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3020 - A Conspiração de Atlântida
3020 - A Conspiração de Atlântida
3020 - A Conspiração de Atlântida
E-book495 páginas8 horas

3020 - A Conspiração de Atlântida

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Sobre este e-book

3020. Muitos anos após a Guerra do Milénio, um período negro, marcado por guerras, doenças e catástrofes naturais, a humanidade descobre, a poucos quilómetros da costa portuguesa, uma fonte limpa e inesgotável de energia e constrói a Plataforma Experimental Energética Atlântida ou, mais simplesmente, como havia de ficar para sempre conhecida: Atlântida.


Fruto dos enormes avanços científicos e tecnológicos a humanidade alcançara, no início do quarto milénio, um período único de paz, prosperidade e qualidade de vida. No entanto, a morte de uma pessoa e o misterioso desaparecimento dos seus dados pessoais vão desencadear uma inesperada sucessão de acontecimentos que poderão vir a ditar uma nova realidade em todo o mundo.


Conseguirão a tecnologia e a ciência encontrar o segredo para um novo futuro?

IdiomaPortuguês
EditoraCultura
Data de lançamento2 de ago. de 2020
ISBN9789898979537
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    3020 - A Conspiração de Atlântida - R. C. Colaço

    altas.

    Primeira Parte:

    Sábado, 15 de janeiro de 3020

    Não menosprezes a pedrinha que rola

    pela encosta da montanha,

    pois dela poderá nascer a avalanche.

    Li Hong

    Filósofo e político chinês do Século XXIII,

    fundador da corrente emocionalista

    no pós-Guerra do Milénio.

    Bloco 1

    O novo campeão

    O dia anterior fora longo e não havia terminado ainda. 14 de janeiro de 3020, uma sexta-feira, tinha começado às nove horas da manhã para Jonas X.

    O jovem cadete da Agência de Resolução de Problemas, a ARP, alto, magro como uma linha, de olhos claros, semi-escondidos por baixo das longas madeixas onduladas de cabelo castanho claro, tinha pedido o dia de folga à diretora Teresa Malheiro, que lho havia concedido. Era o dia em que seria disputada a fase final do campeonato mundial humano de xadrez aleatório, o xadrez de Fisher, a variante mais complexa deste jogo, inventado algures na Ásia havia mais de três mil anos. Era a primeira vez, em mais de cem longos anos, que um grande mestre lusitano chegava a esta fase do torneio, e logo um cadete da ARP. Jonas X, havia conseguido juntar-se aos duzentos e cinquenta e seis grandes mestres, provenientes de todos os locais do planeta que haviam chegado a esta fase. A dura diretora da ARP não tinha como recusar o pedido de concessão de folga.

    Jonas X era praticante amador de xadrez de Fisher desde que, aos cinco anos de idade, a bisavó, Hanna X, o havia ensinado a jogar. Nesta variante do xadrez, em cada partida as peças da primeira linha eram dispostas de maneira aleatória e, desse modo, existiam novecentas e sessenta posições iniciais diferentes para cada jogo. Cada partida tinha pois um começo diferente, tornando impossível a um humano memorizar todas as aberturas de xadrez e suas sequências. Era por isso virtualmente impossível a um humano vencer a uma máquina de xadrez, mesmo às de menor memória, e era esse precisamente o desafio que o jovem Jonas sentia desde criança. Havendo neste jogo uma fronteira clara entre campeonatos só com humanos e campeonatos só com máquinas, Jonas X tinha estabelecido para si próprio o grande objetivo de se tornar o primeiro humano nos últimos nove séculos a vencer um jogo de xadrez virtual à máquina campeã.

    Era um objetivo utópico, Jonas sabia-o, inatingível, diziam-lhe muitos. Mas a bisavó tinha-lhe ensinado que o xadrez não era só, nem sobretudo, memória. Era um jogo complexo inventado por humanos e por isso era um jogo de emoções, de inteligência. Emoções e inteligência que, desde a Guerra do Milénio, às máquinas estavam vedados. E era por isso, Jonas sabia-o, que mais cedo ou mais tarde haveria um humano que derrotaria uma máquina neste jogo, mostrando que a chave era a emoção e a inteligência e não a inatingível memória, em que as máquinas eram imbatíveis. Mas a verdade é que não só Jonas não tinha conseguido ainda provar a sua teoria do jogo como, para já, tinha uma tarefa mais imediata e também inigualavelmente difícil: ganhar as próximas partidas tornando-se campeão mundial de xadrez aleatório humano.

    Passavam dois minutos da meia-noite e o dia 15 despontava, quando Jonas X, exausto, acabou de ganhar a penúltima partida do campeonato. Entre as nove da manhã e a meia-noite tinha disputado sete semifinais de duas horas, com pouco mais de dez minutos de intervalo entre cada partida. Tinha-as vencido uma após outra, e agora aproximava-se o momento da final. Sentia-se cansado, mas ao mesmo tempo com o fervor da excitação dentro de si. Estava há catorze horas na sala virtual do torneio, totalmente concentrado, saindo para a realidade apenas por breves minutos, para comer e beber alguma água.

    O pavilhão virtual do torneio estava cheio de avatares para assistirem ao jogo da final. Mais de dois milhões de pessoas, espalhadas por todo o planeta, haviam pago pelo privilégio de poderem entrar com os seus avatares no pavilhão virtual para assistir à partida final. Jonas olhou em volta e reconheceu alguns dos avatares, sobretudo os que estavam mais próximo do tabuleiro da final. Rui e Pietra, fazendo-lhe sinais de incentivo. A bisavó Hanna e Giovanna que, entusiasmadas acenavam de forma quase embaraçosa a Jonas. Colegas da academia exprimiam o seu apoio lançando emojis para o ar, que pairavam como balões pelo pavilhão virtual.

    Ao fundo pareceu-lhe ver o avatar do amigo António. Tentou focar, procurar de novo, contactar o registo de vida do amigo. Mas não conseguiu. Tinha-o perdido e agora não tinha tempo para pensar se tinha visto mesmo António ou não. Tinha de se concentrar. O general Pedro Bistro também lá estava, fácil de reconhecer por a sua figura avatar ser ele próprio, imóvel, esperando pela final. Devia ser também um grande apreciador de xadrez, pensou Jonas, porque havia reparado que o avatar do general esteve presente no pavilhão virtual desde o início do torneio.

    O trio de juízes aproximou-se dos dois grandes-mestres finalistas: Jonas e uma rapariga de nome Fátima. Fátima era uma jovem árabe que era a grande revelação do xadrez mundial neste ano de 3020. Os avatares de Jonas e Fátima observaram-se em silêncio durante alguns segundos. Dado que aos competidores apenas era permitida a imagem avatar deles próprios, a mútua observação era tão próxima da observação real que se justificava. Fátima envergava um bonito xador azul escuro, bordado a ouro. Era pequena e franzina, e tinha um olhar triste mas excecionalmente penetrante para alguém tão novo: a informação do seu registo de vida indicava quinze anos acabados de fazer. Os adversários foram interrompidos pelo juiz-mestre.

    Têm quinze minutos para descansar e preparar a vossa partida. O vencedor será o campeão do mundo de 3020, disse o juiz-mestre solenemente.

    Jonas tirou da cabeça o sistema de comunicação virtual e desconectou o seu registo de vida. De imediato passou do pavilhão virtual, onde o torneio decorria, para o seu aposento na academia da Agência de Resolução de Problemas, situado no quinquagésimo andar da Torre de Lusitânia. O contraste entre o pavilhão virtual do torneio e o quarto real que Jonas habitava não podia ser maior. O quarto de Jonas X – com as medidas-padrão dos quartos dos cadetes do quinto ano da academia, vinte metros quadrados, mais o pequeno lavabo – estava totalmente caótico: garrafas de água e recipientes de xérem estavam espalhados pelo chão conjuntamente com roupa e restos de barras alimentares de todos os tipos. A cama estava caótica e a secretária idem.

    "Tenho de tratar disto amanhã, tenho de ver se alguém me empresta um DAD⁴ para cá vir" pensou o jovem Jonas, dando um pontapé num recipiente vazio de xérem quente.

    Bebeu água e tomou um rápido banho quente, comeu uma barra de energia. Depois abriu mais um recipiente de xérem quente e esperou quinze segundos para que a reação exotérmica da bebida em contacto com o ar ocorresse e libertasse o calor necessário para que o líquido ficasse a sessenta graus. Xérem quente, a bebida que se autoaquecia, era um dos refúgios de conforto do jovem Jonas. Os dois minutos que levava a beber o pequeno copo de xérem quente sempre lhe haviam permitido reorganizar as ideias. A maioria dos jovens do seu tempo preferiam xérem frio (a bebida arrefecia logo que se abria o recipiente, dado que, neste caso, a reação da bebida em contacto com o ar era endotérmica). Mas Jonas, talvez por influência da bisavó Hanna, só tomava xérem quente. Quando terminou de beber o último gole, sentiu-se pronto para a final.

    Vamos lá vencer isto! pensou Jonas, registando o pensamento no seu registo de vida.

    Fátima, a adversária, ameaçava tornar-se – ou talvez já o fosse até – numa nova lenda do xadrez humano. Antes dos quinze anos tinha-se tornado grande mestre, vencido vários torneios de xadrez humano com grandes campeões, vencido a máquina simplex, a campeã das máquinas em xadrez normal. Todos os apostadores abertos de MagnaCella davam, antes do torneio começar, Fátima como uma das grandes favoritas, com base nas previsões feitas pelas máquinas racionalizadoras. Quanto a Jonas, antes do torneio começar, não surgia sequer entre os cem primeiros nomes favoritos para o torneio. Ele, Rui e Pietra haviam apostado todas as suas economias na sua vitória, quando foi aprovado para a final. Caso ganhasse ficariam com um enorme pé-de-meia. Estar na final era pois em si mesmo já uma vitória e mais uma demonstração da lei fundamental da psico-história: o indivíduo é imprevisível. Mas Jonas queria mais. Queria a vitória final e sabia que estava ao seu alcance. Lembrou-se das palavras da bisavó Hanna quando era pequeno:

    Jonas, o xadrez de Fisher é memória, concentração e… paixão.

    Jonas introduziu-se novamente no sistema de comunicação virtual, conectou-o ao seu registo de vida e, automaticamente entrou no pavilhão do torneio. Estavam ainda mais avatares agora. Distribuídos por todo o espaço da hemisfera, em volta do tabuleiro da final, deviam estar agora perto de três milhões de avatares.

    Assim que Jonas chegou ao centro do pavilhão virtual, os juízes, ao sinal do juiz-mestre, iniciaram o procedimento de seleção aleatória da distribuição das peças no tabuleiro. Quando olhou para o resultado Jonas não podia acreditar: jogara naquela variante há menos de um mês contra o seu amigo Rui. A probabilidade ínfima de tal ocorrência tinha acontecido. Olhou para o avatar de Rui não muito longe do centro do pavilhão. Rui estava com a boca aberta. Depois recompôs-se e fez-lhe um sinal discreto dizendo:

    Calma Jonas, concentra-te.

    Jonas sabia que os seus principais inimigos agora eram o cansaço e a desconcentração. E a configuração do jogo ser conhecida podia ser uma vantagem, mas também um fator de distração.

    Fátima, com o rosto impenetrável, olhava o tabuleiro. Tinha as peças brancas. Ao sinal do juiz-mestre fez a primeira jogada: peão e4 (abertura do peão do rei, com torre atrás, configuração aleatória). Jonas respondeu c5 (defesa siciliana, com bispo atrás, configuração aleatória). Durante as duas horas seguintes o jogo foi intenso. À uma hora e cinquenta e dois minutos da manhã de dia 15 de janeiro de 3020, Fátima, incrédula tombou o rei e sorrindo, mas chorando incontrolavelmente, levantou-se e deu os parabéns a Jonas. Os dois grandes-mestres estavam ambos exaustos. Mas Jonas era, o inacreditavelmente inesperado vencedor.

    O pavilhão veio abaixo com aplausos e emojis de vitória. O juiz-mestre entregou-lhe o título que passaria a constar da abertura do seu registo de vida durante um ano, e o correspondente valor pecuniário, que era muito significativo. A esse somava-se o valor das apostas. Jonas agradeceu, primeiro incrédulo, depois caindo em si. Procurou a bisavó em redor mas não a conseguiu ver, tal era a confusão. Era o novo campeão mundial de xadrez aleatório. Jonas disse então a Fátima, através do seu registo de vida (que traduziu de imediato para árabe):

    Muitos parabéns. Foi o jogo mais difícil em que participei. És uma grande campeã e serás maior ainda daqui a alguns anos. Terás o meu respeito e admiração para sempre Fátima.

    A jovem pareceu surpreendida. Depois limpou as lágrimas que lhe escorriam incontrolavelmente e em silêncio pelo rosto. Sorriu para Jonas e saiu do pavilhão do torneio. No registo de vida de Jonas apareceu:

    Foi uma honra jogar contigo, espero jogar muitas vezes mais. Muitas. E ganhar-te muitas vezes mais do que as que irei perder, seguida de um emoji sorridente.

    O torneio de xadrez de Fisher humano de 3020 estava concluído e tinha um novo campeão: um jovem cadete da Agência de Resolução de Problemas da Federação Lusitana, Jonas X.

    Enquanto tudo isto se passava, algures no meio do oceano Atlântico, a mais de setecentos quilómetros da Torre de Lusitânia, os acontecimentos que iam mudar a vida de Jonas ainda mais do que a vitória no campeonato de xadrez, estavam a ocorrer. Mas não era só a vida de Jonas que ia mudar. A grande roda da fortuna, tinha começado a girar.

    DAD: dispositivo de apoio doméstico.

    Bloco 2

    A mensageira

    Sobre o negro horizonte, ondulado pelo perfil das montanhas a oriente, começava a surgir um esplendor alaranjado que ia aclarando o azul do céu acima. Era o anúncio do novo dia que começava: 15 de janeiro de 3020. O avecarro, proveniente de Roma, aproximava-se da capital em velocidade de cruzeiro, trazendo como única ocupante a chanceler da Segurança da Federação Lusitana, Marta Vincenzo.

    Que lindo que isto tudo é!, pensou Marta Vincenzo, espreitando pela janela à medida que o avecarro se aproximava de Lusitânia.

    Apesar dos seus setenta e nove anos, já concluídos, e de milhares de aproximações e descidas que tinha feito sobre Lusitânia ao longo da sua vida, Marta continuava a desfrutar cada uma delas como daquela primeira vez, bem gravada na sua memória, em que, menina de seis anos apenas, o tinha feito na companhia do seu pai. Talvez agora ainda desfrutasse mais do que há alguns anos.

    As serras da Estrela e da Gardunha, vistas do ar, com os seus picos pintados de branco e as encostas cobertas de pedras e gigantescas árvores dispersas, descendo até à cidade da Covilhã e prolongando-se até ao Tejo, que serpenteava um pouco mais abaixo, vistas do ar, às primeiras horas da manhã, eram uma maravilha única de saborear. Sobre a encosta, a Covilhã, cidade da tecnologia, como era conhecida, acordava àquela hora matinal em que as sombras das serras recuavam para darem lugar ao pleno dia. A baixa altitude, em que a aeronave de Marta já se encontrava, permitia distinguir os rebanhos de cabras e de ovelhas, que desde tempos imemoriais pastoreavam por aqueles sítios, alimentando-se de ervas da encosta, enquanto os DARs⁵ se encarregavam de os guardar.

    Há muitos anos, eram homens, chamados pastores, que desempenhavam as funções dos DARs, sabias Marta?, tinha-lhe dito o pai certa vez, há muito tempo, quando era ainda pequena.

    Marta nunca mais havia esquecido essas histórias: os pastores que conheciam todas as pedras das encostas da serra, os riachos com a água mais fresca e pura, o sítio dos abrigos da montanha onde faziam o queijo só com leite e cardo, onde construíam as flautas de cana que tocavam enquanto guardavam os rebanhos. Marta, lembrava-se de, durante certo período da sua infância, ter desejado ser pastora, como nesses tempos antigos. O pai tinha-se rido a bom rir, quando ela tal lhe confessara. Tinha sido há mais de setenta anos, mas Marta tinha a cena tão presente na memória como se tivesse ocorrido há um dia.

    A memória é caprichosa, pensou, "e não o é menos agora do que foi antes, só por termos registos de vida".

    Tornou a olhar pela janela da aeronave. Reparou no Lago Azul, em frente, a oeste da cidade de Lusitânia. O Lago Azul abria o verde da floresta nativa em seu redor como se de um resplandecente espelho de céu se tratasse. Depois do Lago Azul, a floresta estendia-se até onde a vista alcançava, povoando a terra em direção a Leiria, prosseguindo até junto do oceano Atlântico, onde ainda se viam as luzes da cidade da Nazaré, que se estendiam até à lagoa de Óbidos, um pouco mais abaixo, e que agora se começavam a apagar com a chegada do dia. A maioria das povoações que muito antes haviam existido junto à linha da costa tinham desaparecido há sete ou oito séculos com a subida das águas. Mas a Nazaré, com uma parte alta, havia sobrevivido e agora prolongava-se até à lagoa, sendo o local da preferência de grandes grupos nómadas que ali montavam casa durante algum tempo, sobretudo para usufruir das enormes ondas do oceano que ali se formavam.

    Da janela oposta do avecarro, Marta avistou o serpenteante rio Tejo que, àquelas horas da manhã, se anunciava lançando um manto da neblina da sua água aquecida pelos primeiros raios de Sol nas encostas dos montes que o encaminhavam. A floresta do Arripiado começava mais abaixo, depois das milenares portas do Rodão, estendendo-se até às planícies douradas do Alto Alentejo, a Sul. Marta, calmamente, sem pressa, deixou o seu olhar deslizar até Lusitânia, cujos contornos já sentira pelo canto do olho. Haviam passado setecentos anos desde que Lusitânia tinha sido construída e aclamada capital da Federação Lusitana.

    Lusitânia era uma das muitas cidades construídas de raiz no pós-Guerra do Milénio com o objetivo de recolher os governos e os arquivos, à pressa expulsos das antigas capitais semidestruídas pela guerra e parcialmente submersas pela subida das águas. Mas Lusitânia, a cidade triangular, era especial. Vista do ar, num primeiro olhar, Lusitânia era um grande triângulo equilátero, com nove quilómetros em cada lado, apontando a Sul. No interior do triângulo grande, era possível distinguir-se um segundo triângulo equilátero, desta vez com vértice apontado a Norte, tocando a aresta Norte do triângulo maior. A aresta deste triângulo interior era exatamente metade da aresta do grande triângulo envolvente: quatro quilómetros e meio. As três zonas entre o triângulo maior e o mais pequeno formavam elas próprias também três triângulos equiláteros com arestas iguais às do triângulo interior.

    Marta lembrava-se bem da primeira vez que o pai lhe tinha dito:

    Vês Marta, Lusitânia são quatro triângulos iguaizinhos que, juntinhos, formam um triângulo grande. Os três triângulos de fora chamam-se zonas habitacionais. O triângulo de dentro é onde o pai trabalha. É onde é o governo. Naquela torre grande mesmo no meio da cidade.

    E Marta olhava e apenas via dois triângulos: um grande a apontar para Sul e um mais pequeno, dentro do primeiro, a apontar para Norte, com um grande círculo que lhe tocava nos vértices e que ficava totalmente dentro do primeiro triângulo. E um dia, lembrava-se ela perfeitamente, olhou pela janela do avecarro e conseguiu ver os quatro triângulos. Excitada com a descoberta, disse ao pai e ele respondeu sorrindo, acariciando-lhe os caracóis negros:

    Estás a treinar o teu cérebro! Estás a ficar cada vez mais inteligente!

    Depois desse dia, sempre que se aproximava de avecarro de Lusitânia, Marta fazia esse exercício: ver primeiro Lusitânia formada apenas por dois triângulos: o grande, a apontar para Sul, e o pequeno, a apontar para Norte. A seguir fechava os olhos e abria-os novamente. E então via Lusitânia formada por quatro triângulos iguais: o do meio a apontar para Norte e os três restantes, todos do mesmo tamanho, a apontarem para Sul. Isso sempre a aproximara da memória do pai e lhe trouxera uma espécie de tranquilidade, depois do pai ter partido.

    Marta continuava a olhar para Lusitânia, cada vez mais próxima. Os triângulos exteriores de Lusitânia, que apontavam todos a Sul, eram onde estavam os edifícios habitacionais, implantados geometricamente entre as zonas verdejantes dos parques, que acolhiam habitantes permanentes e, sobretudo, habitações temporárias de nómadas de todas as partes do mundo que habitavam Lusitânia durante algum tempo.

    No meio do triângulo central, havia uma zona um pouco mais elevada, correspondendo à antiga serra da Melriça, o centro geodésico do antigo território português. Havia sido esse o local escolhido, no século XXII, para construir a Torre de Lusitânia. A torre era o maior edifício da Federação, símbolo da sua união e sede do seu poder. A Torre de Lusitânia, uma das primeiras grandes estruturas verticais edificadas no mundo com a tecnologia top down, baseada na utilização de cabos de nanotubos como material estrutural. A torre era totalmente estanque à atmosfera exterior, capacidade para sintetizar oxigénio a partir de CO2, filtros de azoto e geração de atmosfera respirável perpetuamente, autonomia hidráulica e autonomia energética para cem anos, autonomia alimentar (os dez andares entre o nonagésimo e o centésimo, eram andares de cultivo e de produção alimentar), resistência a impactos e sismos até ao grau vinte (o máximo da escala T). Com sete séculos de vida, plenamente funcional graças à tecnologia de auto-reabilitação que as construções inteligentes com tecnologia de carbono permitiam desde há muitos séculos, a Torre de Lusitânia era pois, não só a sede do governo e um dos símbolos tecnológicos da Federação, como também era um monumento, visitado por milhares de turistas e habitantes, sobretudo nómadas, que todos os anos lá passavam.

    Àquela hora da manhã já havia centenas de avecarros aproximando-se ou afastando-se da Torre, parqueando, ou descolando em diferentes pisos. À distância de alguns quilómetros a que Marta se encontrava, o movimento dos avecarros fez-lhe lembrar uma gigantesca colónia de abelhas em torno da sua colmeia. A torre era a grande colmeia da Federação Lusitana. Inaugurada no dia 28 de janeiro de 2318, a torre triangular tinha trezentos andares acima do solo e mil metros de altura, e cem andares abaixo do solo, estes últimos sobretudo dedicados a infraestruturas de apoio ao seu funcionamento e o grande nó modal subterrâneo que ligava Lusitânia às Américas, Europa e Ásia por via subterrânea ultrarrápida.

    Na Torre de Lusitânia trabalhavam e viviam cerca de duzentas mil pessoas. Muitas delas, passavam meses, mesmo anos, sem saírem da Torre. Existiam crianças lá nascidas que nunca haviam visto a terra, as árvores, os riachos a correr quando a neve derrete na primavera, ou ouvido o chilrear dos pássaros, sem que tivesse sido através das imagens dos registos de vida. Existiam até homens e mulheres, que nunca de lá tinham saído, Marta sabia-o. A terra, o ar e o mar, para estes seres humanos, nunca foram mais do que imagens que alcançavam nos seus equipamentos de realidade expandida. Ou nem isso. E havia outros que todos os dias se deslocavam dos bairros residenciais para a Torre, e outros que apenas passavam por lá para a visitar. Em 3020, na Federação Lusitana, conviviam pacificamente sedentaristas absolutos, nómadas, retrógrados, progressistas, emocionalistas, todo o tipo de gente. Marta orgulhava-se disso e sabia que nem sempre assim tinha sido, sobretudo nos tempos anteriores à constituição da Federação. Mas isso havia sido há muito tempo.

    Dezasseis quilómetros, trezentos e vinte e três metros, pensou Marta enquanto olhava para baixo.

    Era este o valor do perímetro do círculo de árvores que, inscrito no triângulo urbano de Lusitânia, definia a zona dos parques. A relação entre o perímetro do triângulo equilátero externo e o perímetro do maior círculo nele inscrito, era o número delta, o número de Xavier-Pina. Marta Vincenzo sabia de cor este número até à vigésima quinta casa decimal.

    Um vírgula seis cinco três nove oito seis seis oito seis dois…, pensou Marta.

    O número formado pelos algarismos décimo quinto a vigésimo quinto do número delta eram o código de acesso de Marta ao seu registo de vida privado.

    Ninguém nunca descobriu nem haverá de descobrir, pensou ela, sorrindo para si própria.

    O pensamento de Marta, parou subitamente de divagar e um sobressalto tirou-a daquele estado de semi-sonolência em que viajava há já alguns minutos. Despertou abruptamente com o pensamento:

    E agora, que tudo parecia correr tão bem, logo tinha de acontecer isto!

    Tentou sacudir os pensamentos que a preocupavam desde que tinha sido acordada pelo contacto direto proveniente da Plataforma Atlântida às duas horas da manhã daquele sábado.

    Pouco passa das sete e trinta, pensou Marta enquanto o avecarro se aproximava suavemente da cobertura da Torre, em espiral descendente.

    Àquela hora matinal, a Torre espalhava ainda a sua enorme sombra pelo lado poente da cidade de Lusitânia, qual gigantesco relógio solar na Era do Progresso Tecnológico. O último andar da Torre, e os dez andares abaixo, eram os andares ocupados pela chanceler-mor da Federação e pelo seu governo. Era aí, que estavam os aposentos privados da chanceler-mor, as zonas de reuniões e de trabalho, os aposentos e gabinetes dos assessores diretos e as salas de reunião e trabalho dos diferentes ministérios.

    Logo que o avecarro finalmente estacionou, Marta Vincenzo saiu apressadamente. Marta era uma mulher alta e, não obstante estar quase a fazer oitenta anos, não sendo bonita, era extraordinariamente elegante. Caminhava rapidamente e de forma ágil, com um leve traço de altivez no porte, talvez consequência de ter nascido no seio de uma antiga família de diplomatas de origem italiana que há muito se haviam estabelecido em Lusitânia, talvez simplesmente por ser essa a sua herança genética. Apesar do controlo emocional ser uma técnica que Marta tinha aprendido e treinado desde muito jovem, dirigiu-se à portada do elevador com o semblante um pouco carregado. A portada abriu-se silenciosamente quando ela se aproximou, reconhecendo o emissor do seu registo de vida.

    Marta Vincenzo, sem hesitar, entrou rapidamente e indicou o andar imediatamente abaixo.

    Dispositivos de apoio rural.

    Bloco 3

    A chanceler-mor da Federação

    Em 3020, a chanceler-mor da Federação Lusitana era a mais nova de todos os chanceleres-mor dos últimos duzentos anos. Raquel Urzais era o seu nome e tinha apenas sessenta e três anos. A noção de responsabilidade acompanhava a consciência da gigante Raquel Urzais todos os dias desde que, há três anos, tinha ocupado o cargo de chanceler-mor da Federação Lusitana e jurado fidelidade à sua Constituição, ao seu povo, e à Organização das Federações do Planeta. Mas talvez até já muito antes disso esse sentimento a acompanhasse.

    Desde que fora atleta e campeã desportiva, havia mais de trinta anos, sentia a responsabilidade de ser um exemplo para todos os que a admiravam e a apoiavam em cada torneio. Depois, como investigadora, enquanto trabalhava no seu doutoramento, sentira a responsabilidade do seu trabalho e das suas descobertas. Mais tarde, como auditora internacional da implementação obrigatória dos registos de vida entre as crianças das zonas menos desenvolvidas do planeta, sentira o peso da responsabilidade dessa missão, acreditando que dela dependia a possibilidade de construir um mundo melhor. E agora, investida no cargo de chanceler-mor, sentia ainda mais do que nunca o peso da responsabilidade de manter esta Federação unida e próspera, como era há muitas décadas.

    Assim, com a quantidade de coisas que não conhecia e tinha para aprender, com a sua idade relativamente jovem para assumir o alto cargo de chanceler-mor, Raquel sentia no fundo de si que, se não cultivasse uma imagem de distanciamento e seriedade, e se não praticasse essa mesma seriedade nos seus atos e decisões, correria uma séria probabilidade de ser inexoravelmente arrastada por vagas incontroláveis para rotas que não queria trilhar. Nos primeiros meses após o juramento como chanceler-mor, a mudança da sua imagem pública tinha-lhe custado e tinha-a obrigado a um esforço de autovigilância permanente. Mas, a pouco e pouco, Raquel foi-se habituando a conviver com a personagem que ela própria criara e, na verdade, depois dos primeiros tempos, havia-se habituado a esta nova Raquel.

    Até há alguns meses, Helena, a sua companheira de há trinta anos, era a que mais se divertia com esta mudança.

    Raquel, a mulher que não se ri, ria-se Helena à noite quando se iam deitar. Isto é o máximo, se o pessoal soubesse quem tu és na verdade…, continuava Helena, divertida, provocando-a.

    Schiuuuu!!!, dizia Raquel. "Tens os teus registos de vida desligados?"

    Claro, por quem me tomas?, ria-se Helena, sei bem o que é ser a companheira da chanceler-mor!

    Eu não acredito nisto…!, dizia Raquel, nos curtos momentos íntimos com a amiga em que se relaxava um pouco, tomando xérem e falando sobre o dia que tinha passado com Helena.

    Sabes qual é o teu grande problema?, perguntava Helena.

    Qual?, respondia Raquel com uma pergunta.

    Levas-te demasiado a sério, exiges demasiado de ti, meu anjo.

    Meu anjo... Helena usava sempre expressões antigas. Expressões que ninguém usava e que agora tanta falta faziam a Raquel.

    Isso é só meio certo, respondia Raquel.

    Meio certo? Como assim? Ou é certo ou é errado, ria Helena, sempre divertida.

    Não me levo demasiado a sério, como sabes melhor do que ninguém Helena.

    É verdade querida. Não era isso que queria dizer… tens razão.

    Mas exijo de mim bastante. Sempre o fiz. E sabes porquê?

    Sei… é porque és assim. Porque nasceste assim. E é por isso que eu te adoro, respondia Helena, com um sorriso.

    Talvez… mas sabes… eu tenho uma explicação melhor… uma explicação… racional.

    Ah sim? Vamos a ela, senhora chanceler, desafiava Helena.

    "É porque eu acho que, se ao longo dos tempos, cada um de nós tivesse consigo próprio metade da exigência que sempre teve com todos os outros… o mundo seria melhor. Provavelmente nem sequer teria havido a subida das águas ou a Guerra do Milénio".

    Helena ficava em silêncio, fingindo que não percebia e depois perguntava, insinuando ingenuidade, para dar oportunidade de Raquel responder.

    Cada um de nós quem? Nós as duas?

    Não, respondia Raquel a rir, Nós… a humanidade em geral.

    Mas… isso havia sido antes. No tempo em que Helena estava. Agora Helena já aqui não estava. Tinha partido. E Raquel sentia-se mais só do que nunca. Sentia a falta das longas conversas, sentia a falta do humor e do amor de Helena. Sentia a falta da sua voz, das suas mãos e da sua presença.

    Nos últimos meses Raquel tinha-se perguntado vezes sem conta se Helena estaria em algum lugar, se estaria a vê-la, se estaria orgulhosa do seu trabalho como chanceler-mor. Martirizava-se com a pergunta de como é que ela, Raquel Urzais, a mulher mais poderosa da Federação Lusitana, em pleno século XXXI tinha deixado Helena partir. Raquel pensara vezes sem conta nestas questões depois da partida de Helena, sem obter qualquer resposta.

    "Helena, querida: tenho saudades tuas. É só isso: fazes-me falta. Podes-me mandar qualquer coisa para o meu registo de vida, se faz favor? Só para eu saber que estás aí e me olhas…", colocou Raquel no seu registo de vida privado vezes sem conta depois da partida de Helena. Mas nada. Ao registo de vida de Raquel nada de novo chegava vindo de Helena, havia mais de três meses. A brincadeira, a crítica, o mimo. Nada de novo. Helena Sommer tinha mesmo partido, deixando um vazio impossível de preencher no coração de Raquel Urzais, a poderosa chanceler-mor da Federação Lusitana.

    Como era possível em pleno século XXXI uma morte súbita sem diagnóstico e levar assim um ser humano? E logo Helena…, pensou Raquel, enquanto o seu coração batia cada vez mais depressa.

    Podes voltar só um bocadinho Helena, só para me dizeres se estou a ir bem assim ou se devo fazer qualquer coisa diferente.

    Mas

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