Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Violetas ao vento
Violetas ao vento
Violetas ao vento
E-book288 páginas4 horas

Violetas ao vento

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Como sobreviver em um lar despedaçado?

Se você passar um dia por Violeta e a vir conversando alegre com Thamires ou lançando olhares apaixonados para Ricardo, nunca imaginará o que aquela menina doce e gentil esconde em seu coração. Pois, em casa, fora dos olhares alheios, onde lhe são arrancados os sonhos de menina e a dor lhe toma o rosto, é que a jovem perde as esperanças de que a vida melhore.

Ali, naquele ambiente hostil e violento, ninguém vê Violeta chorar ou ouve os gritos de dor da mãe… Ninguém impede que o pai continue com as agressões, nem mesmo que o irmão assista a tudo, impassível, como se tratar as mulheres da casa com desprezo e crueldade fosse algo banal, comum. Como se a feminilidade que carrega em si fosse uma doença.

É através dos poemas que Violeta procura esquecer as marcas do corpo e o medo de que, um dia, ela e a mãe não sobrevivam. A jovem encontra nos versos um esboço da dor, da transformação, do seu novo eu. Percebe que, ao se ver refletida naquelas palavras, pode enxergar também uma esperança de um futuro melhor. E, assim, ela tenta se redescobrir e, mais que sobreviver, lutar de peito aberto contra aquilo que a aprisiona, bem como sua mãe.

Nessa nova busca por se tornar a mulher que sempre desejou, Violeta fará uma jornada emocionante e dolorosa em busca de se empoderar, de amar e de se permitir, com acertos e erros, dúvidas e paixões, nem sempre correspondidas. Emocione-se com esse romance jovem, forte e poderoso, escrito pelas mãos – e pelo coração – de Jéssica Anitelli. E lembre-se de que, infelizmente, sempre pode existir uma Violeta perto de você, com uma história para contar.
IdiomaPortuguês
EditoraBookerang
Data de lançamento29 de set. de 2020
Violetas ao vento

Relacionado a Violetas ao vento

Ebooks relacionados

Artigos relacionados

Avaliações de Violetas ao vento

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Violetas ao vento - Jéssica Anitelli

    venceram.

    1

    Não há mulher mais pálida e mais fria,

    E o seu olhar azul vago e sereno

    Faz como o efeito d'um luar ameno 

    Na sua tez que é mórbida e macia.

    Os brilhantes, António Gomes Leal

    Por um momento, o estrondo me fez desviar a atenção do livro que estava em minhas mãos e olhar para a entrada da sala. Mesmo com fones de ouvido, consegui escutar o estardalhaço que aquele que se dizia meu pai, mas que eu não considerava assim fazia tempo, fez ao entrar em casa. Notei o rosto avermelhado e os passos incertos, e eu já sabia que bebera mais que o aceitável só com essas evidências. Se bem que, para ele, não havia limites, apenas a sua vontade.

    Quando esbarrou em um vaso de flores, derrubando-o, fechei os olhos e pedi em pensamento que nada acontecesse, que a paz continuasse reinando naquele ambiente. Infelizmente, isso não aconteceu, como sempre…

    — Olívia! — gritou após chutar para longe o que sobrara do vaso e da planta. — Olívia! — esbravejou novamente. Eu já via a raiva o dominando cada vez mais.

    Minha mãe apareceu, secando as mãos no avental. Na verdade, parecia mais que apertava o tecido entre elas do que as secava. O andar receoso, como se contasse os passos, ponderando se deveria ou não se aproximar, demonstrava o medo que sentia por ter de enfrentá-lo. O que, infelizmente, não era nenhuma novidade. Percebi, com pesar, o olhar vacilando, ora sobre o marido, ora sobre a sujeira no chão, ora em algum lugar sobre os próprios braços. Nessa hora, aumentei o volume da música no meu celular, não querendo ouvir mais uma discussão. Só que, por mais eu que lutasse, ainda fui capaz de escutar os gritos raivosos dele.

    — Sua inútil! Por que colocou essa merda de vaso ali? Quer me matar? Toda essa sujeira aqui é culpa sua!

    Ela falava baixo, sem encará-lo. A cabeça estava inclinada, o queixo quase encostando no peito, os ombros retraídos. Tive a impressão de vê-la tremendo. Revirei os olhos e voltei minha atenção para as linhas do livro de poemas, tentando me abstrair de tudo ao meu redor. Contudo, não permaneci assim por muito tempo…

    — Estou falando com você, Violeta! — ele me agarrou pelo braço, fazendo-me levantar do sofá aos tropeços.

    O celular caiu e o fone se desconectou, fazendo a música se propagar pelo ambiente. Agachei-me para apanhar o aparelho, mas ele foi mais rápido que eu. Assim que o segurou, começou a tocar a tela de qualquer jeito, sem saber o que fazer, sem conseguir desligar o som. Vi seus dentes rangerem e, antes que algo acontecesse, apenas tentei tirar o celular das mãos dele.

    Não pude evitar.

    Quando me dei conta, ele tinha arremessado o aparelho com tudo na parede. O vidro trincou na hora. E, ainda não satisfeito, pisou sobre o celular com um ódio que eu nunca tinha visto. Meus olhos arderam por causa das lágrimas que não deixei correrem. Mais uma vez me vi impotente. De que adiantava chorar? Se isso resolvesse, minha vida seria totalmente diferente.

    — Isso é para você aprender a prestar atenção em mim quando falo com você!

    Ele se virou raivoso em minha direção, e sustentei o olhar. Minha vontade era de dizer várias coisas que pareciam explodir em meu peito. Entretanto, sem coragem, apenas engoli as palavras.

    — Você não precisava ter feito isso, Maurício — minha mãe me defendeu, e eu a olhei, surpresa. Ela realmente discordara da atitude dele?

    Minha surpresa logo se transformou em desespero quando o vi partindo para cima dela. O tapa que a acertou no rosto a fez cair de joelhos no chão, sobre os cacos do vaso.

    — O que você disse? — inclinou-se para se aproximar dela, que cobriu o rosto com os braços. — Repita o que você disse!

    — Não foi nada — choramingou.

    — Melhor assim — virou-se para mim. — Ajude a sua mãe a recolher essa sujeira.

    Não me mexi e continuei a encarar aquele homem, transmitindo todo o nojo que sentia dele. Talvez esse tenha sido o meu erro. Para mim, ele não passava de um monstro sem sentimentos, a pessoa mais desprezível desse mundo. Sem dizer nada, ele voltou a me segurar pelo braço, agora com mais força, e me jogou para perto da minha mãe. Forçou-me para baixo e me fez ajoelhar também sobre os cacos. Mordi o lábio inferior por causa da dor, mas, mesmo assim, não chorei. Eu me recusava a dar esse gosto a ele.

    Todos olharam ao mesmo tempo para a porta da sala quando ela se abriu e meu irmão Narciso entrou. Ele parou, observou a cena — como se tudo aquilo fosse normal, uma simples banalidade —, passou por nós e subiu as escadas com destino ao quarto.

    — Estão esperando o que para começar a limpar? — Maurício perguntou, com aquele tom autoritário.

    Os olhos azuis da minha mãe estavam repletos de lágrimas, e o rosto vermelho começava a inchar. Os lábios rosados tremiam da mesma forma que as mãos ao recolher os cacos. Meu peito apertou, porém não falei nada, apenas a ajudei a limpar o chão.

    Enquanto eu enrolava o que sobrara do vaso em um jornal, ela varreu a sala e passou pano. Aquele que nos agredira simplesmente se sentou no sofá e acompanhou o nosso trabalho. Ao terminarmos, sorriu vitorioso e me mandou para o quarto. Peguei o livro de poemas, os fones, o que sobrara do celular e subi as escadas.

    Assim que abri a porta do quarto, Mel veio me receber, roçando em minha perna e miando alto demais.

    — Silêncio, ele vai brigar comigo se você ficar fazendo barulho.

    Ajoelhei-me no chão, e ela continuou a se enroscar em mim. Sorri levemente e acariciei seu pelo preto brilhante. Peguei-a no colo e a coloquei sobre a cama. Seus olhos amarelos me fitavam com curiosidade, já que eu andava de um lado para o outro, analisando o celular. Tentei ligá-lo e não funcionou. Ainda retirei a bateria e recoloquei para ver se dava certo, mas continuou sem reação. Sentei-me na cama e, dessa vez, permiti que algumas lágrimas descessem pelas bochechas. Mel miou baixinho e se aproximou de mim.

    — Não é nada, gatinha — sequei o rosto. — Isso vai passar, tudo passa.

    Como se entendesse, Mel miou mais uma vez e se deitou no meu colo. Afaguei seu pelo até me sentir melhor. Ela realmente fazia com que os sentimentos ruins desaparecessem por alguns momentos. Quando dormiu, ajeitei-a melhor na cama e saí do quarto para ir ao banheiro tomar banho. Durante o trajeto, ouvi Maurício rindo por causa de alguma coisa que passava na televisão naquele sábado à noite, mandando que minha mãe fosse buscar uma cerveja para ele.

    Entrei no banheiro, desfiz-me das roupas e liguei o chuveiro. Enquanto a água esquentava, notei que as marcas dos dedos dele tinham ficado no meu braço. Ele não media a força que usava conosco, sempre havia hematomas em nós duas.

    A água quente me fez esquecer dos problemas por poucos minutos. Enquanto me secava, meus olhos pararam sobre a cicatriz de um corte no pulso esquerdo. Toquei-a lembrando o motivo de eu ter feito aquilo. Hoje sei que não me cortei para me matar, e sim para chamar a atenção. Um gesto de desespero, uma tentativa de clarear as coisas, tirar as nuvens escuras da frente do sol.

    Sentir a elevação da pele trazia junto todos os sentimentos daquela noite. Minha mãe tinha apanhado de novo, e eu também. A agressão física veio junto com a psicológica, com gritos carregados de ódio nos humilhando. Ela chorava, e seu sangue escorrendo pelo rosto me apavorou; o medo de perdê-la se apossou de mim de uma forma enlouquecedora. Eu não aguentava mais! Foi aí que a faca surgiu em minhas mãos, não me recordo exatamente como. Pelo menos, conforme o corte se abria em mim, a briga foi cessando.

    No fundo, queria que alguém visse que todas aquelas atitudes me afetavam, que aquele inferno no qual eu estava inserida me corroía por dentro. Queria que alguém me salvasse e me tirasse dali. Não viam que me faziam mal? Que eu sofria mais que todos ali?

    Aquele que deveria ser o meu pai não passava de um agressor e não demonstrava ressentimento por agir de tal forma. Narciso parecia não existir. Minha mãe, por mais que fosse o principal alvo de tudo o que acontecia, não expressava nada além de poucas lágrimas, submissa. Aquela atitude me fazia pensar que ela simplesmente não se importava, que tudo aquilo estava bem… Como uma pessoa podia viver feliz em uma vida daquelas?! No final das contas, eu absorvia tudo, tendo a minha vida despedaçada, sendo incapaz de confiar em qualquer pessoa da minha família, sofrendo cada vez mais e em silêncio.

    No fim, nada mudou. Minha mãe não permitia que percebessem como nossa família era totalmente desestruturada. Agia como se nada acontecesse dentro de casa, como se o casamento fosse perfeito e a relação dela com cada um de nós fosse a oitava maravilha do mundo. E eu, ao me cortar, passei a ser chamada de rebelde sem causa. Por que você fez isso, Violeta? Era o que mais me perguntavam. De que adiantava contar uma verdade que ninguém escutaria? Por isso não falei, não contei nada.

    Ninguém passava pelas mesmas coisas que eu, não tinham como me ajudar. Nenhuma atitude mudaria o meu destino e o da minha mãe, que continuava a apanhar do marido. O meu ato de desespero não foi o suficiente para fazer com que notassem como tudo estava errado.

    Quando essa violência começou, minha pouca idade só me permitia chorar e gritar, tentando impedir que ele a machucasse. Isso passou a se repetir com mais frequência, e eu percebi que de nada adiantava fazer aquilo. A gente acaba se cansando de lutar sozinha.

    Eu a via desaparecer a cada dia, morrendo aos poucos, desfazendo-se gradativamente. Aquela mulher sorridente e amorosa da minha infância não existia mais.

    Retornei ao quarto e troquei de roupa. Sequei meus cabelos castanhos e lisos e os amarrei em um rabo de cavalo. Parei diante do espelho e voltei a analisar o hematoma deixado no braço. Por mais que minha pele fosse quase morena, ele tinha conseguido a proeza de me marcar. Observei, por fim, o meu reflexo no espelho e odiei o que vi. Por que eu tinha de ser tão parecida com ele? Os cabelos, os olhos escuros, a tonalidade da pele, o formato do nariz, dos lábios… Era tudo dele!

    Parei de me olhar quando ouvi algo. Franzi a testa e prestei atenção em volta. Mel dormia e não ronronava, Narciso sequer parecia estar em casa… Permaneci mais alguns segundos em silêncio até entender o que acontecia no quarto ao lado. Tapei os ouvidos e me acomodei na cama. Como aquilo poderia acontecer? Ele bateu nela e agora estavam fazendo sexo?!

    Queria fugir dali, mas não sabia como. Minha família realmente era um lixo, cada vez mais eu tinha certeza disso. Um pai extremamente machista e violento, uma mãe submissa ao extremo e um irmão totalmente omisso a tudo o que acontecia. Ele sequer expressava algum sentimento. Será que eu era a única que se incomodava com aquele inferno?!

    Meus pensamentos desapareceram no momento em que ouvi minha mãe gritar. Levantei a cabeça e escutei novamente, dessa vez acompanhado do som de um tapa. Fechei os olhos, não querendo imaginar as atrocidades que ele a obrigava a fazer. Sem perceber, comecei a tremer. Como aquilo podia acontecer? Por que ela ainda aceitava aquilo? Por que não fazia nada? Por que não largava aquele homem? Mais lágrimas desceram pelo meu rosto enquanto a ouvia apanhar de novo e de novo. Meu coração acelerou. Eu precisava fazer alguma coisa, não poderia permitir aquela violência covarde.

    Saí decidida a fazer algo, mudar a realidade da minha mãe e da nossa família. Parei diante da porta do quarto deles com as mãos ainda trêmulas. Engoli em seco e toquei a maçaneta. A mão suada escorregou sobre o metal frio, e percebi, com pesar, que não havia coragem para ir em frente. Eu também tinha medo dele, muito. E o que uma adolescente de quase dezessete anos poderia fazer? Ele bateria em mim e me trancaria no quarto. Mais uma vez, nada mudaria.

    Escutei outro tapa e fechei os olhos, apoiando a testa na porta. A impotência me dominou e chorei baixinho. Eu não era capaz de nada.

    — Saia daí — falou Narciso, e eu o olhei. — Isso não é da sua conta.

    Continuei ali sem saber o que dizer. Os olhos verdes do meu irmão não se afastaram de mim, e senti um leve arrepio. Ele me encarava com raiva, da mesma forma que nosso pai. Mesmo não sendo parecidos, eu via muito dele em Narciso.

    — Saia logo daí, Violeta — a voz era ríspida, apesar de baixa.

    Como não me movi, ele veio até mim e também me pegou pelo braço, arrastando-me dali, praticamente me jogando para dentro do meu quarto.

    — Não se meta nesse assunto.

    — Como você consegue viver assim? — ele não me respondeu. — Só me diga, pois eu não consigo.

    — Só fique quieta, o que acontece com eles não é assunto seu — e, dizendo isso, saiu fechando a porta.

    — Covarde — murmurei.

    Apaguei a luz e deitei sob o edredom. Mel se acomodou nos meus pés. Segui ouvindo os sons da dor e violência que marcavam as mulheres dessa casa, mesmo que fossem baixos. Rezei para que aquilo acabasse logo ou para que o sono viesse o mais rápido possível.

    Como sempre, nada ocorria como eu queria.

    2

    De repente esse sussurro

    de vozes no vento

    e não é o mar que fala.

    Praia, Telmo Padilha

    Acordei com Mel afiando as unhas no travesseiro, acertando-me eventualmente. Ela gostava de dormir entre os meus cabelos, o que fazia com que eu acordasse com os fios ainda mais emaranhados e espetados que o normal. A primeira coisa que fiz naquela manhã de domingo foi tomar uma ducha para me livrar dos vestígios da gata. Apesar de tudo, eu estava minimamente feliz, pois era 26 de julho. Meu aniversário de dezessete anos.

    Vesti uma calça jeans de tons claros, uma camiseta qualquer e um moletom cinza. Nos pés, coloquei um tênis simples. Olhei-me no espelho, querendo me sentir diferente, já que era o meu dia, no entanto, não notei nenhuma mudança. Eu continuava a mesma menina magricela de cabelos escorridos. Na verdade, uma coisa mudou sim: eu retirei o aparelho. Abri a boca e analisei os dentes, agora alinhados. Passei a língua sobre eles para senti-los sem os ferros e sorri verdadeiramente para a minha imagem refletida, torcendo para que aquela data trouxesse consigo mais momentos felizes.

    Entrei na cozinha com Mel no colo. Narciso tinha passado por ali, pois a louça usada para tomar o café da manhã continuava em cima da mesa. Garoto folgado! Maurício sentava-se com um jornal nas mãos, e minha mãe servia mais café na xícara dele. Por mais que fosse meu pai, não me lembrava da última vez que o chamei assim. Talvez algo dentro de mim tivesse se quebrado quando ele começou a bater na minha mãe. Com ela não acontecia isso, mas, dependendo do meu humor, referia-me a ela pelo nome.

    Como nenhum deles me cumprimentou, caminhei e coloquei Mel no canto do cômodo, ao lado de seus potes de comida. Pus a ração e um pouco de leite. Ela miou em agradecimento e começou a comer.

    Preenchi um copo com leite e adicionei achocolatado antes de me acomodar à mesa. Ninguém ainda tinha dirigido a palavra a mim. Peguei um pão e comi em silêncio. Maurício logo se levantou e nos deixou sozinhas. Só após ele sair é que minha mãe se sentou para comer. Quando eu já terminava, ela falou:

    — Retire as coisas da mesa e lave.

    Analisei-a com atenção e notei marcas em seu rosto, que ela tentara esconder com a maquiagem. Havia um arroxeado abaixo do olho esquerdo, um pequeno inchaço na lateral da face e um corte no lábio inferior. Vi marcas avermelhadas em um dos pulsos. Eu precisava dizer algo.

    — Por que você não faz nada? — ela apenas me encarou. Tive a impressão de ver os olhos encherem-se de lágrimas, mas como ela se levantou, dando-me as costas, não tive certeza. — Por que aceita o que ele faz com você?

    — Não toque mais nesse assunto, Violeta — estava séria. — Faça o que mandei.

    Ela não queria mudar… Mas será que não via que tudo aquilo me afetava? Também me levantei, irritada com o que havia me dito e magoada por não ter se lembrado do meu aniversário.

    — Eu não vou fazer o que você mandou — respondi, e ela me olhou com a testa enrugada. Respirei fundo e continuei a colocar para fora tudo o que estava entalado. — Eu não sou como você, nem adianta querer me fazer ser igual.

    — Fique quieta…

    — Não! — elevei o tom de voz. — Você fica reproduzindo esse machismo todo, algo que nunca fez bem para você, e quer me condicionar a isso. Quer que eu seja uma merda de dona de casa que é praticamente escrava do marido. Você pode apanhar e ficar quieta, mas eu não aguento mais isso! Não vejo a hora de poder sair dessa casa!

    — Cale a boca! — ela gritou e se aproximou de mim.

    — Covarde! É isso que você é, uma covarde! — as lágrimas manchavam o meu rosto. — Não tem coragem de bater de frente com ele. Vai continuar apanhando até quando? Até ele te matar?

    O tapa que levei me calou na hora. Toquei o local atingido, sentindo-o quente e pulsante.

    — Não fale assim comigo… — minha mãe também chorava. A voz dela não saiu em tom elevado, parecia mais um pedido do que uma ordem.

    Balancei a cabeça em negativa e fui me afastando, porém ainda a olhava. Eu tinha nojo de todos eles, todos!

    Saí correndo sem me importar com o chamado de minha mãe. Atravessei a porta da sala e o portão, ganhando a rua. As lágrimas teimavam em vir, e eu as secava, esfregando o rosto que ardia. Eu mantinha a cabeça baixa, impedindo assim que me vissem chorando.

    Só me dei conta do quanto tinha caminhado quando o vento se chocou contra mim, trazendo consigo o sal da praia. O horizonte azul tomou conta do meu campo de visão. Passei a manga do moletom mais uma vez na face e sorri timidamente. A praia, meu refúgio em época de baixa temporada.

    Minhas passadas diminuíram de ritmo e caminhei consciente pela avenida já movimentada e repleta de prédios. Mesmo estando em pleno inverno, via-se algumas pessoas correndo de bermuda e regata pela calçada do outro lado da avenida, outras simplesmente passeavam com os cachorros ou faziam uma leve caminhada matinal. O sol não iluminava em sua plenitude por causa das nuvens que bloqueavam os raios, e a rajada de vento vinha um pouco mais forte, impossibilitando que meus cabelos soltos permanecessem no lugar.

    Parei em uma esquina e esperei que o semáforo de pedestres abrisse. Então, cruzei a rua, chegando à grama que antecedia a areia. Ali havia muitas árvores de espécies desconhecidas por mim, coqueiros e alguns quiosques com pouco movimento. Direcionei-me para o lugar de sempre: um coqueiro que ficava no limite da grama, praticamente encostado à faixa de areia.

    Sentei-me no pequeno pedaço de verde e me escorei na árvore, com os pés esticados. Fechei os olhos e respirei fundo, inalando o maravilhoso cheiro marinho que o vento me trazia, como se ele fosse capaz de levar tudo embora, todo aquele sofrimento. Na verdade, acho que realizava esse milagre. Toda vez que algo ruim acontecia comigo, aquele lugar tinha o poder de fazer eu me sentir melhor, pelo menos por algum tempo.

    O vento que tocava meu rosto secava as lágrimas e parecia lavar minha alma. Nada era tão ruim quando se estava ali, tudo passava a ser uma sucessão de lembranças tristes que mais tarde seriam esquecidas ou superadas. Pelo menos, era o que eu sempre imaginava, dizendo para mim mesma que as coisas não poderiam piorar.

    Vivi tantos anos assim, posso aguentar mais um pouco.

    Não tem aquele ditado que diz: o que não te mata, te fortalece, ou algo assim? Acredito nisso, por mais que não me sinta fortalecida. Sei que sou fraca, incapaz de muitas coisas. Entretanto, terei de encontrar forças em algum momento… Espero que chegue logo.

    O mar agitado prendeu minha atenção e me fez pensar no que existia além de toda aquela imensidão. Aquelas águas escondem muitas coisas por baixo da aparência azulada. Acho que me identifico com o mar por causa disso: quem me vê não sabe por tudo o que passei e as coisas que escondo no meu

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1