Cinema e Psicanálise: História, Gênero e Sexualidade
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Cinema e Psicanálise - Christian Ingo Lens Dunker
nversos@nversos.com.br
Apresentação da coleção
A Coleção Cinema e Psicanálise explora diferentes maneiras de pensar as relações entre cinema e psicanálise. Por meio de textos de cunho ensaístico, pretende apresentar relações temáticas entre conceitos da psicanálise, noções de teoria e crítica do cinema e problemas práticos da produção de filmes. Isso inclui a tradicional interpretação psicanalítica de narrativas fílmicas, mas principalmente pequenos estudos focais envolvendo homologias entre técnicas de enquadre, fotografia, música e montagem úteis para o entendimento do processo clínico representado pelo tratamento psicanalítico.
A linguagem do cinema, lembrando sua contemporaneidade histórica com o nascimento da psicanálise, apresenta características específicas que permitem pensar criticamente tanto os conceitos da psicanálise quanto a sua prática. A Coleção Cinema e Psicanálise, em cada um de seus volumes, aborda semelhanças e diferenças entre o processo de produção fílmica e os problemas formais que o psicanalista enfrenta na direção do tratamento psicanalítico. Fazer cinema e fazer psicanálise teriam, neste sentido, algo em comum do ponto de vista prático.
Nossa abordagem entende o cinema como campo de criação de problemas formais sobre a subjetividade e como linguagem, narrativa e discurso sobre suas modalidades de sofrimento. E trata a psicanálise não só como teoria do funcionamento psíquico, mas como método clínico de tratamento e experiência ética de transformação.
A Coleção Cinema e Psicanálise é o produto de uma experiência desenvolvida em torno desta hipótese nas Jornadas Paulistas de Cinema e Psicanálise, que ocorrem desde 2009 no Instituto de Psicologia da USP. Chamados para falar sobre seu trabalho, diretores, montadores, iluminadores e programadores apresentaram relatos e reflexões que, ao longo do tempo, abriram uma nova maneira de pensar a relação entre estes dois campos.
Christian Ingo Lenz Dunker
Ana Lucilia Rodrigues
Prefácio
É fato, há muito notado por Walter Benjamin, que o cinema enriqueceu nossa capacidade de observação com métodos que se aproximam do olhar clínico da psicanálise. Se a psicanálise, desde a Psicopatologia da Vida Cotidiana, deu especial visibilidade a fenômenos até então despercebidos, tais como um lapso, um erro de memória ou mesmo um Witz, o cinema veio gerar um aprofundamento perceptivo análogo ao destacar, graças ao uso do grande plano e da câmera lenta, uma natureza até então oculta ao olhar imerso no fluxo contínuo das ocorrências mundanas. Cinema e psicanálise teriam, portanto, muito a dizer a partir dessa feliz afinidade de métodos, caso esse diálogo não caísse no engodo usual da comunicação. De um lado, uma psicanálise que, na maioria das vezes, se serve da ficção cinematográfica como ilustração do que já se sabe, de outro, uma representação cinematográfica do que o cineasta espera que seja o psicanalista, ora glamourizado na figura heroica de um Freud investigador (John Huston), ora patetizado no gesto clínico estereotipado dos psicanalistas de Nanni Moretti. Mas se somente há pouco a psicanálise veio receber do cinema o tratamento que ela realmente merecia, visível em Reis e rainha, de Arnaud Desplechin, assim como em Um método perigoso, de David Cronenberg, não menos recente vem a ser a leitura psicanalítica à altura do que o cinema faz de melhor. Dessa tão esperada leitura recente que finalmente se materializa, só podemos comemorar o lançamento do Volume 5 da Coleção Cinema e Psicanálise: História, Gênero e Sexualidade, dirigida por Christian Dunker e Ana Lucilia Rodrigues, cujos autores leem as grandes películas contemporâneas na perspectiva do que seria uma boa clínica da cinematografia: o olhar de visão oblíqua, capaz de detectar a essência do fenômeno que se oculta em sua própria exposição, como a carta roubada da Rainha de Allan Poe. Tal leitura requer uma atenção distraída que suscita em nós um elogio do estrabismo, já que para esse olhar a evidência manifesta diretamente significa menos que o dado aparentemente anódino. Ao lermos, assim, o magnífico ensaio de Christian Dunker, percebemos a mediação inesperada que seu olhar em diagonal desvela entre Melancolia e Árvore da vida, somente visível numa narrativa aparentemente tão distante, como O conto chinês. Surpreendemo-nos também ao notar, no estudo de Ana Lucilia Rodrigues sobre Marilyn Monroe, como a película do semblante, que deveria em princípio servir de proteção contra a invasão de gozo, termina por reencontrar, em seu paroxismo cinematográfico, o real que a experiência trágica dessa atriz testemunha. Cabe ao leitor, portanto, de fazer por sua vez, a partir da leitura e releitura desse livro, a experiência desse magnífico estrabismo que nos conduz a captar a significância da inverossímil verdade no detalhe insignificante dos arranjos discursivos, tão bem ilustrado outrora pelo autor Peter Falk, na figura do impagável investigador Columbo.
Antônio Teixeira
Psiquiatra-Psicanalista
Mestre em Filosofia Contemporânea UFMG
Doutorado em Psicanálise Paris VIII
1. O caso Marilyn Monroe
Christian Ingo Lenz Dunker
Psicanalista, professor livre-docente do Instituto de Psicologia da USP, autor de Estrutura e constituição da clínica psicanalítica (AnnaBlume, 2011), Constitution of psychoanalytic clinic (Karnac, 2010), O cálculo neurótico do gozo (Escuta, 2002) e Lacan e a clínica da interpretação (Hacker, 1996). Coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Latesfip/USP) e analista membro da Escola do Fórum do Campo Lacaniano. Em 2012, recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura na categoria Psicologia e Psicanálise.
Ana Lucilia Rodrigues
Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Latesfip/USP). Autora do livro Pedro Almodóvar e a feminilidade (Escuta, 2008) e coautora de Cinema – o divã e a tela (Artes e Ofícios, 2011), desenvolve seu doutorado sobre cinema no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Organizadora da Jornada Paulista de Cinema e Psicanálise, cuja quarta edição foi realizada em novembro de 2012.
Filmar é justapor imagens com a menor unidade, que é o plano. O plano é o significante, ou melhor, é a letra no cinema. A história (enredo) vai avançando pela justaposição de imagens, pelo corte, pela escansão, procedimento psicanalítico que Eisenstein destacou tão bem desde a escrita chinesa, em seu texto de 1949. Por outro lado, há a forma como se articula o enredo: progressivamente, regressivamente, com retornos, suspensões, digressões, construindo uma realidade diegética que se mostra, a cada vez, em uma temporalidade própria. Finalmente, há a relação que se forma entre o filme e seu espectador, o contrato de comunicação, o desafio cognitivo e cultural, as citações e referências que formam uma posição do sujeito destacado pelo filme. São também estas as três dimensões do caso clínico: a história vivida na infância, lembrada e esquecida ao futuro ainda não vivido, mas sonhado; a história contada em seu tempo próprio, em seu estilo, com suas indiscerníveis escolhas estilísticas, narrativas e discursivas; e a história revivida, sob transferência, quando contada ao psicanalista.
Há uma infinidade de tomadas, como o primeiro plano, o plano geral, o plano americano, o close-up e tantos outros que compõem a cena da escritura cinematográfica. Segundo Tarkovski, a montagem de um filme deve ocultar seus pontos de costura de forma que as cenas e as tomadas se juntem espontaneamente, formando um único espaço topológico, diriam os leitores de Lacan.
Chegamos aqui à nossa hipótese de trabalho. Entre cinema e psicanálise há inúmeras afinidades: sociológicas, narrativas, políticas e semióticas. Contudo, a afinidade fundamental que reúne todas elas é a de método. Se um filme é como um sonho, um sintoma ou uma fantasia; se na relação com um filme fazemos transferências, identificações e projeções; os métodos de construção de filmes nos servem de modelo para inferir, reversamente, novas práticas para as operações clínicas da psicanálise. Interpretar é reconstruir o trabalho do sonho, e não revelar qual seria seu sentido. Ler é reconstruir o trabalho sobre o material dos sonhos, ater-se às aparências e aos semblantes que ele produz. Aqui, o cinema nos permite isolar muito bem esta complicada diferença clínica: reconstruir o trabalho de produção fílmica é diferente de ver o filme como espectador.
Em alguns filmes, o diretor resolve filmar mais algumas cenas após a conclusão. Esse será nosso breve exercício agora. Examinaremos uma personagem que ficou fora de campo
: Marilyn Monroe. Uma das imagens mais icônicas do século XX, ela personificou o glamour hollywoodiano com incomparável brilho e energia que encantaram o mundo. É uma metonímia ou uma sinédoque do corpo no cinema e do corpo do cinema. A diferença é simples. O corpo no cinema é uma investigação sobre a verdade do corpo, sua imagem, significação, dimensão de captura e representação do desejo humano. O corpo do cinema é justamente o real que não pode aparecer para que a realidade fílmica possa funcionar. São as gruas, as câmeras, os efeitos, os cenários, os atores, mas também aquilo que o cinema tenta inscrever com seu discurso: o real da mortalidade do corpo, da angústia da existência, da impossibilidade da coisa.
É importante notar como, na época de Marilyn, a psicanálise discutia o problema da técnica analítica, perguntando-se até que ponto e de que forma a realidade da experiência poderia ser abordada. De um lado, seria preciso considerar as deformações, desvios e negações que fariam o discurso do paciente produzir a realidade transferencial como um tipo de ilusão. De outro, havia a posição do psicanalista como uma espécie de guardião neutro e zelador advertido do modo de produção dessa ilusão e, ao mesmo tempo, crítico de sua estrutura. O corpo na transferência opunha-se, assim, e por vezes de forma bizarra, ao corpo da transferência. De alguma forma, a psicanálise da época pressentiu que, entre o imaginário e o simbólico que determinavam a economia de verdade do tratamento, se deveria incluir o real. Vejamos como se pode ler esse problema num comentário de Fairbairn, realizado em 1957:
[...] o papel do psicanalista não é somente preencher a dupla função de: (1) ser uma tela sobre a qual o paciente projeta suas fantasias e (2) o instrumento incolor da técnica interpretativa, mas que sua personalidade e seus motivos trazem uma contribuição significativa para o processo terapêutico.¹
Ou seja, tudo se passa como se o analista permitisse a projeção do filme, zelasse pela sua sustentação e, ao mesmo tempo, pela interpretação de seu sentido; contudo, há algo mais que fica de fora nessa metáfora. É o fato de que o analista tem um corpo, de que ele realmente tem seus motivos e sua personalidade. Notemos a sincronia com o cinema, na ideia de tela de projeção e também na posição do espectador, que é chamado a intervir diante de um problema de continuidade
. Contudo, além disso, há a não isenção do psicanalista diante