Retratos da Vida em Quarentena
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Sobre este e-book
Estes contos fizeram do meu quarto uma torre de vigia. Olho pela janela e penso: "Cara, que bom que não dá pra ver a casa do meu ex daqui!", rio um pouco e completo: "Maldita Cinthia!". Comprei palavras cruzadas e, sentada no sofá, fiquei me perguntando se o cruziverbalista daquela edição também se sente de fora por não conhecer as músicas de Billy Eilish (será que esse pai compra pôsteres de artistas para a filha e aproveita para usurpar esses nomes para as suas revistas?). Também brinquei por vários dias com minha geladeira: abria a porta e esperava para ver se ela respondia — talvez meu erro tenha sido não deixar as alfaces estragarem.
Mas a literatura também nos puxa para a realidade. Entregadores de aplicativo, domésticas, comerciantes ambulantes: são profissionais que vejo todos os dias e o mínimo de consciência de classe me levou ao equilíbrio de respeitar sem romantizar os esforços excessivos que só servem para fazer girar a máquina de moer gente do capitalismo.
Estes retratos me levaram para a beira dos rios, com quilombolas e indígenas, e me levaram para lugares sagrados, porque santo não quer saber de pandemia ou de presidente fascista. Santo quer saber de cumprir promessa.
Retratos da vida em quarentena carrega em seus dezenove relatos um panorama deste momento em múltiplas vozes. Seria egoísta desejar que algum dia estes contos sejam lidos apenas como ficção. O que desejo, então, é que os futuros leitores deste livro tenham a sensibilidade de buscar nestes relatos um motivo para não repetir o passado. Também faço meu o desejo de que o futuro não demore.
— Bárbara Krauss
***
Retratos da vida em quarentena é resultado de uma chamada pública de textos lançada pelas editoras Elefante e Dublinense em março de 2020, quando a covid-19 começava a se espalhar pelo país, levando boa parte da população ao isolamento social — e outra boa parte, ao risco da labuta diária fora de casa em plena pandemia. Nossa proposta era "selecionar textos narrativos em prosa, em primeira ou terceira pessoa, escritos em língua portuguesa por brasileiros e brasileiras (ou estrangeiros e estrangeiras residentes no Brasil), sobre a experiência de atravessar a pandemia de coronavírus". Recebemos mais de mil textos, entre os quais escolhemos os dezenove que acreditamos refletir da melhor maneira, e com grande pluralidade de vozes, esse momento inédito em nossa vida.
MARLUCE
Humberto Conzo Junior
MANUAL DO OBITUARISTA
Laura Castanho
ABRE E FECHA
Rosana Vinguenbah Ferreira
A PROMESSA DE DONA TATÁ
Nelma Rolande
DELIVERY
João Paulo Vasconcelos
TECNICAMENTE
Vitor Fernandes
POR QUE BRENDA ESCREVE
Elaine Narcizo
O VELHO E O RIO
André do Amaral
SOLO
Carol Miranda
MALDITA CINTHIA
Matheus de Moura
ALFACES ESTRAGADAS
Iuli Gerbase
OLHAR NA TUA CARA E DESCOBRIR QUE HORAS PODEMOS CONVERSAR
Caio Riscado e Maria Isabel Iorio
COVID-1997
Jaime S. Filho
QUARENTENA, 10 LETRAS
Analu Bussular
EXERCÍCIOS BRONCODILATADORES DE RÁPIDA AÇÃO
Flor Reis
O PROBLEMA
Laiz Colosovski
ELE
Ana Clara de Britto Guimarães
QUARENTA QUARENTENAS
Mateus Dias Pedrini
PORTAS E JANELAS ESCANCARADAS
Jean Ferreira
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Retratos da Vida em Quarentena - Ana Clara de Britto Guimarães et.al
identificação é algo complexo. Pode ser acolhedor ou um baita dedo na ferida. No processo de seleção destes textos, passei por um turbilhão de emoções. Trinta dias lendo mais de mil relatos de solidão, de medo — no melhor dos casos, contos que falavam sobre uma quebra do cotidiano. Eu estava em casa e achava que logo poderíamos sair, mas o livro vai ser publicado e ainda estou aqui.
Estes contos fizeram do meu quarto uma torre de vigia. Olho pela janela e penso: Cara, que bom que não dá pra ver a casa do meu ex daqui!
, rio um pouco e completo: Maldita Cinthia!
. Comprei palavras cruzadas e, sentada no sofá, fiquei me perguntando se o cruziverbalista daquela edição também se sente de fora por não conhecer as músicas de Billie Eilish (será que esse pai compra pôsteres de artistas para a filha e aproveita para usurpar esses nomes para as suas revistas?). Também brinquei por vários dias com minha geladeira: abria a porta e esperava para ver se ela respondia — talvez meu erro tenha sido não deixar as alfaces estragarem.
Mas a literatura também nos puxa para a realidade. Entregadores de aplicativo, domésticas, ambulantes: são profissionais que vejo todos os dias e o mínimo de consciência de classe me levou ao equilíbrio de respeitar sem romantizar os esforços excessivos que só servem para fazer girar a máquina de moer gente do capitalismo.
Estes retratos me levaram para a beira dos rios, com quilombolas e indígenas, e me transportaram para lugares sagrados, porque santo não quer saber de pandemia ou de presidente fascista. Santo quer saber de cumprir promessa.
Retratos da vida em quarentena carrega em seus dezenove relatos um panorama deste momento em múltiplas vozes. Seria egoísta desejar que algum dia estes contos sejam lidos apenas como ficção. O que desejo, então, é que os futuros leitores deste livro tenham a sensibilidade de buscar nestes textos um motivo para não repetir o passado. Também faço meu o desejo de que o futuro não demore.
bárbara krauss é jornalista e produtora de conteúdo sobre literatura no B de Barbárie.
editoraslogodubliCONSELHO EDITORIAL
Gustavo Faraon
Rodrigo Rosp
logoelefanteconselho editorial
Bianca Oliveira
João Peres
Tadeu Breda
SELEÇÃO DE TEXTOS
Bárbara Krauss
Gustavo Faraon
Tadeu Breda
EDIÇÃO
Julia Dantas
Tadeu Breda
REVISÃO
Laura Massunari
Rodrigo Rosp
projeto gráfico & diagramação
Luísa Zardo
Produção gráfica
Bianca Oliveira
Índice
Texto da orelha
Créditos
Marluce
Humberto Conzo Junior
Manual do obituarista
Laura Castanho
Abre e fecha
Rosana Vinguenbah Ferreira
A promessa de Dona Tatá
Nelma Rolande
Delivery
João Paulo Vasconcelos
Tecnicamente
Vitor Fernandes
Por que Brenda escreve
Elaine Narcizo
O velho e o rio
André do Amaral
Solo
Carol Miranda
Maldita Cinthia
Matheus de Moura
Alfaces Estragadas
Iuli Gerbase
Olhar na tua cara e descobrir que horas podemos conversar
Caio Riscado e Maria Isabel Iorio
Covid-1997
Jaime S. Filho
Quarentena, 10 letras
Analu Bussular
Exercícios broncodilatadores de rápida ação
Flor Reis
O problema
Laiz Colosovski
Ele
Ana Clara de Britto Guimarães
Quarenta quarentenas
Mateus Dias Pedrini
Portas e janelas escancaradas
Jean Ferreira
marluceHumberto Conzo Junior já publicou quatro livros infantis. É apresentador do canal literário Primeira Prateleira e idealizador do Clube de Literatura Brasileira Contemporânea. Realizou oficinas literárias com João Silvério Trevisan, Carola Saavedra e Marcelino Freire, entre outros. Em 2019 participou do Curso Livre de Preparação do Escritor, promovido pela Casa das Rosas, em São Paulo. Atualmente trabalha em seu primeiro romance.
Marlene, Marcelo, Marialva, Marcos e Miltinho.
Sem escola, sem merenda, sem ter com quem deixar, é confiar nos mais velhos para cuidarem dos menores. É implorar e ameaçar de porrada para que fiquem os cinco ocupando os cinco metros quadrados a que cada um tem direito. A janela é uma só e mostra muitas outras famílias na mesma situação. Tem guri que não aguenta a barriga roncando e escapa para o mundo, ciscando em busca de algo.
Marluce tem que sair todo dia, garantindo o sustento de todos. Não teve escolha. Patrão tá em casa e não quer ver tudo sujo. Dispensa, só se fosse sem receber, mas, como se mostrou preocupado com ela, permitiu que continuasse trabalhando.
– Pode dormir aqui com a gente, Marluce. Você já é quase da família. Tem o quartinho dos fundos lá pra você. Já tem a cama, é só desmontar a tábua de passar e tirar a bagunça dos garotos. Você pode até aproveitar pra organizar aquilo tudo melhor.
– Não dá não, Dr. Carlos, sou eu sozinha com cinco filhos e não tenho com quem deixar. Marlene tem quinze, Marcelo onze, e não dão conta dos pequenos.
Então ele quis pagar Uber para ela ir e voltar todo dia.
Já com o peso da recusa do pernoite, Marluce aceita, mas, sem ele saber, pega só na metade do caminho, para não assustar com a lonjura e com o valor, que é quase o que ela ganha por dia.
Toda manhã continua pegando o trem até o terminal no centro e só depois chama o Uber, para chegar como bacana às vistas do patrão. Na estação, se mistura a muitos outros, isolados apenas em seus medos. Sair mais cedo de casa não ajuda a esbarrar em menos gente: são os que precisam chegar antes que os patrões acordem e já deixar o café pronto sobre a mesa.
– Bom dia, Marluce. Agora, seu trabalho aqui é ainda mais importante, viu. Sua função é essencial. Tudo precisa ficar muito limpo. Quero que você lave com desinfetante o piso todos os dias e passe álcool pela casa toda. As roupas de cama e toalhas precisam ser trocadas e lavadas a cada três dias. Fiz uma planilha com suas tarefas diárias e deixei presa lá na porta da geladeira, tudo explicadinho pra você. O que você não entender pode me perguntar, viu. Agora, estamos todos aqui em casa, mas cada um com seu trabalho. Eu e o Carlos também continuamos na luta, que nem você, pelo telefone e computador, e os meninos têm suas aulas.
Marluce agora tem que trocar toda sua roupa e pôr uniforme branco, que nem babá. Nos pés, chinelos de borracha que não servem mais para os meninos. E a patroa, do outro lado da porta, continua falando.
– Preciso que você me ajude com eles também, será difícil com os dois dentro de casa o tempo todo. Não deixe eles dormirem até de tarde. Pode acordá-los para o almoço. O Carlinhos, você sabe como é adolescente, fica jogando videogame até de madrugada e, se deixar, troca o dia pela noite. Já o Pedro, vou precisar que você dê uma atenção maior e também fique em cima pra que ele faça as tarefas da escola. Bom, vamos vendo, não vai ser fácil pra ninguém, mas aos poucos a gente vai se acertando com a nova rotina.
Todos os dias de manhã, é primeiro o café, depois recolher a merda dos cachorros, alimentá-los para poderem produzir mais merda, lavar o quintal e a garagem, acordar os meninos, o almoço servido, esperar que Dona Vera termine a aula de yoga para poder arrumar o quarto. Dar a descarga que ninguém lembra de apertar e passar desinfetante em tudo. Roupas pelo chão e muito pelo de cachorro, por qualquer canto. A sobra do arroz pode levar para casa, já que ninguém ali come requentado. A carne, não, Dona Vera manda pôr no prato dos cachorros.
O mercado também é Marluce quem faz, enquanto o motorista aguarda no carro. Carrinho transbordando de papel higiênico, álcool em gel e comida para um batalhão.
No final da tarde, coloca a máscara para ir embora, e chegando em casa todo mundo já sabe que não tem um sorriso por baixo dela. Nem ouvidos para as reclamações das brigas entre os cinco ao longo do dia. É cuidar da janta e acompanhar o aumento das mortes pela televisão.
E os dias vão seguindo conforme as instruções deixadas na cozinha, mas sempre com alguma novidade. Patroa em casa dá nisso, fica só inventando moda. Até o dia que o Dr. Carlos não sai da cama para tomar café.
– Não vem, não, Dona Vera? Posso tirar a mesa?
– Não dormiu bem à noite, tá com um pouco de tosse. O médico pediu repouso e para ficar em observação.
Marluce deixa as refeições