade, iniciada pela apresentação do problema ou hipótese de pesquisa, seguida da descrição, de forma breve, sobre o que trata cada um dos capítulos; para, no final da apresentação, dispor, também de forma breve, os principais resultados alcançados, e se isso responderia ou não à hipótese inicial do trabalho. Desse modo, optei por um começar trazendo uma questão inicial, seguida de uma longa narrativa, como forma de advertir o leitor sobre o que lhe aguarda neste livro.
O uso da narrativa talvez tenha a ver com essa dificuldade da ocasião. Porém também trago, no que fora contado, questões que envolvem este livro, que são ditas mais de uma vez, ao longo do texto. Não uma mera repetição, e sim uma forma de contá-las de novo, de tecer outras histórias a partir delas.
Do que trata, de uma forma geral este livro? Tomo a cidade como espaço de problematização do presente. O objetivo é analisar os processos atuais de transformação e as práticas de normatização do espaço urbano, que têm ocorrido na cidade de Aracaju. A partir do conceito de heterotopia de Michel Foucault, a cidade é pensada como em sua heterogeneidade, composta por espaços distintos, que se justapõem e que estabelecem uma relação de tensão e conflitos entre si, criando rupturas no contínuo da vida citadina. Adoto o mangue e o rio, que cortam a cidade, como produtores dessa tensão, que faz tremer o presente da