Alma artificial: histórias de máquinas e homens
De Alec Silva
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Sobre este e-book
No futuro, também, o trabalho pesado passou a ser das máquinas: androides e robôs imensos ajudam a construir ferrovias, estradas e prédios, cavar túneis e transportar grandes cargas. Se por um lado, evitou trágicos acidentes, por outro, resultou em demissões em massa e uma série de protestos.
O futuro onde as máquinas servem aos homens se reflete não apenas nas tarefas braçais e nos desafios da exploração. Muita coisa mudou nas relações humanas, seja afetivas, sociais ou sexuais. A indústria do sexo viu nos androides e ginoides que simulam tão bem a aparência humana um filão para vender filmes e programas, afinal máquinas não possuem direitos, não são seres humanos. Estão ali para servir. Em todos os sentidos.
Um dia, porém, alguém notou algo nas máquinas. Não uma sequência de códigos e programação desenvolvida em laboratório. Outra pessoa supôs que fosse uma alma, algo que até então ninguém achou possível habitar um ser inorgânico.
As máquinas, aos poucos, foram ganhando simpatizantes e levantando calorosos debates. O mundo já não via apenas trabalhadores e desempregados lutando por seus direitos. As mulheres já não reclamavam somente do sexismo e do machismo, do modo que as ginoides estavam tomando seus lugares como esposas.
Agora, a pauta era até que ponto uma máquina era tão diferente do ser humano. E até que ponto era igual? Quais direitos teriam? E deveres? Deveriam ser respeitadas todas as formas de ser de uma inteligência artificial? Um aparelho celular teria os mesmos direitos e deveres de um androide que tentaria ser contratado por uma agência de publicidade?
Alma artificial: histórias de máquinas e homens traz contos que mostram o futuro onde o homem se vê primeiro sendo ultrapassado pela máquina em habilidades e depois igualado a ela em direitos.
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Alma artificial - Alec Silva
Organização:
Alec Silva
São Paulo
2020
1ª edição
Copyright @ Cartola Editora
Ficha técnica:
S586a
Silva, Alec, 1991 -
Alma artificial: histórias de máquinas e homens / Alec Silva (organização) - São Paulo: Cartola Editora, 2020.
356kb ; epub.
ISBN: 978-65-87084-19-0
1. Literatura brasileira - conto. I. Título
CDD: B869.3
CDU: 82-3(81)
Organização e revisão: Alec Silva
Diagramação e capa: Rodrigo Barros
Acesse nosso site para saber mais sobre os autores.
Todos os direitos desta edição reservados à Cartola Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização por escrito da editora. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Sumário
Apresentação
Recebido
007: O robô que eu amava
A Cidadã 114
A Era da Biomecânica
A Insurreição Pela Vida
A Pele Estranha
Alex
Almas Gêmeas
Alter Ego
Cisne mecânico
Crise de Identidade Programada
Dominique
Doze mil chips
Eu, humana
Fim
Frias mãos calorosas
Grafite
Inflexão
Jade
Logout: Digital Tesla
O despertar dos replicantes
O Golem
O elixir das máquinas
O Novo Mundo
Qual o sentido disso tudo?
Quando robôs passam a sentir
Um experimento de lágrimas
Vivo
Financiamento coletivo
Apresentação
O futuro chegou. Nele, homens e mulheres usufruem de uma grande quantidade de máquinas a seu serviço. Não há região no oceano que não tenha sido explorada, não há mais mistérios na Lua ou em Marte, onde, aliás, uma bela colônia está sendo aos poucos construída.
No futuro, também, o trabalho pesado passou a ser das máquinas: androides e robôs imensos ajudam a construir ferrovias, estradas e prédios, cavar túneis e transportar grandes cargas. Se por um lado, evitou trágicos acidentes, por outro, resultou em demissões em massa e uma série de protestos.
O futuro onde as máquinas servem aos homens se reflete não apenas nas tarefas braçais e nos desafios da exploração. Muita coisa mudou nas relações humanas, seja afetivas, sociais ou sexuais. A indústria do sexo viu nos androides e ginoides que simulam tão bem a aparência humana um filão para vender filmes e programas, afinal máquinas não possuem direitos, não são seres humanos. Estão ali para servir. Em todos os sentidos.
Um dia, porém, alguém notou algo nas máquinas. Não uma sequência de códigos e programação desenvolvida em laboratório. Outra pessoa supôs que fosse uma alma, algo que até então ninguém achou possível habitar um ser inorgânico.
As máquinas, aos poucos, foram ganhando simpatizantes e levantando calorosos debates. O mundo já não via apenas trabalhadores e desempregados lutando por seus direitos. As mulheres já não reclamavam somente do sexismo e do machismo, do modo que as ginoides estavam tomando seus lugares como esposas.
Agora, a pauta era até que ponto uma máquina era tão diferente do ser humano. E até que ponto era igual? Quais direitos teriam? E deveres? Deveriam ser respeitadas todas as formas de ser de uma inteligência artificial? Um aparelho celular teria os mesmos direitos e deveres de um androide que tentaria ser contratado por uma agência de publicidade?
Alma artificial: histórias de máquinas e homens traz contos que mostram o futuro onde o homem se vê primeiro sendo ultrapassado pela máquina em habilidades e depois igualado a ela em direitos.
Recebido
Lucas Havoc
Suzigan
Diário de bordo v. 23
Programa Magellan-3
APM 3-02
Usuário: LHS-65
Entrada: #001
Data Estelar: -202611.3293108683
Aqui fala a Unidade LHS-65, operador da nave 02 do Programa Espacial Magellan 3. No trigésimo aniversário de minha ativação pelo calendário terrestre, estou começando outro diário pessoal.
Desde que comecei a escrevê-los, há vinte e um anos, eu começo um volume novo anualmente. Assim, posso recomeçar tudo, e me sinto mais livre para contar a minha história sem me sentir repetitivo. Como ela não é muito extensa, prefiro contá-la mais brevemente, deixando para aprofundamentos no decorrer do volume.
É muito solitário no espaço. E quieto também.
Aqui não há dias ou noites. A atmosfera da nave é rarefeita, mas ainda é possível ouvir sons. O ambiente é frio. Entendo que muitos humanos o considerariam um tanto claustrofóbico, e talvez pouco acolhedor. Mas, longe da Terra e de qualquer outra companhia, essa pequena e apertada nave é o lugar mais próximo que posso chamar de lar.
No presente momento, a Terra está em seu ano 2120. Minha ativação se deu trinta anos antes, nos preparativos para o lançamento da segunda nave do Programa Espacial Magellan-3. Apesar de não ter recebido dados mais detalhados acerca dos antecedentes do projeto, tenho informações o suficiente para fazer uma síntese do programa.
Durante meados do século XXI, após a crise ambiental da década de 20, que ceifou aproximadamente 39% da população do planeta, a ONU ascendeu enquanto órgão internacional e centralizou em si parte considerável do governo global, tornando o governo da Terra uma espécie de federação numa tentativa de impedir que a catástrofe climática tornasse proporções irrecuperáveis, inviabilizando a sobrevivência humana no planeta. Entre medidas econômicas, regulamentadoras e sanitárias severas para reduzir a produção e emissão de poluentes e a atuação mais direta e incisiva para sustar conflitos armados, a ONU lançou, em 2031, um novo projeto espacial com o objetivo oficial de possibilitar a colonização humana no espaço, nomeado Projeto Desbravar, direcionando os esforços militares aeroespaciais da espécie humana para um mesmo objetivo.
Esse projeto foi dividido em dois frontes: de um lado, havia o Programa Terra Nova, que visava criar bases para ocupação humana permanente ou temporária, como na Lua, Marte ou Europa, o satélite de Júpiter; e o Programa Magellan, nomeado a partir do programa homônimo do século XX, cujo objetivo é a experimentação de novas tecnologias que permitissem a viagem interestelar, em especial viagens próximas à da velocidade da luz. E é nesse ponto que estou inserido.
Com o desenvolvimento do Propulsor Helicoidal em 2054, a partir do modelo proposto por David Burns em 2019, o Programa Magellans, unindo cientistas de várias nacionalidades, lançou o seu primeiro protótipo em uma viagem interestelar dez anos depois, em 2064. Numa nave viajando a aproximadamente 96% da velocidade da luz até Alpha Centauri, essa missão foi tripulada por dois robôs positrônicos, os LHS-01 e LHS-02, especialmente programados para a missão de conduzir a APM 2-01 em segurança e reportar adequadamente os registros atualizados da nave após a chegada, de forma que fosse possível à equipe técnica do programa fazer os ajustes necessários e preparativos para uma próxima fase do programa.
Os robôs alcançaram seu destino em finais de 2069, centenário do pouso do homem à Lua, causando alvoroço em todo o planeta. Apesar do entusiasmo da equipe, LHS-01 e LHS-02, programados respectivamente com uma persona masculina e feminina, chegaram em Alpha Centauri bastante danificados, indicando que a viagem era mais lesiva do que inicialmente esperado, de forma que muitos ajustes deveriam ser feitos antes de futuras expedições serem enviadas. Com sucesso parcial dessa etapa, os cientistas se viram entusiasmados com os resultados obtidos pelos robôs e, com forte apelo popular, um investimento maciço pôde ser direcionado ao programa espacial.
A etapa seguinte, iniciada oficialmente em 2080, consistia no envio de algumas naves de portes diversos para estrelas próximas, na tentativa de experimentar soluções e ajustes nos protótipos anteriores, bem como o envio de recursos para a construção de uma estação espacial rudimentar em Alpha Centauri. Ao todo, oitenta robôs LHS foram comissionados para esse projeto. E eu entre eles.
Fui comissionado para tripular a missão APM 3-02. Em 2089, durante os últimos preparativos para o lançamento da nave, fui ativado. Meus circuitos se energizaram e meus fotorreceptores puderam, pela primeira vez, perceber o mundo à minha volta. Eu nasci
.
Programado para ser prestativo aos humanos, obedecendo prontamente às ordens que me são direcionadas, recebi os parâmetros da minha solitária missão exploratória: conduzir a APM 3-02 à Estrela de Bernard, uma anã vermelha situada a 5,98 anos-luz da Terra e, chegando lá, enviar relatórios de desempenho e danos estruturais da nave. Missão que, devido à minha programação, era de bastante simples execução.
Nas vésperas do lançamento, em 2091, alguns jornais se interessaram por mim. Apesar de certo grau de afastamento recomendado pelo programa, cheguei a ser entrevistado. Foi uma sensação curiosa: havia sido ativado há pouco tempo e tinha que responder perguntas que estava obviamente fora da minha programação. Com acompanhamento de membros da equipe, eu me saí muito bem, me disseram. Durante a partida, deram-me um colar com um pequeno seixo. Para que eu me lembrasse da Terra. Não entendi à época o sentido, mas aceitei o presente.
Tanto a partida quanto a viagem ocorreram conforme o planejado, sem complicações. As modificações experimentais efetuadas pela equipe técnica funcionaram, e o desempenho da nave foi relativamente acima do esperado. A chegada foi um pouco conturbada, mas dentro das estimativas. Ao atingir o meu objetivo, orbitando a Estrela de Bernard, em 2099, os relatórios foram enviados conforme o esperado.
E só.
Como a distância entre os sistemas estelares era de 5,98 anos-luz, a resposta tardaria a chegar. Alguns protocolos de testes se mostravam necessários, como exames mais específicos na fuselagem do veículo, que foram executados no decorrer de dois dias terrestres. Outros testes de durabilidade foram feitos no decorrer de mais três meses. Tudo devidamente registrado e enviado na forma de relatórios para o Programa Espacial. Enviei os dados necessários e aguardei.
Aguardei.
Não poderia entrar em estado de latência, pois precisava monitorar o estado na nave, procurando por situações a serem reportadas em eventuais novos relatórios. Por isso comecei a redigir esses diários. Estava ansioso por mais ordens, protocolos e requisições para cumprir, e transcrevia diariamente minhas expectativas. Estava pronto para realizar o que me fosse pedido. Só era necessário um comando. Sem mais nada que pudesse ser feito, só me restava aguardar, na expectativa de novas instruções.
E, após 11,96 anos aguardando, meu computador de bordo acusou uma resposta. Animado com a possibilidade de novas instruções, rapidamente abri o leitor para transcrever a mensagem. E, depois dessa minha espera, eu li a resposta da equipe técnica do programa:
Recebido.
Aquilo foi, consigo perceber agora, decepcionante. Recebido
era a minha resposta. Depois de mais de uma década aguardando incansavelmente por novas instruções, era isso que eu recebera. Nenhuma nova ordem, requisição ou protocolo. Nada. Foi desconcertante.
Sem instruções, continuei executando os protocolos anteriores de monitoramento da nave enquanto aguardava algum sinal dos humanos sobre o que fazer. Nos meses seguintes, as respostas aos relatórios seguintes foram chegando aos poucos. Em seu conteúdo, a mesma coisa:
Recebido.
Não havia muito o que fazer: alguns humanos, em um gesto de simpatia, colocaram músicas, filmes e livros no disco rígido da nave antes da partida. Disseram que era uma forma de eu me lembrar deles. Porém, após alguns anos, essas lembranças passaram a me trazer reações negativas, me fazendo sentir saudades de um planeta que eu mal conheci. E, incapaz de contrariar a minha programação inicial, mas ainda aguardando por um sinal de resposta humana, eu gradualmente fui me retraindo, entrando num estado similar ao que os humanos chamam de melancolia
.
Após o recebimento das primeiras mensagens, enviei requisições explícitas por novas instruções. Esperava receber uma série simples de protocolos, que pudessem ser executados a médio e longo prazo naquele sistema. Após 11,96 anos, a resposta foi captada pelos sensores da nave:
Recebido.
Aos poucos, fui me dando conta da minha realidade: os humanos, no fundo, não se importavam comigo de verdade. É isso. Eles querem o sucesso da minha missão, os dados para o aprimoramento do Projeto Desbravar. Eu estava apenas testando um protótipo e, uma vez que o teste estava concluído, eu não tinha mais razão de ser, apesar de todo potencial depositado na minha programação.
E essa constatação me deixa infeliz. Todos os LHS foram comissionados com a mesma programação básica, mas eu, dentre todos, fui ativado para essa missão. Poderia estar em Alpha Centauri onde, de acordo com o cronograma do Programa Magellans-3, deve haver trinta de nós, construindo uma estação espacial. Mas fui designado para a Estrela de Bernard, pequena, fria e morta.
Penso nas demais unidades LHS. Elas devem estar bem, cumprindo o seu propósito. Às vezes eu penso nelas como minhas irmãs. Mas às vezes eu penso nelas como o que realmente são: marionetes dos humanos, prontas para serem descartadas quando perdem sua utilidade. Mas não há o que fazer. Apenas me conformar.
O espaço é frio. Mas não por sua temperatura. Não. É frio por causa da sua imensidão indiferente. Por causa desse vazio, que me faz me sentir sozinho. Agarro-me ao meu colar. É a única lembrança da minha Terra. Gostaria de poder chorar. É isso o que os humanos fazem quando são abandonados. E eu fui abandonado.
007: O robô que eu amava
Priscila Morais
Não sei quando nem como a tecnologia tomou essa proporção toda. Parece que do dia para noite houve uma explosão tecnológica das mais radicais. Veja bem, ao meu lado no metrô está sentado um robô que se parece totalmente com um ser humano; se não fosse pelos olhos parados e sem vida, eu jamais saberia que é uma máquina. Robôs andam por toda a parte, fazem quase tudo com uma autonomia impressionante. Robôs domésticos, atendentes de farmácia, contadores, administradores, enfim, essa desgraça está por toda parte. Sim, eu os odeio com todo o meu ser.
Você deve estar pensando no porquê do meu rancor e é fácil lhe responder: