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Anna Karénina
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E-book1.362 páginas26 horas

Anna Karénina

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POSFÁCIO DE VLADIMIR NABOKOV

«Nos capítulos iniciais de Anna Karénina, somos conduzidos, uma e outra vez, a um sentido de analogia musical. Há efeitos de contraponto e harmonia no desenvolvimento das principais tramas do “prelúdio Oblonski” (o acidente na estação ferroviária, a zombadora discussão sobre o divórcio entre Vronski e a baronesa Chilton, o deslumbramento do fogo vermelho diante dos olhos de Anna). O método de Tolstoi é polifónico; mas as harmonias principais desen- volvem-se com uma tremenda força e amplitude. As técnicas musicais e linguísticas não podem comparar-se de um modo exato. Mas como poderíamos elucidar de outro modo o sentimento de que as novelas de Tolstoi surgem de um princípio interior de ordem e vitalidade, enquanto as dos escritores menos importantes parecem alinhavadas?»

«Anna Karénina morre no mundo do romance; mas cada vez que lemos o livro ela ressuscita, e mesmo depois de o termos acabado adquire outra vida na nossa recordação. Em cada personagem literária existe algo da Fénix imortal. Através das vidas perduráveis das suas personagens, a própria existência de Tolstoi teve a sua eternidade.»

George Steiner, Tolstoi ou Dostoievski
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de nov. de 2012
ISBN9789897830297
Anna Karénina
Autor

Léon Tolstoï

<p><b>Lev Nikoláievich Tolstoi</b> nació en 1828, en Yásnaia Poliana, en la región de Tula, de una familia aristócrata. En 1844 empezó Derecho y Lenguas Orientales en la universidad de Kazán, pero dejó los estudios y llevó una vida algo disipada en Moscú y San Petersburgo.</p><p> En 1851 se enroló con su hermano mayor en un regimiento de artillería en el Cáucaso. En 1852 publicó <i>Infancia</i>, el primero de los textos autobiográficos que, seguido de <i>Adolescencia</i> (1854) y <i>Juventud</i> (1857), le hicieron famoso, así como sus recuerdos de la guerra de Crimea, de corte realista y antibelicista, <i>Relatos de Sevastópol</i> (1855-1856). La fama, sin embargo, le disgustó y, después de un viaje por Europa en 1857, decidió instalarse en Yásnaia Poliana, donde fundó una escuela para hijos de campesinos. El éxito de su monumental novela <i>Guerra y paz</i> (1865-1869) y de <i>Anna Karénina</i> (1873-1878; ALBA CLÁSICA MAIOR, núm. XLVII, y ALBA MINUS, núm. 31), dos hitos de la literatura universal, no alivió una profunda crisis espiritual, de la que dio cuenta en <i>Mi confesión</i> (1878-1882), donde prácticamente abjuró del arte literario y propugnó un modo de vida basado en el Evangelio, la castidad, el trabajo manual y la renuncia a la violencia. A partir de entonces el grueso de su obra lo compondrían fábulas y cuentos de orientación popular, tratados morales y ensayos como <i>Qué es el arte</i> (1898) y algunas obras de teatro como <i>El poder de las tinieblas</i> (1886) y <i>El cadáver viviente</i> (1900); su única novela de esa época fue <i>Resurrección</i> (1899), escrita para recaudar fondos para la secta pacifista de los dujobori (guerreros del alma).</p><p> Una extensa colección de sus <i>Relatos</i> ha sido publicada en esta misma colección (ALBA CLÁSICA MAIOR, núm. XXXIII). En 1901 fue excomulgado por la Iglesia Ortodoxa. Murió en 1910, rumbo a un monasterio, en la estación de tren de Astápovo.</p>

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    Anna Karénina - Léon Tolstoï

    12:19.

    Primeira Parte

    I

    Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.

    Tudo era confusão em casa dos Oblonski. A mulher soubera que o marido mantinha uma relação com a antiga precetora francesa e informou-o de que não podia continuar a viver com ele na mesma casa. Havia três dias que esta situação durava e era penosa para os próprios esposos e para todos os membros da família, incluindo os criados. Todos os membros da família e os criados sentiam que a sua vida em comum não fazia sentido e que até as pessoas que se encontram casualmente numa estalagem estão mais ligadas entre si do que eles, membros da família e criados dos Oblonski. A mulher não saía dos seus aposentos, o marido não vinha a casa havia três dias. As crianças corriam por toda a casa, como que perdidas; a precetora inglesa zangou-se com a governanta e escreveu uma carta a uma amiga pedindo-lhe que lhe arranjasse outra colocação; o cozinheiro tinha abandonado a casa no dia anterior, à hora do jantar; a ajudante de cozinheira e o cocheiro pediram as contas.

    No terceiro dia depois da briga, o príncipe Stepan Arkáditch² Oblonski — Stiva, como lhe chamavam em sociedade —, à hora habitual, ou seja, às oito da manhã, acordou não no quarto da mulher, mas no seu escritório, no sofá de marroquim. Virou o corpo cheio e bem cuidado nas molas do sofá como se desejasse adormecer de novo por muito tempo, abraçou com força a almofada e pousou nela a face; mas de repente saltou, sentou-se no sofá e abriu os olhos.

    «Sim, sim, como era aquilo? — pensou, recordando o sonho. — Sim, como era? Ah, sim! Alabin oferecia um jantar em Darmstadt; não, não era Darmstadt, mas qualquer coisa americana. Sim, mas Darmstadt era na América. Sim, Alabin oferecia um jantar em mesas de vidro — e as mesas cantavam: Il mio tesoro, mas não era Il mio tesoro, era qualquer coisa melhor, e havia umas garrafas pequeninas, que afinal eram mulheres», lembrou-se.

    Os olhos de Stepan Arkáditch brilharam alegremente e ele ficou a pensar, sorrindo. «Sim, era bom, muito bom. Havia ainda muitas coisas excelentes, impossíveis de dizer por palavras e de expressar por pensamentos.» E, reparando numa faixa de luz que penetrava pelo lado de um dos reposteiros de lã, desceu alegremente os pés do sofá, procurando os chinelos de carneira bordados a ouro pela mulher (presente de aniversário no ano anterior), e por um hábito de nove anos, sem se levantar, estendeu a mão para o lugar onde no quarto costumava estar pendurado o roupão. Então lembrou-se de repente de como e porque estava a dormir não no quarto da mulher, mas no seu escritório; o sorriso desapareceu do seu rosto e ele franziu a testa.

    «Ai, ai, ai! Aaah…», gemeu ao lembrar-se de tudo o que acontecera. E de novo surgiram na sua imaginação todos os pormenores da briga com a mulher, todo o impasse da sua posição e, pior do que tudo, a sua própria culpa.

    «Não! Ela não me perdoa e não pode perdoar. E o mais horrível é que a culpa é toda minha — a culpa é minha, e não sou culpado. Nisso está todo o drama — pensava. — Ai, ai, ai!», murmurou com desespero, lembrando os pormenores dessa briga mais difíceis para si próprio.

    O pior de tudo tinha sido aquele primeiro momento, quando, ao voltar do teatro alegre e contente, trazendo na mão uma pera enorme para a mulher, não a encontrou na sala de estar; para sua surpresa, também não a encontrou no gabinete e foi por fim no quarto que a viu com o infeliz e revelador bilhete na mão.

    Ela, Dolli, a eterna preocupada e azafamada, e não muito inteligente, como ele a considerava, estava sentada imóvel com o bilhete na mão e olhava para ele com uma expressão de horror, desespero e fúria.

    — O que é isto? Isto? — perguntou, mostrando o bilhete.

    E a esta recordação, como muitas vezes acontece, o que atormentava Stepan Arkáditch não era tanto o próprio acontecimento, mas o modo como ele respondera a estas palavras da mulher.

    Aconteceu-lhe naquele momento o que acontece às pessoas quando são inesperadamente apanhadas em qualquer coisa demasiado vergonhosa. Não soube preparar o seu rosto para a situação em que ficou perante a mulher depois da descoberta da sua culpa. Em vez de se ofender, de negar, de se justificar, de pedir perdão ou mesmo de se manter indiferente — tudo era melhor do que aquilo que ele fez! — o seu rosto, de um modo completamente involuntário («reflexos do cérebro», pensou Stepan Arkáditch, que gostava de fisiologia), de um modo completamente involuntário sorriu de súbito num sorriso habitual, bondoso e, por isso, tolo.

    Não conseguia perdoar-se a si mesmo aquele sorriso tolo. Ao ver aquele sorriso, Dolli estremeceu, como sob o efeito de uma dor física, e com a fogosidade que lhe era própria rompeu numa torrente de palavras violentas e saiu do quarto a correr. Desde então não queria ver o marido.

    «Toda a culpa era daquele sorriso tolo», pensava Stepan Arkáditch.

    «Mas que fazer? Que fazer?», perguntava desesperado a si mesmo e não encontrava resposta.

    II

    Stepan Arkáditch era um homem sincero consigo mesmo. Não podia enganar-se e dizer a si próprio que estava arrependido do seu comportamento. Não podia arrepender-se agora daquilo que se arrependera seis anos antes, quando pela primeira vez fora infiel à mulher. Homem de trinta e quatro anos, belo e apaixonado, não podia arrepender-se de já não amar a mulher, mãe de cinco filhos vivos e dois mortos, que era apenas um ano mais nova do que ele. Só se arrependia de não ter sabido esconder melhor as coisas. Mas sentia toda a gravidade da sua situação e tinha pena da mulher, dos filhos e de si próprio. Talvez tivesse sido capaz de ocultar melhor as suas faltas da mulher se pensasse que teriam tal efeito nela. Nunca tinha pensado claramente nessa questão, mas imaginava confusamente que a mulher adivinhara havia muito que ele lhe era infiel e fazia vista grossa. Achava até que, por uma questão de justiça, ela, uma mulher gasta, envelhecida, já sem beleza e sem nada de notável, simplesmente uma boa mãe de família, se devia mostrar indulgente. Revelou-se precisamente o contrário.

    «Ah, é horrível! Horrível! — repetia Stepan Arkáditch para si mesmo e não conseguia encontrar solução. — E estava tudo tão bem antes disto, tínhamos uma vida tão boa! Ela andava contente, feliz com as crianças, eu não a incomodava em nada, deixava-a ocupar-se dos filhos, da casa, como ela queria. É verdade, não está bem que ela tenha uma precetora em nossa casa. Não está certo! Há qualquer coisa de vulgar, de vil, em cortejar a precetora. Mas que precetora! (Recordou vivamente os olhos negros e travessos de Mlle Roland e o seu sorriso.) Mas enquanto ela esteve em nossa casa eu nunca me permiti nada. E o pior de tudo é que ela já… Logo havia de acontecer uma coisa destas como que de propósito! Ai, ai, ai! Mas que fazer, que fazer?»

    Não havia resposta para além daquela resposta geral que a vida dá às questões mais complexas e insolúveis. Essa resposta é: há que viver as exigências do dia, ou seja, esquecer. Esquecer no sono já não era possível, ao menos até à noite, não era possível já voltar àquela música cantada pelas garrafas-mulheres; portanto, havia que esquecer no sonho da vida.

    «Depois se verá», disse Stepan Arkáditch para si mesmo, levantando-se. Vestiu o roupão cinzento com forro azul de seda, prendeu o cinto com um nó e, enchendo bem de ar a ampla caixa do peito, aproximou-se da janela no habitual passo decidido dos seus pés cambados, que suportavam tão facilmente o seu corpo cheio, levantou a cortina e tocou fortemente a campainha. Em resposta ao toque, entrou imediatamente o seu velho amigo, o camareiro Matvei, trazendo o fato, as botas e um telegrama. Atrás de Matvei entrou o barbeiro com os apetrechos de barbear.

    — Alguns papéis da repartição? — perguntou Stepan Arkáditch, pegando no telegrama e sentando-se diante do espelho.

    — Em cima da mesa — respondeu Matvei, olhando o amo interrogativamente, com simpatia, e depois de uma breve pausa acrescentou com um sorriso astuto: — Veio alguém da parte do dono da cocheira.

    Stepan Arkáditch não respondeu, limitando-se a olhar Matvei no espelho; pelo olhar que assim trocaram era visível como se compreendiam um ao outro. O olhar de Stepan Arkáditch parecia perguntar: «Porque estás a dizer isso? Pois tu não sabes?»

    Matvei enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta, afastou um pé e olhou para o amo em silêncio, com bonomia e um leve sorriso.

    — Mandei-os vir no próximo domingo e que até lá não incomodassem o senhor nem se incomodassem em vão — disse ele, numa frase obviamente preparada.

    Stepan Arkáditch compreendeu que Matvei queria gracejar e chamar a atenção para si mesmo. Abrindo o telegrama, leu-o, corrigindo mentalmente as palavras incompletas como sempre, e o seu rosto iluminou-se.

    — Matvei, a minha irmã Anna Arkádievna chega amanhã — disse ele, parando por um momento a mão lustrosa e roliça do barbeiro que abria um caminho rosado entre as suíças longas e frisadas.

    — Louvado seja Deus — disse Matvei, mostrando com esta resposta que compreendia, tal como o seu senhor, o significado dessa vinda, ou seja, que Anna Arkádievna, a querida irmã de Stepan Arkáditch, podia contribuir para a reconciliação entre o marido e a mulher.

    — Sozinha ou com o esposo? — perguntou Matvei.

    Stepan Arkáditch não podia falar porque o barbeiro estava ocupado com o lábio superior, e levantou um dedo. Matvei, no espelho, acenou a cabeça.

    — Sozinha. Preparo os aposentos em cima?

    — Diz a Dária Aleksándrovna, para que decida.

    — A Dária Aleksándrovna? — repetiu Matvei como que duvidoso.

    — Sim, diz-lhe. Leva-lhe o telegrama e conta-me o que ela disser.

    «Quer experimentá-la», compreendeu Matvei, mas apenas disse:

    — Muito bem, senhor.

    Stepan Arkáditch estava já lavado e penteado e preparava-se para se vestir quando Matvei, caminhando lentamente nas suas botas rangedoras, com o telegrama na mão, voltou ao quarto. O barbeiro já tinha saído.

    — Dária Aleksándrovna mandou informar que vai partir e que ele, quer dizer, o senhor, faça como entender — disse Matvei rindo-se apenas com os olhos e, metendo as mãos nos bolsos e inclinando a cabeça para o lado, olhou fixamente o amo.

    Stepan Arkáditch ficou em silêncio. Depois um sorriso bondoso e um tanto lastimável iluminou-lhe o belo rosto.

    — Hem, Matvei, que achas? — disse, abanando a cabeça.

    — Não tem mal, senhor, tudo se arranja — disse Matvei.

    — Arranja?

    — Exatamente, senhor.

    — Achas? Quem está aí? — perguntou Stepan Arkáditch ao ouvir atrás da porta o som de roupas femininas.

    — Sou eu, senhor — disse uma voz firme e agradável de mulher, e à porta surgiu o rosto severo e bexigoso da aia, Matriona Filimónovna.

    — Então, Matriocha? — perguntou Stepan Arkáditch saindo ao encontro dela.

    Apesar de ser totalmente culpado aos olhos da mulher e de ele próprio se sentir culpado, quase todos em casa, até a aia, principal amiga de Dária Aleksándrovna, estavam do lado dele.

    — E então? — perguntou ele tristemente.

    — Vá ter com a senhora, peça perdão mais uma vez, meu senhor. Talvez Deus permita. Ela sofre muito, dá pena ver, e toda a casa anda numa desordem. É preciso ter pena das crianças, meu senhor. Peça perdão, senhor. Que se há de fazer! É preciso pagar…

    — Mas ela não me recebe…

    — Mas o senhor faça a sua parte. Deus é misericordioso, reze a Deus, meu senhor. Reze a Deus.

    — Bom, está bem, agora vai — disse Stepan Arkáditch, subitamente ruborizado. — Anda, vamos vestir — disse, dirigindo-se a Matvei e despindo resolutamente o roupão.

    Matvei já segurava a camisa preparada, soprando qualquer coisa invisível, e com evidente satisfação envolveu com ela o corpo cuidado do amo.

    III

    Depois de se vestir, Stepan Arkáditch perfumou-se, endireitou as mangas da camisa, com gestos habituados distribuiu pelos bolsos os cigarros, a carteira, fósforos, o relógio com dupla corrente e berloques e, sacudindo o lenço, sentindo-se limpo, perfumado, saudável e fisicamente animado apesar da sua infelicidade, saiu estremecendo ligeiramente a cada passo, dirigindo-se para a sala de jantar onde já o esperava o café e, ao lado do café, cartas e papéis da repartição.

    Leu as cartas. Uma delas era muito desagradável — era de um comerciante que comprava a madeira da propriedade da mulher. Era necessário vender aquele bosque; mas agora, em vias de reconciliação com a mulher, isso estava fora de questão. O mais desagradável era que assim se misturava um interesse monetário com a questão da sua reconciliação com a mulher. E a ideia de que pudesse ser movido por esse interesse, de que poderia procurar a reconciliação com a mulher para a venda do bosque, parecia-lhe ultrajante.

    Terminadas as cartas, puxou os documentos da repartição, folheou rapidamente dois processos, fez algumas anotações com um grande lápis e, colocando os processos de lado, começou a tomar o café; durante o café abriu o jornal da manhã ainda húmido e começou a lê-lo.

    Stepan Arkáditch recebia e lia um jornal liberal, não extremista, mas da orientação apoiada pela maioria. E apesar de não se interessar particularmente nem pela ciência, nem pela arte, nem pela política, seguia firmemente em relação a todas essas matérias as opiniões seguidas pela maioria e pelo seu jornal, e só as mudava quando a maioria as mudava ou, melhor dizendo, não as mudava, mas elas mesmas mudavam nele impercetivelmente.

    Stepan Arkáditch não escolhia orientações nem opiniões, mas eram essas orientações e opiniões que vinham ao seu encontro; do mesmo modo que não escolhia as formas do chapéu ou da sobrecasaca, mas comprava os que toda a gente usava. E para ele, que vivia numa certa sociedade em que era exigida alguma atividade mental que se desenvolve habitualmente com a maturidade, era tão necessário ter opiniões como usar chapéu. E se havia algum motivo para que ele preferisse a tendência liberal à conservadora, que também era seguida por muitos do seu círculo, não era porque achasse o liberalismo mais racional do que o conservadorismo, mas porque condizia melhor com a sua maneira de viver. O partido liberal dizia que na Rússia estava tudo mal, e de facto Stepan Arkáditch tinha muitas dívidas e decididamente não lhe chegava o dinheiro. O partido liberal dizia que o casamento era uma instituição obsoleta a precisar de reforma, e realmente a vida familiar trazia poucos prazeres a Stepan Arkáditch e forçava-o a mentir e a fingir, o que tanto repugnava à sua natureza. O partido liberal dizia, ou antes, sugeria que a religião era apenas um freio para a parte bárbara da população, e efetivamente Stepan Arkáditch não podia suportar nem a mais breve cerimónia religiosa sem que lhe doessem as pernas e não conseguia compreender para que serviam todas aquelas palavras terríveis e grandiloquentes sobre o outro mundo, quando neste era tão agradável viver. Ao mesmo tempo, Stepan Arkáditch, que gostava de uma boa piada, sentia por vezes prazer em deixar perplexas algumas boas almas dizendo que, se queriam orgulhar-se da sua linhagem, não deviam parar em Rurik³ e renegar o primeiro ascendente — o macaco. Portanto, a orientação liberal tornou-se um hábito para Stepan Arkáditch, e ele gostava do seu jornal, como gostava do charuto depois do almoço, por causa da ligeira bruma que lhe provocava na cabeça. Leu o editorial, onde se afirmava que no nosso tempo se levanta um clamor absolutamente inútil segundo o qual o radicalismo ameaça devorar todos os elementos conservadores e que o Governo teria o dever de tomar medidas para esmagar a hidra revolucionária, que, pelo contrário, «em nossa opinião, o perigo está não na suposta hidra revolucionária, mas na obstinação do tradicionalismo que entrava o progresso», etc. Leu ainda outro artigo, financeiro, em que se falava de Bentham e de Mill⁴ e se lançavam remoques contra o ministério. Com a rápida perceção que lhe era característica, compreendia o significado de cada remoque: de quem vinha e a quem era dirigido e por que motivo, e isso dava-lhe, como sempre, alguma satisfação. Mas hoje essa satisfação era envenenada pela recordação dos conselhos de Matriona Filimónova e da triste situação em casa. Leu também acerca do conde Beust que, ao que se dizia, passara por Wiesbaden, e de que iam acabar os cabelos grisalhos, e sobre a venda de um coche, e sobre uma jovem que oferecia os seus serviços; mas essas informações não lhe proporcionavam a habitual satisfação calma e irónica.

    Terminado o jornal, a segunda chávena de café e um pãozinho com manteiga, levantou-se, sacudiu as migalhas do colete, e endireitando o peito

    largo, sorriu alegremente, não porque tivesse no espírito alguma coisa particularmente agradável — o sorriso alegre era provocado pela boa digestão.

    Mas esse sorriso alegre imediatamente o fez lembrar de tudo, e ele ficou pensativo.

    Atrás da porta ouviam-se duas vozes infantis (Stepan Arkáditch reconheceu a voz de Gricha, o menino mais pequeno, e de Tânia, a menina mais velha). Transportavam qualquer coisa que deixaram cair.

    — Eu disse que não se podiam sentar passageiros no telhado — gritava a menina em inglês —, agora apanha!

    «Está tudo numa confusão — pensou Stepan Arkáditch —, andam

    as crianças a correr sozinhas.» E, aproximando-se da porta, chamou-as. As crianças largaram o cofre, que representava o comboio, e correram para o pai.

    A menina, a preferida do pai, entrou a correr sem hesitação, abraçou-o e, rindo-se, pendurou-se-lhe ao pescoço, como sempre, alegrando-se com o cheiro a perfume que lhe exalava das suíças. Depois de lhe beijar o rosto avermelhado da posição inclinada e radioso de ternura, a menina soltou as mãos e queria afastar-se; mas o pai reteve-a.

    — Como está a mamã? — perguntou, acariciando o pescoço liso e suave da filha. — Bom dia — acrescentou dirigindo-se ao rapazinho que o saudava.

    Tinha consciência de que gostava menos do filho e procurava sempre ser justo, mas o menino sentia isso e não respondeu com um sorriso ao sorriso frio do pai.

    — A mamã? Já se levantou — respondeu a menina.

    Stepan Arkáditch suspirou. «Portanto, passou outra vez a noite sem dormir», pensou.

    — E então, está alegre?

    A menina sabia que houvera uma discussão entre o pai e a mãe e que a mãe não podia estar alegre, que o pai devia saber isso e que fingia ao fazer a pergunta de um modo tão ligeiro. E ela corou pelo pai. Ele compreendeu isso imediatamente e também corou.

    — Não sei — disse ela. — Ela não nos mandou estudar, mas disse para irmos passear com Miss Hull a casa da avó.

    — Pois então vai, minha Tanchurotchka⁵. Ah, espera — disse, retendo-a e acariciando-lhe a mãozinha delicada.

    Tirou de cima do friso da lareira uma caixa de bombons que ali tinha colocado na véspera e deu-lhe dois, escolhendo aqueles que ela preferia, um de chocolate e outro de creme.

    — Para o Gricha? — perguntou a menina, indicando o de chocolate.

    — Sim, sim. — E acariciando-lhe uma vez mais o ombro, beijou-a na curva do pescoço e deixou-a ir.

    — A carruagem está pronta — disse Matvei. — E tem uma visitante — acrescentou.

    — Está aí há muito? — perguntou Stepan Arkáditch.

    — Há uma meia hora.

    — Quantas vezes te disse já para me informares imediatamente!

    — Tinha de deixar o senhor tomar ao menos o café — disse Matvei naquele tom entre o amistoso e o rude, com o qual era impossível zangar-se.

    — Pois pede-lhe depressa que entre — disse Oblonski, com um trejeito de enfado.

    A solicitante, esposa do capitão de um estado-maior, Kalinin, pedia qualquer coisa impossível e tola; mas Stepan Arkáditch, como era seu costume, mandou-a sentar-se, escutou-a atentamente sem a interromper, aconselhou-a pormenorizadamente sobre a quem e como dirigir-se e até lhe escreveu, viva e fluentemente, na sua caligrafia grande, longa e bonita, uma nota à pessoa que lhe podia valer. Depois de atender a mulher do capitão, Stepan Arkáditch pegou no chapéu e parou, pensando se não se teria esquecido de alguma coisa. Mas não se tinha esquecido de nada, a não ser daquilo que queria esquecer — a mulher.

    «Ah, sim!» Baixou a cabeça e o seu belo rosto assumiu uma expressão melancólica. «Vou ou não vou?», dizia para si mesmo. E uma voz interior dizia-lhe que não devia ir, que nisso só podia haver falsidade, que era impossível restabelecer, recompor as suas relações, porque era impossível voltar a fazê-la atraente e capaz de suscitar o amor ou torná-lo a ele um velho incapaz de amar. Nada podia agora surgir dali além de falsidade e mentira; e a falsidade e a mentira repugnavam à sua natureza.

    «Mas terei de fazê-lo em qualquer altura; as coisas não podem ficar assim», disse, procurando ganhar coragem. Endireitou o peito, puxou um cigarro, acendeu-o, tirou duas fumaças, atirou-o para o cinzeiro de madrepérola, atravessou em passos rápidos a sala de visitas sombria e abriu a outra porta do quarto da mulher.

    IV

    Dária Aleksándrovna, vestindo um penteador e com as tranças dos seus cabelos, outrora fartos e bonitos e agora cada vez mais ralos, presas com ganchos no alto da nuca, o rosto magro e macilento e os grandes olhos assustados acentuados pela magreza do rosto, estava em pé no meio de objetos espalhados pelo quarto diante de um guarda-roupa aberto, de onde retirava qualquer coisa. Ao ouvir os passos do marido, parou, olhou para a porta e tentou em vão dar ao rosto uma expressão severa e desdenhosa. Sentia que tinha medo dele e do encontro que se avizinhava. Acabava de tentar fazer aquilo que já tentara umas dez vezes naqueles três dias: separar algumas coisas dos filhos e suas que levaria para casa da mãe — e uma vez mais não conseguira decidir-se; mas também agora, como das vezes anteriores, dizia a si mesma que aquilo não podia ficar assim, que tinha de fazer alguma coisa, castigá-lo, envergonhá-lo, vingar-se nele ao menos de uma pequena parte da dor que lhe causara. Ainda dizia que ia deixá-lo, mas sentia que isso era impossível; era impossível porque não podia desacostumar-se de considerá-lo seu marido e de amá-lo. Além disso, sentia que se aqui em sua casa mal conseguia cuidar dos seus cinco filhos, eles ficariam ainda pior no lugar para onde ia com todos eles. E ainda, naqueles três dias o mais pequeno tinha adoecido por lhe darem a comer um caldo mal feito, e os outros tinham ficado quase sem jantar no dia anterior. Sentia que era impossível partir; mas, enganando-se a si mesma, continuava a separar as coisas e a fingir que ia partir.

    Ao ver o marido, baixou a mão para a gaveta do guarda-roupa como se procurasse alguma coisa, e só o olhou quando ele chegou mesmo junto dela. Mas o seu rosto, a que desejava dar uma expressão severa e resoluta, exprimia consternação e sofrimento.

    — Dolli! — disse ele em voz suave e tímida. Baixou a cabeça para o peito, querendo ter um ar dorido e submisso, mas continuava a irradiar frescura e saúde.

    Ela lançou um olhar rápido, de alto a baixo, à figura fresca e saudável do marido. «Sim, ele está feliz e contente! — pensou ela —, e eu?… E essa bondade repulsiva por que todos gostam tanto dele e o elogiam; odeio essa sua bondade», pensou. Apertou os lábios, um músculo da sua face tremeu do lado direito do rosto pálido e nervoso.

    — O que é que deseja? — perguntou numa voz rápida, peitoral, que não era a sua.

    — Dolli! — repetiu ele com uma tremura na voz —, a Anna chega hoje.

    — E que tenho eu com isso? Não posso recebê-la! — exclamou ela.

    — Mas, Dolli, é preciso…

    — Vá-se embora, vá-se embora — gritou sem olhar para ele, como se aquele grito fosse provocado por uma dor física.

    Stepan Arkáditch podia estar calmo quando pensava na mulher, podia esperar que tudo se comporia, segundo a expressão de Matvei, e podia ler tranquilamente o jornal e tomar o café; mas quando viu o rosto extenuado e sofredor dela, quando ouviu aquela voz resignada ao destino e desesperada, faltou-lhe a respiração, qualquer coisa lhe subiu à garganta e brilharam as lágrimas nos seus olhos.

    — Meu Deus, o que eu fiz! Dolli! Por amor de Deus!… Eu… — não pôde continuar, um soluço sufocou-lhe a garganta.

    Ela fechou com estrondo a porta do armário e olhou para ele.

    — Dolli, que posso eu dizer?… Só uma coisa: perdoa-me, perdoa-me… Lembra-te, não achas que nove anos de vida podem redimir um momento, um momento…

    Ela baixou os olhos e escutou, à espera daquilo que ele diria, como se lhe rogasse que a dissuadisse de algum modo.

    — Um instante… um instante de arrebatamento… — repetiu ele, e queria continuar, mas a esta palavra ela apertou de novo os lábios como se sentisse uma dor física, e de novo lhe tremeu o músculo da face direita.

    — Saia, saia daqui! — gritou ainda mais estridentemente —, e não me fale das suas fraquezas e das suas vilezas!

    Ela quis sair, mas vacilou e agarrou-se às costas de uma cadeira, para se apoiar. O rosto dele dilatou-se, os lábios incharam, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.

    — Dolli! — disse já a soluçar. — Por amor de Deus, pensa nas crianças, elas não têm culpa. Eu sou culpado, castiga-me, faz-me expiar a minha culpa. Estou pronto a fazer tudo o que puder! Sou culpado, não há palavras para dizer como sou culpado! Mas, Dolli, perdoa-me!

    Ela sentou-se. Ele ouvia a sua respiração pesada e sonora, e sentia por ela uma piedade inexprimível. Por várias vezes ela quis falar, sem o conseguir. Ele esperava.

    — Tu lembras-te dos filhos para brincar com eles, mas eu penso neles sempre e sei que agora estão perdidos — disse ela, o que era visivelmente uma das frases que repetira a si mesma mais de uma vez naqueles três dias.

    Tratara-o por «tu», e ele olhou-a com gratidão e quis agarrar-lhe a mão, mas ela afastou-se com repugnância.

    — Eu lembro-me dos filhos e por isso faria tudo no mundo para salvá-los; mas eu própria não sei como posso salvá-los: se afastando-os do pai, ou deixando-os com um pai depravado — sim, um pai depravado… Pois diz-me, depois do que… aconteceu, poderemos continuar a viver juntos? Será possível? Diga-me, será possível? — disse, erguendo a voz. — Depois de o meu marido, o pai dos meus filhos, manter uma relação amorosa com a precetora dos seus filhos…

    — Mas que fazer? Que fazer? — dizia ele numa voz lastimosa, sem saber o que dizia e baixando a cabeça cada vez mais.

    — Você é repugnante, mete-me nojo! — gritou ela, irritando-se cada vez mais. — As suas lágrimas são apenas água! Você nunca me amou; não tem coração, nem nobreza! É vil, nojento, um estranho, sim, completamente estranho! — proferiu, com dor e com raiva, aquela palavra horrível para ela: estranho.

    Ele olhou-a, e a raiva expressa no rosto dela assustou-o e surpreendeu-o. Não compreendia que a sua piedade a exasperava. Ela via nele compaixão e não amor. «Não, ela odeia-me. Não me perdoa», pensou.

    — Isto é horrível! Horrível! — disse ele.

    Nesse momento, no quarto ao lado, uma criança começou a chorar, provavelmente por ter caído; Dária Aleksándrovna escutou e o seu rosto suavizou-se.

    Demorou visivelmente alguns segundos a voltar a si, como se não soubesse onde estava e o que devia fazer, e depois, levantando-se rapidamente, caminhou para a porta.

    «Mas se ela ama o meu filho — pensou ele, notando a mudança no rosto dela ao ouvir os gritos da criança —, o meu filho; como pode ela odiar-me a mim?»

    — Dolli, só mais uma palavra — disse, avançando para ela.

    — Se você vem atrás de mim, eu chamo o pessoal, e as crianças! Para que saibam que você é um patife! Eu vou-me embora hoje, e você fique a viver aqui com a sua amante!

    E saiu, batendo com a porta.

    Stepan Arkáditch suspirou, limpou o rosto e saiu do quarto em passos silenciosos. «O Matvei diz que isto se há de compor; mas como? Não vejo nenhuma possibilidade. Ah, ah, que horror! E com que trivialidade ela gritou — dizia a si próprio, recordando os gritos e as palavras: patife e amante. — E talvez as criadas tivessem ouvido! Horrivelmente trivial, horrivelmente.» Stepan Arkáditch ficou alguns instantes sozinho, limpou os olhos, suspirou e, endireitando o peito, saiu do quarto.

    Era sexta-feira, e na sala de jantar o relojoeiro alemão dava corda ao relógio. Stepan Arkáditch lembrou-se do seu gracejo acerca daquele relojoeiro careca tão pontual, dizendo que o alemão «tinha recebido corda para toda a vida, a fim de dar corda aos relógios» — e sorriu. Stepan Arkáditch gostava de uma boa piada. «Mas talvez se componha! Boa palavra: compor-se — pensou. — Isto merece ser contado.»

    — Matvei! — gritou —, arranja lá as coisas com a Maria na sala de estar para Anna Arkádievna — disse ele quando Matvei entrou.

    — Sim, senhor.

    Stepan Arkáditch vestiu a peliça e saiu para o pátio.

    — O senhor não vem comer a casa? — perguntou Matvei, que o acompanhava.

    — Logo se verá. Toma lá, para as despesas — disse retirando da carteira dez rublos. — Será que chega?

    — Chegue ou não, cá nos arranjaremos — disse Matvei, fechando a porta da carruagem e subindo os degraus da entrada.

    Entretanto Dária Aleksándrovna, depois de sossegar o filho, e compreendendo pelo som da carruagem que ele tinha partido, voltou para o quarto. Aquele era o seu único refúgio das preocupações domésticas, que a cercavam assim que ele saía. Agora mesmo, no curto tempo em que foi aos aposentos das crianças, a inglesa e Matriona Filimónovna conseguiram assediá-la com questões inadiáveis a que só ela podia dar resposta: o que vestir às crianças para o passeio? Dar-lhes leite? Não se devia mandar chamar outro cozinheiro?

    — Ah, deixem-me, deixem-me! — disse e, voltando para o quarto, sentou-se no mesmo lugar onde estivera a falar com o marido, apertando as mãos descarnadas com os anéis que lhe deslizavam dos dedos ossudos, e pôs-se a rememorar toda a conversa que acabava de ter. «Foi-se embora! Mas como é que ele terminou com ela? — pensava. — Será possível que continue a vê-la? Porque não lhe perguntei? Não, não, juntarmo-nos outra vez é impossível. Mesmo que fiquemos na mesma casa. Seremos estranhos. Para sempre estranhos!», repetiu de novo com especial ênfase esta palavra terrível para ela. «E como eu o amava, meu Deus, como o amava!… Como eu o amava! E não o amo agora? Não o amo eu agora mais do que antes? O mais terrível, o principal, é…», começou mas não terminou o seu pensamento, porque Matriona Filimónova espreitou à porta.

    — Talvez possa mandar chamar o meu irmão — disse ela —, ao menos ele prepara o almoço; senão os meninos ficam até às seis horas sem comer, como ontem.

    — Pois, está bem, eu já lá vou dar as ordens. Mandaram buscar leite fresco?

    E Dária Aleksándrovna mergulhou nas preocupações quotidianas e afogou nelas por algum tempo a sua dor.

    V

    Graças às suas boas qualidades, Stepan Arkáditch aprendera bem na escola, mas era preguiçoso e travesso e, por isso, terminou entre os últimos; mas apesar da sua vida de constante dissipação, da modesta qualificação e da pouca idade, ocupava um cargo distinto e bem remunerado de chefe de uma repartição de Moscovo. Esse cargo obtivera-o ele através do marido da sua irmã Anna, Aleksei Aleksándrovitch Karénin, que ocupava um dos mais importantes lugares no ministério a que pertencia a repartição; mas se Karénin não tivesse nomeado o seu cunhado para aquele cargo, Stiva Oblonski poderia ter obtido, através de uma centena de outras personalidades, irmãos, irmãs, primos, tios e tias, aquele posto ou outro semelhante, com um ordenado de seis mil rublos, de que necessitava, porque os seus assuntos andavam muito mal, apesar da considerável fortuna da mulher.

    Metade de Moscovo e de Petersburgo eram parentes e amigos de Stepan Arkáditch. Nascera no meio daquelas pessoas que eram ou passaram a ser os poderosos deste mundo. Um terço dos dignitários do Estado, os mais velhos, tinham sido amigos do seu pai e conheciam-no a ele desde quando andava de bibe; o outro terço tratavam-no por «tu» e o terço restante eram bons conhecidos; por conseguinte, aqueles que distribuíam os bens deste mundo sob a forma de cargos, arrendamentos, concessões e outros semelhantes eram todos amigos dele e não podiam desprezar um dos seus; e Oblonski não precisara de se esforçar muito para obter um cargo proveitoso; precisava apenas de não recusar, não invejar, não se zangar, não se ofender, coisa que ele, pela sua própria bondade, nunca faria de qualquer modo. Teria achado ridículo se lhe dissessem que não obteria um cargo com o ordenado de que necessitava, tanto mais que não pedia nada de extraordinário; ele queria apenas aquilo que recebiam os seus pares e era capaz de desempenhar semelhante tipo de funções tão bem como qualquer outro.

    Não só todos os que conheciam Stepan Arkáditch gostavam dele pelo seu temperamento bom e alegre e pela sua indubitável honestidade, mas havia também nele, na sua aparência formosa e radiante, nos olhos cintilantes, nas sobrancelhas e nos cabelos negros, no rosto branco e corado, qualquer coisa que causava uma impressão física amigável e alegre nas pessoas que se encontravam com ele. «Ah-ah! Stiva! Oblonski! Aí está ele!», diziam quase sempre com um sorriso alegre aqueles que o encontravam. E mesmo que acontecesse por vezes uma conversa com ele não ter qualquer efeito especialmente alegre, no dia seguinte ou dois dias depois de novo se alegravam de igual modo ao encontrá-lo.

    Ocupando pelo terceiro ano o cargo de chefe de umas das repartições de Moscovo, Stepan Arkáditch tinha adquirido além do afeto, também o respeito dos colegas, dos subordinados superiores e de todos os que lidavam com ele. As principais qualidades de Stepan Arkáditch, que lhe valiam esse respeito geral, eram em primeiro lugar uma extrema indulgência para com as pessoas, que nele se baseava na consciência dos seus próprios defeitos; em segundo lugar, o seu completo liberalismo, não aquele sobre o qual lia nos jornais, mas aquele que lhe estava no sangue e com que tratava de modo absolutamente igual e idêntico todas as pessoas, fosse qual fosse a sua condição ou estatuto; em terceiro lugar e — mais importante —, na completa indiferença para com aquilo que fazia, motivo pelo qual nunca se entusiasmava e não cometia erros.

    Ao chegar ao seu local de trabalho, Stepan Arkáditch, acompanhado pelo porteiro respeitoso, entrou com a pasta no seu pequeno gabinete, vestiu o uniforme e entrou na repartição. Todos os escriturários e empregados se levantaram, inclinando-se alegre e respeitosamente. Stepan Arkáditch, à pressa como sempre, dirigiu-se ao seu lugar, trocou apertos de mão com os membros e sentou-se. Gracejou e conversou exatamente o que era apropriado, e começou o trabalho. Ninguém sabia encontrar mais exatamente que Stepan Arkáditch a fronteira (o limite) da liberdade, da simplicidade, e a gravidade oficial, necessária para fazer o trabalho de um modo agradável. O secretário, alegre e respeitoso como era toda a gente na presença de Stepan Arkáditch, aproximou-se com uns papéis e disse num tom familiar e liberal, introduzido pelo próprio Stepan Arkáditch:

    — Afinal sempre conseguimos os dados da administração provincial de Penza. Aqui estão, se me permite…

    — Recebemo-los finalmente? — disse Stepan Arkáditch, marcando um papel com o dedo. — Ora bem, meus senhores… — E os trabalhos começaram.

    «Se eles soubessem — pensava, inclinando significativamente a cabeça ao escutar o relatório — que rapazinho culpado era o seu presidente ainda há meia hora!» — E os seus olhos riam ao ler o relatório. Os trabalhos deviam continuar sem interrupção até às duas horas, e às duas havia um intervalo para o almoço.

    Ainda não eram duas horas quando a grande porta envidraçada da repartição se abriu de súbito e alguém entrou. Todos os membros, os que estavam por baixo do retrato e os que estavam atrás do emblema, satisfeitos com aquela interrupção, olharam para a porta; mas o guarda que estava junto à porta expulsou imediatamente o intruso e fechou atrás dele a porta envidraçada. Quando acabou a leitura do processo, Stepan Arkáditch levantou-se, espreguiçou-se e, prestando tributo à liberalidade do tempo, tirou um cigarro ainda na repartição e dirigiu-se ao seu gabinete. Dois colegas seus, o veterano Nikitin e o camareiro Grinevitch, saíram com ele.

    — Depois do almoço conseguimos acabar — disse Stepan Arkáditch.

    — Conseguimos de certeza! — disse Nikitin.

    — Aquele Fómin deve ser um bom velhaco — disse Grinevitch acerca de uma das pessoas envolvidas no caso que estavam a apreciar. A estas palavras de Grinevitch, Stepan Arkáditch fez uma careta, dando assim a entender que não era apropriado emitir juízos antecipados, e nada respondeu.

    — Quem foi que entrou? — perguntou ele ao guarda.

    — Um qualquer que se introduziu sem autorização, mal eu virei costas, excelência. Perguntou por si. Eu disse-lhe: quando os membros saírem, então…

    — Onde está ele?

    — Passou talvez para a sala de entrada, e antes andava aqui a caminhar de um lado para o outro. É aquele mesmo — disse o guarda, indicando um homem de forte constituição e ombros largos com a barba frisada, que, sem tirar da cabeça o gorro de pele de carneiro, subia com rapidez e ligeireza os degraus gastos da escada de pedra. Um funcionário magricela que descia com uma pasta, parando, olhou com ar desaprovador os pés do homem que corria e depois lançou um olhar interrogativo a Oblonski.

    Stepan Arkáditch estava de pé ao cimo da escada. O seu rosto, resplandecente de bonomia atrás da gola bordada do uniforme, resplandeceu ainda mais quando reconheceu aquele que se aproximava a correr.

    — É mesmo ele! Lévin, finalmente! — disse com um sorriso amistoso e trocista, olhando Lévin que se aproximava. — Como te dignas procurar-me neste covil? — disse Stepan Arkáditch, não se limitando a um aperto de mão e beijando o seu amigo. — Chegaste há muito?

    — Acabo de chegar, e queria muito ver-te — disse Lévin timidamente, e ao mesmo tempo olhando à sua volta inquieto e mal-humorado.

    — Bem, vamos para o meu gabinete — disse Stepan Arkáditch, que conhecia a timidez irascível e orgulhosa do seu amigo; e, agarrando-o pelo braço, puxou-o atrás de si como se o guiasse por entre perigos.

    Stepan Arkáditch tratava por «tu» quase todos os seus conhecidos: velhos de sessenta anos e jovens de vinte, atores, ministros, comerciantes e generais, de modo que muitos daqueles que o tratavam por «tu» estavam em pontos extremos da escala social e ficavam muito surpreendidos ao saberem que através de Oblonski tinham alguma coisa em comum. Ele tratava por «tu» todos aqueles com quem bebia champanhe, e bebia champanhe com toda a gente, por isso, ao encontrar-se com os seus «tus» desonrosos, como chamava por graça a muitos dos seus amigos, na presença dos subordinados, sabia, com o tato que lhe era peculiar, reduzir essa impressão desagradável. Lévin não pertencia a essa categoria, mas Oblonski, com o seu tato habitual, sentiu que Lévin pensava que ele podia não querer mostrar a intimidade entre eles diante do pessoal e por isso se apressou a conduzi-lo para o gabinete.

    Lévin era quase da mesma idade de Oblonski e tratavam-se por tu não apenas devido ao champanhe. Lévin era seu camarada e amigo desde a primeira juventude. Gostavam um do outro apesar da diferença de carateres e de gostos, como gostam um do outro amigos que se tornaram próximos na primeira juventude. Mas apesar disso, como muitas vezes acontece entre pessoas que escolhem diferentes tipos de atividade, cada um deles, embora no fundo compreendesse a atividade do outro, desprezava-a intimamente. Cada qual achava que a vida que levava era a verdadeira vida e a do seu amigo apenas uma ilusão. Oblonski não conseguia evitar um sorriso trocista ao ver Lévin. Tantas vezes o vira chegar a Moscovo vindo do campo, onde se ocupava de qualquer coisa, embora Stepan Arkáditch nunca tivesse compreendido o quê precisamente, nem nunca se tivesse interessado. Lévin vinha a Moscovo sempre agitado, apressado, um pouco constrangido e irritado com esse constrangimento e a maior parte das vezes com uma visão completamente nova e inesperada das coisas. Stepan Arkáditch ria-se daquilo mas ao mesmo tempo gostava. De igual modo, também Lévin desprezava intimamente o modo de vida citadino e o emprego do seu amigo, que considerava futilidades, e ria-se de tudo aquilo. Mas a diferença estava em que Oblonski fazia o que todos faziam, ria-se confiante e com bonomia, enquanto Lévin o fazia sem autoconfiança e por vezes com irritação.

    — Há muito que te esperávamos — disse Stepan Arkáditch entrando no gabinete e largando o braço de Lévin, como que a mostrar-lhe desse modo que ali passara o perigo. — Estou muito, muito contente por te ver — continuou. — Então, que fazes? Como estás? Quando chegaste?

    Lévin continuava calado, olhando os rostos desconhecidos dos dois colegas de Oblonski, e em especial a mão do elegante Grinevitch, com uns dedos tão brancos e longos, umas unhas tão amarelas e compridas curvadas nas pontas e uns tão grandes botões de punho na camisa, que aquelas mãos, visivelmente, absorviam toda a sua atenção e não lhe davam liberdade de pensamento. Oblonski notou isso imediatamente e sorriu.

    — Ah, sim, deixem-me apresentá-los — disse. — Os meus colegas: Filipp Ivanitch Nikitin, Mikhail Stanislavitch Grinevitch — e voltando-se para Lévin —, ativista do zemstvo⁶, de que é novo membro, ginasta, que levanta cinco arrobas com uma só mão, criador de gado e caçador e meu amigo, Konstantin Dmítrich Lévin, irmão de Serguei Ivanitch Koznichev.

    — Muito prazer — disse o velho.

    — Tenho a honra de conhecer o seu irmão, Serguei Ivanitch — disse Grinevitch, estendendo a sua mão fina com as unhas compridas.

    Lévin franziu o cenho, apertou a mão com frieza e voltou-se imediatamente para Oblonski. Embora tivesse um grande respeito pelo seu irmão materno, escritor conhecido em toda a Rússia, não suportava que se lhe dirigissem não como Konstantin Lévin, mas como irmão do célebre Koznichev.

    — Não, já não sou membro do zemstvo. Zanguei-me com eles todos e já não vou às reuniões — disse, dirigindo-se a Oblonski.

    — Foi rápido! — disse Oblonski com um sorriso. — Mas como? Porquê?

    — É uma longa história. Eu conto-ta qualquer dia — disse Lévin, mas começou logo a contar. — Bem, em poucas palavras, convenci-me de que não há e não pode haver qualquer atividade do zemstvo — disse, como se alguém tivesse acabado de ofendê-lo. — Por um lado, é uma brincadeira, brincam aos parlamentos, e eu não sou suficientemente jovem, nem suficientemente velho para me divertir com brincadeiras; por outro lado (vacilou), é um meio para a coterie⁷ distrital fazer um dinheirito. Dantes havia as tutelas, os tribunais, e agora há o zemstvo… não sob a forma de subornos, mas sob a forma de ordenados não merecidos — falava tão acaloradamente como se algum dos presentes contestasse a sua opinião. — Eh! Mas vejo que estás numa nova fase, conservadora — disse Stepan Arkáditch. — Mas disso falemos depois.

    — Sim, depois. Mas eu precisava de te ver — disse Lévin, olhando com ódio para a mão de Grinevitch.

    Stepan Arkáditch sorriu de modo quase impercetível.

    — Não tinhas dito tu que nunca mais vestias roupas europeias? — disse ele, olhando as roupas novas do outro, obviamente de um alfaiate francês. — Pois, estou a ver: uma nova fase.

    Lévin corou subitamente, não como coram os adultos — ligeiramente, sem darem por isso, mas como coram as crianças, sentindo-se ridículos com a sua timidez e por isso envergonhando-se e corando ainda mais, quase até às lágrimas. E era tão estranho ver aquele rosto inteligente e másculo num tal estado infantil, que Oblonski desviou o olhar.

    — Mas onde é que nos vemos? Preciso muito de falar contigo — disse

    Lévin.

    Oblonski pareceu refletir:

    — Fazemos assim: vamos almoçar ao Gúrin e ali falamos. Estou livre até às três.

    — Não — respondeu Lévin depois de pensar um pouco —, ainda preciso de ir a outro lugar.

    — Está bem, então jantamos juntos.

    — Jantar? Mas eu não tenho nada de especial para dizer, ou perguntar, apenas duas palavras, e depois conversamos.

    — Então diz-me agora as duas palavras, e conversamos ao jantar.

    — As duas palavras são estas — disse Lévin —, de resto, não é nada de especial.

    O seu rosto assumiu de repente uma expressão zangada, resultante do esforço para vencer a sua timidez.

    — Como vão os Scherbátski? Continuam na mesma? — perguntou.

    Stepan Arkáditch, que há muito sabia que Lévin estava apaixonado pela sua cunhada Kiti, esboçou um sorriso e os seus olhos brilharam alegremente.

    — Tu disseste «duas palavras», mas eu em duas palavras não te posso responder, porque… Desculpa-me um instante…

    Entrou o secretário com uma deferência familiar e uma certa consciência modesta, comum a todos os secretários, da sua superioridade sobre o seu chefe no conhecimento dos assuntos, aproximou-se de Oblonski com uns papéis e, como se fizesse uma pergunta, pôs-se a explicar uma qualquer dificuldade. Stepan Arkáditch, sem escutá-lo até ao fim, pousou afetuosamente a mão no braço do secretário.

    — Não, faça exatamente como eu lhe pedi — disse ele, suavizando com um sorriso a sua observação. E, depois de explicar sucintamente como entendia o assunto, afastou os papéis, dizendo: — Pois faça assim, por favor, Zakhar Nikititch.

    O secretário, embaraçado, afastou-se. Lévin, que durante aquela conferência com o secretário se recompusera completamente da sua perturbação, estava em pé, apoiado com os dois braços a uma cadeira, com uma expressão trocista no rosto.

    — Não compreendo, não compreendo — disse ele.

    — O que é que não compreendes? — perguntou Oblonski, também com um sorriso alegre e tirando um cigarro. Esperava de Lévin uma qualquer saída estranha.

    — Não compreendo o que é que vocês fazem — disse Lévin, encolhendo os ombros. — Como podes tu levar isso a sério?

    — Porquê?

    — Porque não há nada para fazer.

    — Isso é o que tu pensas, mas nós estamos sobrecarregados de trabalho.

    — Papelada. Pois sim, tu és dotado para isso — acrescentou Lévin.

    — Quer dizer, pensas que me falta qualquer coisa?

    — Pode ser que sim — disse Lévin. — Mas em todo o caso admiro a tua grandeza e orgulho-me por o meu amigo ser um homem tão importante. Mas não respondeste à minha pergunta — acrescentou, olhando com um esforço desesperado os olhos de Oblonski.

    — Bom, está bem, está bem. Espera um pouco, e lá chegarás. Está tudo muito bem quando se tem três mil hectares de terras no distrito de Karázin, e esses músculos, e a frescura de uma rapariga de doze anos — mas também tu hás de cá chegar. Sim, e quanto à pergunta que me fizeste: não há mudanças, mas é pena que não venhas há tanto tempo.

    — E porquê? — perguntou Lévin, assustado.

    — Por nada — respondeu Oblonski. — Depois falamos. Mas para que vieste, exatamente?

    — Ah, sobre isso também falaremos depois — disse Lévin corando de novo até às orelhas.

    — Pronto, está bem. Entendido — disse Stepan Arkáditch. — Tu compreendes, eu convidava-te para minha casa, mas a minha mulher não está bem de saúde. Mas sabes uma coisa: se tu queres vê-los, eles vão estar hoje certamente no Jardim Zoológico das quatro às cinco. Kiti vai patinar. Tu vai até lá, eu apareço depois e vamos jantar a qualquer sítio.

    — Excelente. Então até logo.

    — Tu vê lá, eu conheço-te, ainda te esqueces e partes de repente para o campo! — gritou Stepan Arkáditch, rindo-se.

    — Não, de certeza.

    E, lembrando-se só ao chegar à porta que se esquecera de cumprimentar os colegas de Oblonski, Lévin saiu do gabinete.

    — Deve ser um cavalheiro muito enérgico — disse Grinevitch quando

    Lévin saiu.

    — Sim, meu caro — disse Stepan Arkáditch, abanando a cabeça —, é um felizardo! Três mil hectares no distrito de Karázin, com o futuro à sua frente e toda aquela frescura! Não é como nós.

    — De que é que se queixa, Stepan Arkáditch?

    — Isto aqui é mau, detestável — disse Stepan Arkáditch, suspirando pesadamente.

    VI

    Quando Oblonski lhe perguntou porque viera ele precisamente, Lévin corou e irritou-se consigo mesmo por ter corado, porque não lhe podia responder: «Vim propor casamento à tua cunhada», embora tivesse vindo apenas para isso.

    As famílias Lévin e Scherbátski eram duas velhas casas nobres moscovitas e sempre haviam mantido relações próximas e amistosas entre si. Essa ligação tinha-se reforçado ainda mais durante os anos de estudante de Lévin. Tinha feito os estudos preparatórios e entrado para a universidade juntamente com o jovem príncipe Scherbátski, irmão de Dolli e de Kiti. Nesse tempo Lévin frequentava muito a casa dos Scherbátski e tomou-se de amores pela família. Por estranho que possa parecer, Konstantin Lévin apaixonou-se precisamente pela casa, pela família, em especial pela sua metade feminina. Não se lembrava da sua própria mãe, e a sua única irmã era mais velha do que ele, de modo que foi em casa dos Scherbátski que conheceu pela primeira vez aquele meio de uma velha família nobre, educada e honrada, de que fora privado pela morte do pai e da mãe. Todos os membros daquela família, especialmente a parte feminina dela, pareciam-lhe cobertos por uma espécie de véu misterioso, poético, e não só não via neles quaisquer defeitos, como sob esse véu poético que os cobria imaginava os mais elevados sentimentos e todas as perfeições possíveis. Porque é que aquelas três jovens tinham de falar em francês e em inglês em dias alternados; porque é que elas, a determinadas horas do dia, se revezavam a tocar piano, cujos sons se ouviam em cima, nos aposentos do irmão, onde os estudantes trabalhavam; para que vinham ali aqueles professores de literatura francesa, de música, de desenho, de dança; porque é que a determinadas horas as três jovens, com Mlle Linon, iam de caleche ao Bulevar Tverskoi nos seus casacos de peles forrados de cetim — o de Dolli comprido, o de Natália a três quartos, e o de Kiti muito curto, de tal modo que se lhe viam as pernas esbeltas enfiadas em meias vermelhas; para que precisavam elas de ir, na companhia de um lacaio com penacho dourado no boné, caminhar pelo Bulevar Tverskoi — tudo isto e muito mais que se fazia nesse mundo misterioso era para ele incompreensível. Mas sabia que tudo o que ali se fazia era excelente e estava apaixonado precisamente por esse mistério.

    No seu tempo de estudante por pouco não se apaixonou pela mais velha, Dolli; mas ela em breve se casou com Oblonski. Depois começou a gostar da segunda. Sentia como que a obrigação de se apaixonar por uma das irmãs, mas não conseguia decidir qual delas precisamente. Mas também Natália, assim que apareceu na sociedade, se casou com o diplomata Lvov. Kiti era ainda uma criança quando Lévin saiu da universidade. O jovem Scherbátski, depois de entrar para a marinha, afogou-se no mar Báltico, e as relações de Lévin com os Scherbátski tornaram-se mais raras, apesar da sua amizade com Oblonski. Mas quando naquele ano, no princípio do inverno, Lévin veio a Moscovo e se encontrou com os Scherbátski, compreendeu por qual das três irmãs estava destinado a apaixonar-se.

    Poderia parecer que, sendo ele um homem de boa linhagem, de trinta e dois anos, mais rico do que pobre, nada era mais simples do que propor casamento à jovem princesa Scherbátskaia; com todas as probabilidades, seria imediatamente aceite como um bom partido. Mas Lévin estava apaixonado e parecia-lhe que Kiti era de uma tal perfeição em todos os aspetos, tão acima de tudo o que era terreno, e ele um indivíduo terra a terra, tão baixo que era impossível pensar que os outros e ela própria o achassem digno dela.

    Depois de ter passado dois meses em Moscovo, como que atordoado, encontrando-se quase todos os dias com Kiti na sociedade, que passara a frequentar para se encontrar com ela, Lévin decidiu que isso era impossível e partiu para o campo.

    A sua convicção de que isso era impossível baseava-se na ideia de que aos olhos da família dela ele não era um partido vantajoso nem digno para a encantadora Kiti, e de que a própria Kiti não poderia amá-lo. Aos olhos da família ele não tinha, aos trinta e dois anos, nenhuma atividade ou posição determinada na sociedade, enquanto entre os seus camaradas um era já coronel e ajudante de campo, outro professor, diretores de banco e dos caminhos de ferro ou chefes de repartição, como Oblonski; quanto a ele (sabia muito bem como devia parecer aos olhos dos outros), era um latifundiário, que se ocupava da criação de vacas, da caça às narcejas e de construções, quer dizer, um sujeito sem talentos e que fazia, segundo a compreensão da sociedade, aquilo que faziam as pessoas que não serviam para nada.

    E a própria misteriosa e encantadora Kiti não podia amar um homem tão feio como ele se considerava, e principalmente um homem tão simples que se não distinguia em nada. Além disso, as suas anteriores relações com Kiti — relações de um adulto com uma criança resultantes da amizade com o irmão dela —, pareciam-lhe um obstáculo mais para o amor. De um homem feio e bondoso como a si próprio se considerava, podia-se gostar, achava, como de um amigo, mas para ser amado com o amor com que ele próprio amava Kiti era preciso ser um homem formoso, e principalmente um homem especial.

    Ouvia dizer que era frequente as mulheres gostarem de homens feios e simples, mas não acreditava nisso porque julgava por si, visto que apenas podia amar mulheres bonitas, misteriosas e especiais.

    Mas depois de passar dois meses sozinho no campo convenceu-se de que aquele não era um dos amores que sentira na primeira juventude; que aquele sentimento não lhe dava um minuto de sossego; que não podia viver sem ter decidido aquela questão: ela seria sua mulher, ou não?, e que o seu desespero resultava apenas da sua imaginação, porque não tinha qualquer prova de que seria recusado. E viera agora a Moscovo com a firme resolução de fazer a proposta e casar-se, se fosse aceite. Ou… não conseguia pensar no que lhe aconteceria se fosse recusado.

    VII

    Chegado a Moscovo no comboio da manhã, Lévin dirigiu-se a casa do seu irmão mais velho por parte da mãe, Koznichev. Depois de se mudar, entrou no escritório dele com a intenção de lhe contar imediatamente a razão por que tinha vindo; mas o irmão não estava sozinho. Com ele estava um conhecido professor de Filosofia, que viera de Kharkov de propósito para esclarecer um mal-entendido surgido entre ambos a propósito de uma importante questão filosófica. O professor travava uma acalorada polémica contra os materialistas; Serguei Koznichev, que acompanhava com interesse essa polémica, ao ler o último artigo do professor escrevera-lhe uma carta com as suas objeções; acusava o professor de excessivas cedências aos materialistas. E o professor viera imediatamente para se entenderem. Tratava-se de uma questão em moda: existe uma fronteira entre os fenómenos psíquicos e os fisiológicos na atividade do homem? E onde se encontra ela?

    Serguei Ivánovitch recebeu o irmão com o seu sorriso meio carinhoso meio frio com que recebia habitualmente toda a gente e, depois de apre­sen­tá-lo ao professor, continuou a conversa.

    O filósofo, um homem pequeno e amarelento, de óculos, com a testa estreita, desviou-se por um instante da conversa para cumprimentar Lévin e continuou o seu discurso, sem lhe prestar atenção. Este sentou-se à espera de que o professor se fosse embora, mas em breve se interessou pelo tema da conversa.

    Lévin encontrara em revistas os artigos de que eles falavam e lera-os, interessando-se por eles, como desenvolvimento das bases das ciências naturais que conhecia da universidade, mas nunca aproximara essas conclusões científicas sobre a origem do homem⁸ como animal, sobre os reflexos, sobre a biologia e a sociologia, das questões do sentido da vida e da morte, que nos últimos tempos lhe ocupavam o espírito cada vez com mais frequência.

    Ao ouvir a conversa do irmão com o professor notou que eles ligavam as questões científicas com as questões espirituais, por várias vezes até se aproximaram dessas questões, mas sempre que se aproximavam do mais importante, segundo lhe parecia, logo se afastavam apressadamente e de novo se embrenhavam na região das distinções subtis, reservas, citações, alusões, referências a autoridades, e ele tinha dificuldade em compreender de que falavam eles.

    — Não posso admitir — disse Serguei Ivánovitch com a sua habitual clareza e precisão de expressão e a sua dicção elegante —, não posso em nenhum caso concordar com Keiss, que toda a minha representação do mundo exterior decorre das impressões. O próprio conceito fundamental do ser não o recebi através da sensação, pois que nem existe órgão especial para a transmissão dessa conceção.

    — Sim, mas Wurst, Knaust e Pripássov⁹ respondem-lhe que a sua consciência do ser provém do conjunto de todas as sensações, que essa consciência do ser é resultado das sensações. Wurst diz até abertamente que onde não há sensações não há conceção do ser.

    — Eu digo o contrário… — começou Serguei Ivánovitch.

    E de novo pareceu a Lévin que, ao aproximarem-se do mais importante, se afastavam dele outra vez, e decidiu colocar uma questão ao professor.

    — Por conseguinte, se os meus sentidos forem destruídos, se o meu corpo morrer, não pode já haver qualquer existência? — perguntou.

    Enfadado e como que mentalmente magoado pela interrupção, o professor olhou o estranho questionador, que mais parecia um carregador do que um filósofo, e desviou o olhar para Serguei Ivánovitch, como que a perguntar: que se há de dizer a isto? Mas Serguei Ivánovitch, que falava de modo muito menos empenhado e unilateral do que o professor e em cuja mente restava ainda espaço para responder ao professor e ao mesmo tempo compreender o ponto de vista simples e natural do qual fora feita a pergunta, sorriu e disse:

    — Ainda não nos é permitido resolver essa questão…

    — Não temos dados — confirmou o professor e continuou com os seus argumentos. — Não — disse ele —, eu faço notar que, se a sensação, como abertamente diz Pripássov, tem o seu fundamento na impressão, então devemos distinguir rigorosamente esses dois conceitos.

    Lévin deixou de escutar e ficou à espera de que o professor se fosse embora.

    VIII

    Quando o professor saiu, Serguei Ivánovitch voltou-se para o irmão:

    — Fico muito contente por teres vindo. Por muito tempo? Como vai a lavoura?

    Lévin sabia que o seu irmão mais velho pouco se interessava pela agricultura e que só por condescendência lhe fazia a pergunta. Por isso respondeu apenas sobre a venda do trigo e sobre dinheiro. Queria falar ao irmão da sua intenção de se casar e pedir-lhe conselho, até decidira firmemente fazê-lo; mas quando viu o irmão e escutou a sua conversa com o professor, quando ouviu depois aquele tom involuntariamente protetor com que o irmão lhe perguntava acerca dos seus assuntos agrícolas (a propriedade da mãe não tinha sido dividida e Lévin administrava as duas partes), Lévin sentiu que não podia começar a falar com o irmão da sua decisão de se

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