A menina do dia
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A menina do dia - Renata Bortoleto
arte.
A briga com a insônia e com o espelho
A história de Íris começa às três da madrugada em meio à sua luta diária contra o sono. A garota não gosta da noite, mas ela chega, sempre chega, mesmo contra sua vontade.
A irmã, ao lado, dorme, como nunca viu ninguém dormir. Nada é capaz de fazer a irmã acordar – nem festa de vizinho, nem uivos de cachorros, nem escola de guitarra.
O quarto é de criança, simples, o quarto e as meninas: uma de 6 e a outra de 13 anos. As duas caminhas ficam pertinho uma da outra. Coisa da mãe, uma protege a outra. Têm colchas de renda branca de flores e folhas – umas grandes, outras pequenas, umas bordadas, outras pintadas à mão. Partes das colchas estão rasgadas. É normal. Pelo menos é o que a mãe diz, coisa é coisa e com o tempo estraga, mas o pai não gosta – elas, as coisas, andam pela hora da morte.
Os cobertores e os lençóis cheiram a naftalina e ficam nas gavetas das camas, onde moram as baratinhas. Noite dessas, assim que conseguiu pegar no sono, uma bichana cor de nada saiu para passear na boca dela e levou um safanão. Rebolou-se toda para não terminar daquele jeito que nenhum cascudo gosta, atrapalhado, de barriga para cima e pernas desesperadas, e tratou logo de tomar seu rumo.
Dona Deodora manda para a cama à noite depois da janta, depois da lição de casa, depois de um pouco de televisão, mas não entende por que a mais velha demora tanto para escovar os dentes, pôr o pijama, ir logo se deitar e fechar os olhos de uma vez por todas, santo Deus, se a outra faz tudo tão rapidinho.
A mãe cansa de insistir para dormir logo e larga Íris com seus seres invisíveis, responsáveis pela insônia que a apavora, noite após noite. Para se proteger, ela usa três cobertores, em qualquer estação. O suor quente logo esfria e molha seu corpo. Seus olhos nunca se fecham – sabe exatamente onde a luz da lua e a claridade da manhã rabiscam a porta do armário quando atravessam as frestas da janela.
Durante a madrugada, quando não aguenta mais de pavor, levanta-se lentamente para não despertar a fúria dos fantasmas presentes. Caminha até o banheiro bem devagar, acendendo as luzes mais necessárias, uma por uma, para não correr o risco de acordar a família. Prende a respiração e, lá dentro, tranca a porta.
– Aqui ninguém me encontra.
Sim, encontra. Ela própria. Íris, no espelho, cara a cara, sem escapatória. Olha bem o seu rosto, tentando reconhecer-se num quem é você e como você veio parar aqui que não tem fim. Lembra do dia e dos elogios da professora na aula de matemática, que vive dizendo para diretores, pais e alunos da escola toda que Íris é uma sumidade, que é quando alguém é mais inteligente do que as outras pessoas.
Mas as suas próprias perguntas, ela nunca consegue responder.
Não só porque vive num universo à parte dos meninos e das meninas da escola, aprendeu a não se importar. Sabe agora como colocar o mundo no mute. Não ouve mais os sons das torcidas nos campeonatos dos quais nunca participa nem os cochichos exaltados dos grupinhos que se encontram nos corredores na hora do intervalo. Já aceitou seu destino de nerd esquisita que vive pelos cantos com suas contas. Não se acha melhor que ninguém. Apenas não se importa. Não mais.
Os assombros chegam de outro lugar. Da internet e da televisão, por exemplo. Para ela, o mundo entra por estas portas como uma avalanche, um vulcão, um tsumami ou um terremoto. Tragédias ou maldades que desmoronam sua vida pacata.
Ontem mesmo, deu no jornal que o pai gosta de ver a notícia de dois homens que pareciam se divertir numa festa popular de uma bonita cidadezinha do interior. Enquanto um comia pipoca, o outro bailava sem parar, mas não deixavam de se encarar. Parecia que se conheciam e que já tinham uma história antes de estarem naquele lugar. Quando o baile acabou e as pessoas foram se dispersando, eles saíram para o lado de fora do reduto, mais afastados, para que ninguém os visse. Um começou a correr atrás do outro com um pedaço de pau na mão. Deram três voltas nas barracas e tendas, feito gato e rato, até o perseguido cair duro no chão. O perseguidor foi preso na hora, minutos depois, quando a polícia chegou. Dois homens adultos vão a uma festa não para curtir, não para brincar nem para relaxar. Dois homens vão a uma festa para matar e morrer. Um morto, o outro preso. Dois homens adultos que, em fração de segundos, simplesmente saem de cena, desaparecem.
Íris não entende a lógica do mundo.
Lava o rosto como se a água fosse trazer sentido. Nariz grande, desproporcional. Boca do pai, olhos do pai, em nada saiu à mãe. Não importa, ninguém repara. Encara o espelho esperando dele suas respostas:
– Como é que pode? Quem determina esse quebra-cabeça todo? Como vim parar aqui, com esse pai, com essa mãe? Quem escolheu