Cabeças Cortadas
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Sobre este e-book
Mas o que eles não previram é que, além de políticos e funcionários corruptos, a própria polícia está envolvida, aliada com milicianos, banqueiros e altos empresários, nacionais e estrangeiros. Todos interessados em algo que o Brasil guarda e que terá valor muito maior que ouro e petróleo num futuro não muito distante. Leitura obrigatória para leitores interessados em entretenimento, tecnologia e algoritmos cibernéticos.
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Cabeças Cortadas - Gilmar Duarte Rocha
Gilmar Duarte Rocha
Uma história de escroques, inconfidentes e outros vampiros públicos
São Paulo, 2020
soul-logo-mah-2Título original em Português: Cabeças Cortadas
Copyright © 2020 by Gilmar Duarte Rocha
Todos os direitos reservados: proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo eletrônico, especialmente por sistemas gráficos, assim como traduzida, sem autorização, por escrito, do autor. A violação dos Direitos do Autor é crime, mediante a Lei dos Direitos Autorais nº 9.610/98.
Diretor Editorial: Peterson Magalhães
Editor-chefe: Silvio Alexandre
Assistente Editorial: Camile Chaves
Revisão: Mariana Rocha
Diagramação e Capa: Regina Blandon Tubarão
Comunicação com Autores: Chris Donizete
Ilustração da capa: Salome with the Head of Saint John the Baptist
(ca. 1507), pintado por Andrea Solari (1460-1524) © Metropolitan Museum of Art, NY.
Soul Editora
Rua Conceição da Barra, 67 – Jardim São Paulo
Sede própria – CEP 02039-030 – São Paulo - SP
E-mail: publisher1@souleditora.com.br
www.souleditora.com.br
Telefone: (11) 2952-6092
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
R672c
Rocha, Gilmar Duarte
Cabeças Cortadas / Gilmar Duarte Rocha - São Paulo, SP : Soul, 2020.
210 p. : il. ; 14cm x 21cm.
Inclui anexo.
ISBN: 978-65-86178-37-1 (IMPRESSO)
ISBN: 978-65-86178-37-1 (DIGITAL)
1. Literatura brasileira. 2. Romance. I. Solari, Andrea. II. Título.
2020-2358
CDD 869.89923
CDU 821.134.3(81)-31
Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949
Índice para catálogo sistemático:
1. Literatura brasileira: Romance 869.89923
2. Literatura brasileira: Romance 821.134.3(81)-31
Para a querida prima Neide Araújo,
que gosta e devora os meus romances.
Minha gratidão e o meu carinho.
I
Renascentistas
Brasília, Lago Norte, alguns anos atrás.
Tudo começou por acaso, numa corriqueira operação da polícia militar da capital, geralmente organizada sem data e horário pré-estabelecidos, no intuito de averiguar infrações pendentes; estado e condições do condutor e objetos ilegais que possam ser transportados pelo veículo abordado.
Na pista de sentido ao Plano Piloto, o coração da cidade, os policiais montaram cones de cor laranja em ziguezague e geralmente um em dez carros era parado e desviado para o acostamento onde um grupo de dois, três policiais faziam o serviço de averiguação.
O sol daquela manhã de agosto estava a pino e os policiais precisavam usar óculos escuros para proteção e melhor cumprimento do trabalho.
Um dos carros que vinha se aproximando; um automóvel prateado, raro, de luxo, de origem alemã, propriedade de poucos e abonados viventes da capital, foi escolhido para o trabalho de triagem. O motorista parecia atender ao pedido e se dirigia vagarosamente até o local do apuramento. Inesperadamente, o condutor pisou forte no acelerador, o motor do carro roncou como um trovão, os pneus cantaram no chão quente de betume, e o carro avançou em disparada, derrubando tudo pela frente — cones, barreiras, motos da polícia —, o carro seguiu disparado pelo acostamento e avançou à frente, deslizando de vez em direção à pista que ia dar na área central de Brasília, mais precisamente na avenida larga e ancha que é chamada de Eixo Norte.
Após mais de sete quilômetros de perseguição policial, o carro do fugitivo foi alcançado às balas quase nas proximidades do Eixo Monumental, a outra grande avenida que corta a cidade em sentido perpendicular. Contudo, o estrago foi enorme: um dos disparos da polícia atingiu, em cheio, a têmpora do desertor, fazendo com que ele perdesse o controle do veículo e o carro prófugo capotasse uma, duas, três, quatro vezes, batesse numa árvore e fosse parar fumegante e de rodas para cima na outra pista do eixo, em sentido inverso.
Outro carro, uma moderna SUV, que vinha no sentido inverso, não teve tempo para desviar do carro desembestado: freou bruscamente, rodopiou, girou na pista, bateu no veículo infrator, deslizou para a lateral, sobrevoou a guia da estrada e foi de encontro a um tronco robusto de árvore plantada no canteiro central.
Minutos depois, sirenes de carros das polícias civil e militar, dos bombeirose e dos paramédicos, aportaram em massa no local, onde um resto de carro fumegava e o outro entalava-se no tronco da árvore.
No carro do fugitivo, o motorista apresentava a cabeça esbagaçada e o tronco desmantelado. Vísceras e pedaços de tecidos orgânicos espalhavam-se pelo negrume do asfalto.
— Acho que não vai ser necessária a colocação dos aparelhos nele — disse um dos paramédicos, um senhor carrancudo, experiente naquele mister de avaliar corpos estraçalhados. — Podem recolher as vísceras e removê-lo para o morgue.
Enquanto o corpo dilacerado do falecido, um homem com aparência de um pouco menos de trinta anos, ia sendo conduzido até a ambulância, policiais iniciavam a perícia nas ferragens do que restava do veículo:
— Achei cocaína sob o assento. Muita cocaína — gritou um dos homens que revistava o carro destroçado.
— Está explicado porque ele não parou na blitz lá no Lago Norte — observou um policial. — O rapaz é usuário e traficante.
Em relação ao outro veículo acidentado — o da SUV, uma espécie de minivan —, policiais e paramédicos tentavam retirar o motorista acidentado cujo corpo ficou preso entre o volante e o airbag inflado.
O homem uivava de dor e pronunciava palavras ininteligíveis.
— Rápido, a serra — solicitou um bombeiro a outro colega.
Com muita cautela, os profissionais do salvamento iniciaram o serviço de retirada do homem bastante machucado, de aparência sexagenária, obeso em demasia, cuja carteira constava o documento de identidade de Irineu Damasco. Ao lado do corpo agonizante, encontraram um telefone celular e uma agenda.
— Só avisem à família dele após o conduzirmos ao hospital — ordenou o delegado de polícia presente no local.
— Esse sobrenome não me é estranho — murmurou o delegado a outro colega.
— Acho que sei quem ele é, chefe — interveio outro policial. — É um grande doleiro de São Paulo ele possui forte ligação com políticos daqui.
— Tem razão — corroborou o delegado. — Esse homem foi citado recentemente num escândalo envolvendo vários deputados e o Banco Ômega.
Mal o policial concluiu a recordação, uma viatura com a insígnia da Polícia Federal estacionava bem em frente a eles.
Do carro desceram três elementos enormes, parrudos e de semblante sisudo. O grupo trajava camisa de meia, de cor preta, com o logotipo amarelo da PF estampado no peito. Todos portavam óculos escuros.
Um deles apresentou-se como líder dos agentes:
— Colegas, sou o agente federal Farrell. Soubemos do acidente e queríamos ver se está tudo bem com o senhor Damasco.
— Segundo os paramédicos o quadro dele não é grave, mas requer cuidados. Ele já está sendo imobilizado e encaminhado ao hospital — reportou o delegado.
— Ótimo — exclamou o policial federal, completando:
— Como vocês devem saber, o senhor Damasco esteve envolvido recentemente num escândalo de lavagem de dinheiro...
— O caso do Banco Ômega — completou o delegado.
— Isso mesmo: o escândalo do Banco Ômega — ratificou o agente Farrell.
— Curioso. Jurava que esse caso já tivesse sido elucidado e o inquérito concluído. Inclusive, parece que o Senhor Damasco foi absolvido — ressalvou o chefe da polícia civil, retirando o boné escuro que usava e coçando os ralos tufos de cabelos loiros.
— Nem tudo que a imprensa divulga, delegado, é verídico. O caso continua sendo conduzido em segredo de justiça — revelou Farrell.
— Eu não sabia — disse o delegado, surpreso, devolvendo em seguida o seu boné à cabeça.
— Pois é. Por isso necessitamos realizar um pente fino no veículo do cidadão Damasco.
— Fiquem à vontade, Farrell — disse o delegado, virando depois o rosto para local do acidente —, aliás o meu pessoal está agora mesmo recolhendo alguns pertences da vítima. Se precisar da ajuda deles?
— Peçam-lhe apenas, nos entreguem tudo que encontraram até o presente momento — resumiu o policial federal.
— Não seja por isso — disse o delegado, dirigindo-se a um dos seus auxiliares: — Esdras, cuide que todos os documentos da vítima da SUV sejam entregues aos nossos colegas federais aqui. Abandonem imediatamente esse carro e vão cuidar apenas dos destroços do outro veículo.
Enquanto o delegado prescrevia essa ordem, o corpo alquebrado do rei do dólar paralelo, Damasco, era conduzido cuidadosamente numa maca para uma ambulância.
Após os federais realizarem uma rápida vistoria no carro do doleiro, recolhendo tudo que viam e lhes interessavam, um outro carro — aparentemente de um cidadão comum — estacionava próximo ao local do acidente.
Saltou de um sedan vermelho um homem magro, de meia-idade, pele castanha clara, estatura mediana, óculos grandes e escuros, cabelos curtos nos lados e alto na fronte, bigode farto e negro, visivelmente tingido, trajava bermuda bege e camisa colorida em estilo havaiano. Nos pés, sandália de couro em estilo do artesanato nordestino. Trazia ainda um enorme charuto preso entre os dedos.
Antes de ele se aproximar da cena do crime, os policiais federais — que faziam a perícia no carro de Damasco — deram por concluído o trabalho e se evadiram do local com extrema rapidez.
O homem do sedan aproximou do delegado que, concentrado, ainda permanecia coordenando os trabalhos.
— Por favor, não é permitida a aproximação de curiosos — interveio o policial que resguardava o trabalho dos peritos.
— Certo, senhor. Vou me apresentar então — Nisso, o homem do vasto bigode retornou o charuto à boca, expelindo com vontade baforadas no rosto do policial que o interceptava. Levou a mão direita ao bolso da bermuda e apresentou o distintivo de agente da Polícia Federal.
— O senhor deseja falar com alguém, agente? — perguntou o policial.
— Com o delegado Valverde, por favor.
Embora concentrado e acompanhando o serviço de vistoria, o delegado, quando ouviu o seu nome, virou-se para ver a pessoa e abriu um largo sorriso:
— Diretor Jasão. Há quanto tempo — Valverde cumprimentou o policial visitante efusivamente.
— Brasília é pequena, Verde — disse o federal de nome Jasão, fazendo, em seguida, uma pequena correção — E eu não sou diretor, companheiro. Sou apenas assessor.
— Ora, ora. Quanta injustiça. Com o cérebro privilegiado que você tem já era para ser o diretor-geral da Polícia Federal — brincou o delegado. Após risos e algumas breves reminiscências de fatos de outrora, Valverde dirigiu-se ao seu amigo da federal:
— Afinal, o que o traz aqui?
— Pois, é — pigarreou Jasão, devolvendo o charuto à mão — o que faziam os meus colegas no local do acidente agora há pouco? A presença deles me chamou à atenção.
— Chegaram com a história de que precisavam vistoriar o carro do doleiro Damasco.
— O do caso Ômega.
— Isso mesmo. O do caso Ômega — ratificou o delegado —, inclusive perguntei-lhes se esse caso não estava encerrado.
— E está — devolveu Jasão, para surpresa de Valverde. — Vocês pediram as credenciais dos caras?
— Não, não. Estavam fardados. Seria uma ofensa pedir credencial, você sabe como é — argumentou o delegado, com certa insegurança.
— Sei disso, Verde. Mas não custa fazer uma sondagem sutil — repreendeu suavemente Jasão.
Nisso, um outro policial civil aproximou-se deles:
— Chefe, esquecemos de entregar aos federais esta pequena pasta que encontramos no carro do tal Damasco. Ele escondeu a pasta dentro de um fundo falso no porta-malas da SUV.
— Não tem problema, Monteiro. A pessoa certa a quem deveríamos ter entregado os documentos de Damasco está aqui. Entregue a pasta a ele.
* * *
Aquele era um dia modorrento de sábado. Um daqueles dias de agosto que sela o fim de inverno antecipado no cerrado, onde o clima transmuta-se em seco e quente, com ausência completa de água. Aliás, ausência não só de água. De folhas, de gramas, de pássaros, de orvalho, de umidade, de besouros, de vida.
Horas mais tarde, quando o sol havia sumido no horizonte oeste do planalto, na sacada de um apartamento de cobertura na Asa Norte, Jasão contemplava as luzes da cidade com a cabeça voltada aos pensamentos longínquos.
Caminhava um pouco na varanda, engolia um trago de uísque, dava uma pitada no indefectível charuto que repousava sobre o cinzeiro em forma de esfinge, voltava para a sacada e contemplava novamente as luzes da cidade.
Volta e meia algo macio roçava nas suas pernas: era o seu gato siamês de nome Gladstone. Às vezes, abaixava e trazia o felino ao colo, alisava a cabeça chata do bicho que ronronava e devolvia o carinho que o dono lhe regalava com uma suave lambida.
Se pudéssemos penetrar na mente daquele homem, veríamos que ele passava por certo dilema. Aposentar-se de vez, pois já alcançara a idade mínima para deixar a vida corporativa, e se mudar para a França, mais precisamente para ficar aos lados dos filhos que cursavam universidade em Paris, ou trabalhar ainda mais um tempo na corporação. Dois, três anos atrás, a primeira alternativa (aposentar-se) pesava mais na balança, mas um fato novo, ocorrido há um par de meses, fez com que o fiel da balança se pendesse para um lado, tornando a segunda opção mais atraente.
O fato novo traduzia-se na pessoa de uma jovem agente, uma moça loira extremamente bonita e inteligente. Paixão à primeira vista. Paixão que parecia haver correspondência.
Esta relação sentimental irrompeu como uma avalanche num momento em que ele já estava exaurido de anos de solidão. Separara-se da sua primeira e única mulher há mais de quinze anos e nunca mais tivera ímpeto e desejo de contrair matrimônio ou estabelecer relacionamento sério outra vez.
A bela agente — sim, a musa era colega da corporação — bem que poderia ter arrebatado um potro federal mais novo e atraente. Contudo, o coração da garota desintegrou-se perante aquele homem em idade lupina, pleno de idiossincrasias, manias, de pouca robustez, aliás, o seu biótipo não fazia jus a uma corporação típica de espartanos. Poder e dinheiro, algo airoso para esse tipo de comunhão amorosa, homem velho que mantém caso com mulher nova, não fazia parte do léxico de Jasão.
Voltando ao nosso personagem dos vastos bigodes, os seus devaneios foram interrompidos pelo trinado do celular parqueado em cima da mesinha da varanda. Caminhou com certa mansidão e sacou o aparelho:
Jasão, estava ocupado quando você me ligou
— Pois é, chefe. Está lembrado do caso Ômega? Aquele mal resolvido.
Sim. Sempre achei que o Durão, do MPF, não deveria encerrar o caso. Tinha muita coisa ainda a investigar
— Certamente. Já conversamos muito sobre isso. Você soube que Irineu Damasco, o doleiro que esteve envolvido no caso Ômega, e que foi absolvido por falta de provas, sofreu um acidente hoje à tarde?
Soube pela TV. Parece que o cara escapou
por pouco da morte
— Da morte, sim. No entanto, da cadeia, ainda não.
Como assim? Algo novo?
— Coisa quente. Vou te enviar algumas imagens, via celular, do que foi achado no carro dele e amanhã a gente conversa sobre isso no clube. Para te adiantar, tenho a impressão de que teremos uma grande operação, muito em breve.
* * *
Manhã seguinte, domingo, dia ainda mais quente e seco, no clube do Banco Central, localizado no setor de clubes Sul, dois homens confabulavam sentados num banco de cimento solitário, plantado no meio de uma aleia ornada por um gramado meio verde, meio ocre, completamente ressecado.
Um deles, baixo, robusto, rosto vermelho que parecia avermelhar-se mais devido ao sol abrasivo, levava à boca uma taça gigantesca de chope.
— Então — disse o homem avermelhado — que coisa mais esquisita o conteúdo da pasta de